sexta-feira, maio 26, 2006








Logo hoje

«(…) A guerra afectou praticamente cada família portuguesa, porque as marcas não foram apenas produzidas pelas baixas; a simples passagem pela frente de combate deixou traumatismos indeléveis em grande parte dos jovens mobilizados. Em cada ano de conflito, estavam destacados em África, em média, cento e sete mil militares portugueses. No total, foram mobilizados oitocentos mil homens para os combates e serviços de apoio. E poucos poderão afirmar que tudo o que viram e viveram os deixou indiferentes. Os efeitos encontrar-se-ão adormecidos, mas podem acordar imprevistamente em cada um dos antigos soldados; ou em cada um dos familiares dos que morreram ou ficaram inválidos. As consequências da guerra na sociedade portuguesa constituem um iceberg cuja verdadeira dimensão e características ainda ninguém cuidou de avaliar. Entretanto, ele flutua à deriva. »
Joaquim Vieira in «Os anos da guerra», organizado por João de Melo, Lisboa 1988, Círculo de Leitores


Antunes Ferreira
Completam-se hoje, precisamente, 40 anos sobre o dia em que embarquei no Uige com destino a Angola. Eu e mais 1.784 homens fardados, deixando para trás terras natais, famílias, namoradas, amigos. O cais de Santos era um formigueiro de gente a despedir-se dos mobilizados, com muitas lágrimas à mistura, abraços, beijos, lembranças de última hora, garrafões diversos, coitadinho, pode ser que o anime lá por aqueles matos, é da rija e branca.

Saudade antecipada que se vertia em soluços entrecortados, ai que o meu filho vai para a desgraça, ou em recomendações: tu cuida-te, filho; usa sempre o quico na cabeça que o sol das Áfricas é bravo. E traz sempre contigo esta relíquia do Santo Padre Cruz, é um bocadinho da sotaina, que te proteja e te guarde. Não te metas com as pretas, olha que fico de seis meses e sei que és um malandro. Podes apanhar uma doença. Não te esqueças.

Um homem nada disso tinha. Eu. A minha mulher Raquel e os dois filhos que então existiam, o Miguel e o Paulo, já estavam em Luanda, à minha espera. O meu sogro era aduaneiro e subdirector da Alfândega da capital angolana. Fora ali colado, depois de ter fugido de Goa com a família. De resto, o Carlos Alcântara de Melo tornar-se-ia um expert em fugas de lugares mais desencantados, com perdas de fazenda e bens consecutivas.

Já a bordo do navio, outros militares, mesmo antes de saída a barra, já vomitavam enjoos da amurada. Depois, tornar-se-iam fiéis militantes da borda fora. Bastantes oficiais tão milicianos como o autor destas linhas engrossariam ab initio este bando de profissionais das golfadas. E até do QP, ainda que estes tentassem desesperadamente não dar parte de fracos. Muitos olhavam-me de esguelha. Sacana do alferes, é o único satisfeito. Pudera, não, com a co...isa da esposa à espera dele....

O ventre bojudo da nave era um inferno. Nos porões, em catres alinhados e juntíssimos, começava a sobrevivência da tropa miúda. Mal terminava o primeiro dia e o cheiro que dali saía era insuportável, de pestilento. Uma mistura de suor, urina, bagaço, cigarros e até alguns cagalhões conferia ao ar que por ali se alapava uma densidade mórbida.

Logo no começo, ainda a torre de Belém se conseguia divisar, já ao longe, desci pela primeira vez a tais catacumbas entranhadas. Um tarata mais exaltado, codilhado, bêbado, metera três centímetros de ponta e mola nos costados de um camarada. Porra, com tais amigos e companheiros. Oficial de Justiça, fui logo nomeado para levantar o auto.

Era o começo de um fim anunciado: chegar à colónia que assim se chamara e então era província ultramarina. Como dizia um major, no meio de um bridge com muito gelo e água castello, quando um gajo nasce começa logo a contagem decrescente para a tumba. Seria assim? Chegaria a aspirina LM e a resoquina para debelar as febres e as sezões tropicais?

Um destes dias, contar-vos-ei mais. Esses primeiros passos num convés todos os dias esfregado pela soldadesca faziam-nos antever o que nos aguardava? Depois, constataria que não. Picadas fatídicas, intestinos esventrados por minas, vinganças mútuas de muitos anos de falsa mas apregoada convivência, lama vermelha e pegajosa, água podre de poças de pata de elefante, disfardesinfectada pelo olozone em comprimidos. Uma merda. Como disse um cabo Rd, cuanhama, o Tarcísio N’dondo, com bigode: Então, eu já acabou de morer agora mésmo e já estão a dançar em cima da minha campa?

6 comentários:

J.J.Ferreira disse...

Jamais plus la guerre! é um repto bem interessante; pois não conhecendo essa realidade, recorda me que a guerra reduz os homens ao mínimo e a vida ao irreal.

Anónimo disse...

A guerra do Ultramar tem sido tratada como se trata um cão. Nós que lá andámos é que sabemos o heroismo que os Portugueses demonstraram para defender as Provincia Ultramarinas que eram nossas.
Mas agora todos descobriram que se tratava de colonialismo. Até muitos que lá estiveram como penso que é o seu caso. Meta a mão na consciência e deixe-se de tretas

Anónimo disse...

