sábado, dezembro 29, 2007




Outro ano

O tempo vai andando, os dias escorrem por entre os dedos, o calendário desfolhado e desflorado, as coisas vão passando.
Mais um ano do Travessa do Ferreira. Que continua e pretende chegar cada vez mais longe e a mais gente. Parabéns – para quê. Apenas o registo. Obrigado.
Antunes Ferreira

GOA, DE NOVO








Sem pecado








Antunes Ferreira
D
ona Umbelina morava nas Fontainhas. Na Rua do Natal. Uma casa apalaçada, de estilo colonial, como quase todo o bairro castiço. Uma espécie de Alfama de Panjim, só que plana. A maior subida da capital goesa dava para o Altinho e o resto era chão raso, bordejando o Mandovi e estendendo-se já muito para a outra margem. Porvorim, onde ficavam já os edifícios oficiais, a começar pela Assembleia.

Senhora de virtude, de hábitos e práticas irrepreensíveis, vestidos ocidentais, à boa maneira dos portugueses que por ali tinham estado quase meio século, mais precisamente 451 anos bem contados. Solteira, quando baizinha os pais tinham-lhe vaticinado convento, já havia um mano padre, Salustiano de seu nome, donde a vocação empurrada.

Não fora. Bem lhe dissera o Pai, Marcelino de Souza Menezes e Brito, médico pela Escola de Goa, que, quer ela quisesse, quer não, Doroteias. Ela, porem, recordava a história que a velha aiá Arlinda lhe contava de um battcar que avisara o filho de um seu manducar: rapaz, quer você queira, quer não, vai voluntário para o Seminário. E o chardó não fora. Ponto final, parágrafo.

Assim aconteceu com Umbelina. Nem pensar em tal caminho, ela era muito fiel a Deus e a ele também temente, mas lá hábito é que não. Guardaria castidade para toda a vida, porém noviça não era o seu destino. Por isso, enfrentara a bigodaça paterna, deu borem korum, muito obrigado, mas nesse patmarim não embarcava ela.

Contra o que seria de esperar, Salustiano, já padmestre, apoiara-a na resolução. Para sotaina ou batina, tanto faz, já basta a que envergo, Deus tenha piedade de mim. A mana escolheu, está escolhido. Estou com ela, de alma e coração. Um espanto. E a paclina Ester, esposa do major Mendonça, professora no Liceu Nacional Afonso de Albuquerque, terçara também armas em defesa de Umbelina Delicada Mascarenhas Melo Menezes e Brito.

Se a menina não quer ser irmã da caridade, que não seja. Deus Nosso Senhor não deseja na Sua Igreja gente a isso obrigada. Por coisas assim, já se tinham perdido vidas de caminho são, até soiriques se tinham desfeito, quase em cima da data marcada para o casório, escândalos a que boas famílias brâmanes não se deviam sujeitar. Católicos – mas brâmanes.

Dizia-se então que por ali andaram rondando a casa um tal Marinho, pacló, de Mortágua, e um outro, Monteiro, descendente. Vá lá saber-se da verdade, os gostos são de cada um, ninguém deve ter nada com isso, vão-se os anéis – mas fiquem os dedos. Com pretendentes de tal coturno, não haveria casamento, muito menos torna-boda. Como não houve.

Bab Marcelino foi o primeiro a finar-se, bastos anos depois da nega filial, consta que consumido pela atitude da filha. Se o foi, nada disse a ninguém. O confessor, padre Malaquias, linguarudo praticante e coscuvilheiro militante, no caso não se abriu. Silêncio e recolhimento receitara o sacerdote aos que dele se abeiraram em busca de um indício que fosse. Nada.

O doutor Miranda, médico de casa, também se mantivera mudo e quedo. Morrera de consumido? Deixara-se morrer? Nada comia por último, nem umas bakri, muito menos qualquer baji ligeiro, sequer o péz. Pois que assim corresse, não seria o clínico que achegaria mais lenha para a fogueira. Certidão de óbito – morte natural, de velhice, sempre eram 82 anos.

Ao encomendar o corpo, o filho Salustiano, na homilia da missa respectiva, com mais dois celebrantes e sacristães correspondentes, enalteceu as virtudes do progenitor, perante as lágrimas copiosas de Bai Juliana, na sua negrura de viuvez, e uns soluços sussurrados de Umbelina. Os outros irmãos, Alfredo e Benedito assistiram impávidos e serenos. Compostura e dignidade. Coisas que hoje vão faltando, maus vão os tempos.

Seguiu-se, uns escassos meses depois, Dona Juliana. Enfarte, diagnosticou o galeno Miranda. E depois, e depois, Benedito, Alfredo e o padmestre Salustiano. É a lei da vida, dissera o cónego Mascarenhas, de Calangute, praia apessoada, vacas no areal, à mistura com saris e camisas engravatadas, domingueiras. E recomendara resignação q.b. a Bai Ursolina.

Como se ela precisasse disso. Crente, piedosa e paroquiana ilustre, sabia muito bem como havia de reagir. De resto, do mesmo modo como sempre vivera. Independente, intransigente, imponente – Senhora. De manhã, para a criadagem condescendia num deu boró dis dium e ponto final no konkanim. E já era muito os bons dias altivos e distantes. No resto da jornada, Português correcto, irrepreensível.
Às várzeas mandava o capataz Franquelim, para contar os cocos, olhar os búfalos e ver a apanha do arroz.


De pecados, nem falar. A vida espartana, o vestuário sóbrio, mas de alguma forma elegante, as golas rendadas alvejando no negro de sempre, a prática quotidiana do terço acompanhada pelos serviçais, a romagem a Velha Goa para a visitação das igrejas e o culto do Santo Apóstolo das Índias, preenchiam-lhe o tempo que se arrastava sem sobressalto que fosse. Goesa.

Pelo Dia dos Defuntos, coroas de mogarins; pelo Natal, presépio do século XVII e cake, pela Páscoa, a ressurreição alumiada. Noman Moriê, Ave-maria, o Senhor é convosco. Saibinn de Fátima orai por nós. Esmolas e óbulos em tempo certo, também não convinha habituar mal sudras, até mesmo bonguis. A misericórdia e a clemência divinas eram mais do que suficientes para alimentar os inferiores.

Por uma manhã de monção, chuva em bátegas de arrepiar, as carepas das janelas quase estilhaçadas, Dona Umbelina soergueu-se por entre os lençóis, ajeitou-os, persignou-se e finou-se. Assim mesmo, tranquilamente, sem um ai, com a devida sobriedade para momento de tamanha solidão e solenidade. Funeral bonito, missa naturalmente cantada, com bispo e tudo, banda acompanhando os passos do cortejo ao cemitério.

Naturalmente que a alma, libertada da grilheta corporal, nem parou na poole position. Meteu a sétima velocidade, e subiu ao céu em velocidade estonteante, qual gaddi, qual quê, mais rápido que um qualquer vaivém espacial. A ausência de pecado, por menor que fosse, ainda que venial, justificava a celeridade da alma umbeliniana.


De tal modo que São Pedro, à porta do Paraíso, fiscalizando os anjos da recepção e os computadores celestiais, pegou no telemóvel e gritou-lhe, sem hesitações: Dona Umbelina, diga merda, já! Se não, não pára cá, entra em órbita!...

Pequeno glossário Konkanim - Português

Aiá - Aia
Bab - Senhor
Bai – Senhora
Baizinha – Menina
Baji – Estufado de batata, lentilhas, grão e outros
Bakri – Papas de farinha de trigo
Battcar – Proprietário rural, para quem trabalham os seus manducares
Bonguis – Homens de casta inferior que despejavam as latrinas
Carepas – Lamelas duras, nacaradas e translúcidas, depois substituídas por vidros nas janelas
Chardó – Casta segunda, depois dos brâmanes
Descendente – Produto da mestiçagem imposta por Afonso de Albuquerque
Deu boró dis dium – Bom dia
Gaddi – Carrocinha
Konkanim – Língua de Goa, oficial
Mogarins – Florzinhas perfumadas
Pacló – Branco, Português
Paclina (fem. de pacló)
Padmestre – Padre professor
Patmarim – Barco artesanal
Péz – Canja, caldo só de arroz
Saibinn – Nossa Senhora
Soirique – Arranjos para o casamento, feitos por interposta pessoa
Sudras – Casta inferior em Goa, a terceira na hierarquia

Com os meus agradecimentos ao Prof. Teotónio de Souza


Goa – Promessa e adenda
Uma vez mais estive em Goa. Bastantes vezes lá fui, minha mulher é goesa, sou um admirador, mais, um apaixonado pela terra, linda, e pela gente, magnífica. Desta feita 15 anos depois da última estada. Do que vivi e espreitei e conversei por ali, da água do Índico a 25 centígrados, da calma e da tranquilidade, aqui darei conta, com maior ou menor aptidão ou habilidade. Hoje, trata-se de uma adaptação fictícia de anedota com barbíssimas. Que me desculpem os leitores e, sobretudo, os goeses pelas heresias que tenha cometido, nomeadamente no konkanim. Não se esqueçam: sou um pacló… A.F.

quinta-feira, dezembro 27, 2007





À RODA DOS DIAS

Dezembro

Maria Lúcia Garcia Marques
D
e onde quer que se olhe, Dezembro é um mês difícil. Paradoxal, diria eu.