Se nao fossem os colonialistas, Angola e Moçambique já tinham desabado!
De tudo um pouco fizeram e fizeram-no bem, nao fossem os "turras" de entao, Mários Soares e outros desgraçados que nao souberam fazer devidamente a descolonizaçao.
Entregar o que entregaram e o modo como o fizeram (desculpem-me a equiparaçao) foi como que entregar pérolas a porcos.
Será que já se esqueceram do que eram e o que representavam as colónias? Será que já se esqueceram de modo impensado como as entregaram??????
Tenham juízo e deitem-se cedo.
Se hoje nao passamos disto é por causa de uns tantos merdas armados em intelectuais e progressistas que insistem em nao abrir os olhos.

Anónimo disse...

Saiba V. Senhoria que eu cheguei primeiro a Luanda! Parti a bordo do paquete Pátria, em Junho de 1962, com 700 paus na carteira; dois garrafões de vinho e umas chouriças de carne no farnel para petiscar durante a viagem. Fui ao Deus-calha...Na minha cabeça (benza-a-Deus) de pouco juizo, seguia para África porque também havia de comprar um daqueles carros "rabo-de-peixe" e botar figura como os africanistas mostravam numas férias quando vinham a Portugal. Ora eu Zé Pinto e me confesso: quando entrei no "Pátria" já era um gajo rico. Estive-me nas tintas para as mulheres de lenços pretos a limparem as lágrimas;para o adeus dos lenços brancos até perderem de vista o "Pátria" na corrente do Tejo.`Na foz do Tejo só se via passageiros a vomitarem no convês do navio e, outros a patinarem em cima do almoço dos vomitados. Mas ao outro dia a coisa ficou a jeito.
Criaram-se amizades e começou a conhecer-se a vida de toda a gente à-lá-portuguesa. A "boazona" que tinha casado por procuração e conhecia só o noivo pelas fotos! Fazem-se amizades, jogou-se à lerpa e foi causa desta maldita que me fez lerpar a carteira e cheguei a Luanda com 100 palhaços . Dentro dos 10 dias viagens naquela barca (não é igual à do inferno), havia boa e farta comida e alguns "desgraçados muita "traça" deviam ter passado que comiam,comiam três e quatro pratadas de batatas com bacalhau. Bisbilhotices dentro do "Pátria" era capim. A "Boazona" diziam por lá que depois da passagem do equador, tinha ficado "marada" e enfeitado o marido que desde Lisboa um pombo lhe andava a arrastar a asa. Cheguei a Luanda, teso que nem um carapau... mas por sorte encontrei, na Mutamba, um gajo amigo que me desenrascou. No Porto de Luanda os passageiros (gado humano) eram passados a pente fino...sabem porque quém? Devem saber que era a PIDE...
Não penso porém que tinha sido o meu comprovinciano Salazar que tinha ordenado isso. É que, naquelo tempo, havia muitos filhos de ruins mães que tomavam a Lei pelas suas mãos. Ainda bem que hoje com a democracia, os homens que nos governam são todos uns "porreirinhos", não mandam arriar com um cavalo marinho no nosso costelado; deixam-nos andar à malta... e até os "sous" polícias já não usam aquele cassetete à cintura que não partia braços mas deixava um risco negro quando malham (centeio verde) no nosso lombo. Depois em Luanda fui numa camioneta aberta por estradas poeirentas; um calor do "caraças"; perfume "catingando" entre os trintas pretos e brancos naquela caixa de madeira. Fiquei na Quibala a trabalhar numa plantação de sisal. Durante seis meses que ali estive, os brancos pretos e mulatos fugimos para "porto seguro" dado que não se sabia se era hoje ou amanhã eramos esquartejados à catanada...Porra,porra que aquilo era mesmo violento e parti depois para Moçambique a bordo de um "Super Constelation" da TAP.
Zé Pinto

Anónimo disse...

meu caro Henrique
lembro-me da velha estrofe do cancioneiro do Niassa que rezava assim:
ora vai p´ro mato...
ó meu malandro ...
que por tua causa...
é que eu aqui ando...
vejo que existem muitos saudosistas do sofrimento alheio
abraços e parabéns pela tua disponibilidade em escrever memórias

Anónimo disse...

Era isso mesmo que os nossos soldados cantavam nas cidades do mato...Vai pró mato ó malandro! E quando fosse só isto vá que não vá...O pior era quando a "rapaziada" estava com os copos e, toca a cinturada nos brancos, pretos,mulatos, indianos e chinas. Verifiquei isso na cidade de Tete. Quando a "matulagem" estava a beber nos bares nenhum branco entrava e se entrasse não sabia se levava ou não com uma cadeira na "pinha"! Aquilo estava mesmo uma "bandaleira"... O perfil e a conduta do soldado português tinha ido às malvas depois de 1968. Aquilo andava tudo à balda... Era uma tropa apanhada do clima e que viria a contribuir para que Moçambique fosse entregue ao "peniqueiro", do Hospital da Correia de Brito, Samora Machel de mão-beijada.