É o último mês do calendário, mas celebra o começo de um tempo novo. Quer se creia quer não, o nascimento do/dum Deus-Menino passou a balizar a contagem do tempo – anno Domini (a.D.) – a ser marco universal da História – antes e depois de Cristo (a.C. e d.C.). E, quer se queira quer não, globalizada a festa deste advento, mercadeja-se um regozijo de circunstância, vive-se de luzes e outros brilhos, e a alegria parece multiplicar-se como que reflectida num jogo de espelhos paralelos. Há o calor das tradições sobreviventes, uma ou outra amizade ressuscitada, reencontros felizes, benevolências e reconciliações. Paz na terra...

Mas porque todos os espelhos têm o seu lado baço, esta é só metade da legenda e é nestes dias de Festas que se querem Felizes, que dói mais a dor do mundo. É o tempo de todos os balanços e os negativos vêm à tona com especial crueza e acutilância – e, quer o queiramos quer não – há uma culpa difusa que nos magoa por dentro e nos embacia o júbilo. São os desastres da Mãe-Terra, as fomes, as pragas e a doença, as injustiças e as humilhações, a exclusão, as solidões – tanto as próximas como as longínquas – que nos assolam a consciência e nos travam o coração.
É o tempo da Caridade induzida (antes esta que nenhuma ...) por esta Pobreza polimórfica cuja fome jamais se mitigará porque é o avesso perene de toda a Abundância e alerta, incessante e vivo, para toda a humana falência.

E por isso se acordam os homens de boa vontade, se chamam universalmente os pastores/curadores dos bens do mundo, nos interpelam a nós, nas nossas posses e poderes, no nosso afecto, para que se acorra aos multiplicados presépios do infortúnio e da exclusão, com as nossas dádivas – não apenas de socorro mas também de irmandade e esperança. Algo que, à nossa escala comum, se assemelhará à imagem que o Poeta (Ruy Belo) traçou de “Um Rosto no Natal”:


(...) Eu caminhava e como que dizia
àquele homem de guerra oculta pela calma:
se cais pela justiça alguém pela justiça
há-de erguer-se no sítio exacto onde caíste
e há-de levar mais longe o incontido lume
visível nesse teu olhar molhado e triste
Não temas nem sequer o não poder falar
porque fala por ti o teu olhar
Olhei mais uma vez aquele rosto. Era Natal
é certo que o silêncio entristecia
mas não fazia mal, pensei, pois me bastara olhar
tal rosto para ver que alguém nascia.


Nascer é ter Futuro e futuro é ter Esperança, esperança fide-digna, verdadeiramente digna de Fé. É dizer como Scarlett O´Hara, algures em “Tudo o Vento Levou”, sentados no último degrau deste ano que finda, olhando bem em frente: Amanhã, amanhã é outro dia!


***
E
aqui se me acaba o calendário. (Vitória, vitória, acabou-se a história!)! Foram folhas que caíram num chão amigo. Foram palavras com alma que vos fui encomendando. E agora acendamos a Estrela de 2008 com a esperança de que ela fique brilhando para todos, desanuviada e feliz.

NE - Ora muito bem. Terminou este ano desmiolado, começa um 2008 qual melão: só depois de aberto é que. De resto, o João Pinto portista ficou para a pequena história: previsões... só no fim do jogo.
Maria Lúcia: Está vocemecê intimada a continuar à roda dos dias. Não faltava mais essa que a minha voluntária & ilustre colaboradora acenasse e abalasse. A ser assim, aventava-a pela janela - de rés-do-chão, baixinho, está visto, se não ninguém mais aturava o JASGM. Principalmente, eu.
Por isso, menina: Janeiro, a tempo e horas, sem horas extraordinárias. Dizem que se está em tempo de crise. Crise estranha, em que os restaurantes caros estão a abarrotar de malta em crise; em que os andares de luxo de carradas de euros, são comprados na planta por malta em crise; em que os automóveis, os telemóveis, os computadores, os frigoríficos, o digital recheiam os haveres da malta em crise; em que as férias na estranja, Brasil, Tailândia, Leste, México, Maurícias, eu sei lá, aumentam exponencialmente para a malta em crise. Viva, pois, a crise. Com ela é que se vive bem, de preferência em economia subterrânea, ainda que o Teixeira dos Santos não goste nada.
Donde, querida Maria Lúcia: nem o Apóstolo das Índias a dispensaria da Travessa do Ferreira. Lázara: Levante-se e ande. A.F.