segunda-feira, julho 30, 2007




HISTÓRIAS DA PJ

Aconteceu pelo Natal ...

(2ª parte)

José Augusto Garcia Marques
O António tinha sido emboscado na estrada florestal, à saída de uma curva, quando seguia de bicicleta a caminho de casa. A ténue luminosidade do crepúsculo desaparecia lentamente para dar lugar a uma tranquila noite de Dezembro. Os sinais de calçado deixados na terra batida denunciavam a presença provável de, pelo menos, três assaltantes. A pedrada na cabeça deve-o ter derrubado do veículo em que seguia. Os golpes nos braços denunciavam a desesperada tentativa de defesa perante os ataques desferidos. Os resultados da autópsia vieram a revelar que, no assalto, foram utilizadas, pelo menos, duas facas diferentes. Um golpe fatal atingiu-lhe o coração. Descobriram-se no terreno sinais reveladores de que o corpo teria começado a ser arrastado para fora da estrada, provavelmente para ser escondido numa mata próxima.

Todavia, o eventual receio de serem surpreendidos terá levado os assaltantes a desistir desse propósito, tendo acabado por abandonar o corpo, sem preocupações de ocultação, alguns metros além do local do assalto, na berma da estrada. A cerca de trinta metros, à entrada da mata, foi encontrada a carteira que o António trazia consigo. Ali foram recolhidas algumas impressões digitais bem nítidas, que, de imediato, foram enviadas para a sede, bem como a bicicleta desconjuntada. Paralelamente, iniciámos a recolha dos depoimentos relevantes.

A GNR local informou acerca da presença na zona de três ciganos com aspecto nada tranquilizador. Tinham sido vistos a comprar pão numa padaria e outros mantimentos em estabelecimentos das redondezas. Dois deles, com cerca de vinte e cinco anos, davam particularmente nas vistas: um, moreno e muito alto, com mais de um metro e noventa de altura e uma ligeira malha branca no cabelo; o outro, muito mais baixo, de pele e olhos claros, com barba crescida procurando disfarçar o lábio leporino. O terceiro era muito mais velho – andaria pelos cinquenta anos - e tinha estatura média.

Alguma coisa mexeu com o Chefe de Brigada, polícia que vivia a tempo inteiro a vida da Polícia, quando se falou num suspeito com “o lábio superior aberto”. Um telefonema para o ARI (Arquivo de Registos e Informações), serviço que, nesses tempos ainda sem computadores, era a verdadeira “memória da PJ”, permitiu-nos, dois dias depois, ter acesso à respectiva ficha policial. Tratava-se de um tal Ângelo de Jesus, também conhecido pelas alcunhas de “o Beiço Rachado” ou “o Fanhoso”, com os dados nominativos e sinaléticos conhecidos. A segunda alcunha resultava da deficiência na fala provocada pela fenda congénita do lábio e do palato.

Irmãos de leite, irmãos de sangue

N
ão era de etnia cigana. Fora abandonado à nascença junto de um acampamento de ciganos, então sedeado perto de Fátima. Foi “adoptado” por uma cigana, Berta de seu nome, uma jovem robusta que dera recentemente à luz um filho, a quem amamentava. O filho da Berta e o Ângelo cresceram assim como “irmãos de leite”, alimentados, acarinhados, repreendidos e castigados pelos “pais” como se fossem “irmãos de sangue”.

A natureza violenta do Ângelo e a sua capacidade de liderança levaram-no, por volta dos dezoito anos, a enveredar pela senda do crime, tendo já antecedentes penais pela prática de alguns assaltos, com roubos e ofensas corporais. À data do crime de Torres Vedras era uma figura em ascensão no “mundo do crime”. Uma mensagem/rádio da PJ dava-o como suspeito, em co-autoria, de um assalto a um casal de namorados dentro de um veículo automóvel, na região da Lourinhã, com a prática de graves ofensas corporais na pessoa do homem.

Obtida a identificação, foram cotejadas algumas das impressões digitais recolhidas na carteira da vítima com as impressões digitais do Ângelo. A comparação não deixava lugar a qualquer dúvida – o resultado foi positivo. Faltava, ainda assim, no plano da investigação, percorrer um longo caminho. Além da identificação dos restantes elementos do grupo de assaltantes, havia que averiguar a possível implicação da Sílvia, viúva do emigrante, enquanto mandante ou autora moral do crime.

Ouvidos os promitentes-compradores das propriedades do falecido, confirmaram a entrega, como sinal, de cerca de trinta contos, correspondentes a vinte por cento do preço acordado para a venda. E exibiram os recibos correspondentes, datados e assinados pelo António. O emigrante metera o dinheiro na carteira, que voltou a guardar no bolso interior do casaco. Perguntados, disseram que não era provável que alguém tivesse presenciado o acto de entrega do dinheiro, uma vez que estavam sentados num local retirado e tinham agido discretamente.

Mais informaram que o emigrante constituíra, no Cartório Notarial, o procurador que o iria representar na celebração das escrituras de compra e venda, já marcadas para o mês de Janeiro. Das informações recolhidas e das circunstâncias do assalto, podia-se ser levado a pensar que se estava perante uma emboscada premeditada, planeada com antecedência por assaltantes informados de que a vítima traria consigo uma considerável soma de dinheiro. O que, mais uma vez, nos remetia para a necessidade de investigar a jovem viúva.

Fomos falar com o procurador, Francisco Lopes de seu nome, natural da Freineda e comerciante estabelecido em Torres Vedras. Tratava-se de um patrício e velho amigo do falecido, sendo de presumir que estivesse bem informado sobre os acontecimentos que antecederam a tragédia.

Descontente com a vida

Começámos por lhe perguntar quais eram os propósitos da vítima, ao desfazer-se do património amealhado ao longo dos anos. Disse-nos que o António estava descontente com a vida, que “as coisas não andavam bem lá por casa” e que projectava vender tudo o que tinha “cá para baixo” e, com o produto das vendas, investir na sua região natal. Falou-nos da carta anónima, prevenindo acerca da eventual infidelidade da Sílvia.

Sem ser conclusivo, referiu um antigo romance de adolescentes entre a Sílvia e o Rodrigo, seu colega de Escola. Romance entretanto interrompido com o casamento dela e com a mobilização do jovem para Angola, de onde regressara, porém, havia já alguns anos. A Sílvia e o Rodrigo teriam voltado a conviver e, segundo alguns, as relações não seriam só platónicas.

Perguntado sobre a fonte do seu conhecimento dos factos relatados, o Francisco disse-nos que o essencial lhe fora contado pelo próprio António, poucos dias antes, quando lhe pedira para ser seu procurador. Estava bem lembrado das palavras amargas e misteriosas proferidas pelo amigo: “Olha, Chico … Não deve o remendão ir além da chinela”. Para melhor esclarecimento, o António teria acrescentado: “Ela não era forma para o meu pé. Sonhei alto de mais e paguei por isso”.

De qualquer modo, o Francisco estava convicto de que a Sílvia não era pessoa capaz de se envolver num esquema criminoso visando o assassínio do marido. Falámos com ela. Era efectivamente, e apesar dos anos passados sobre o seu casamento, uma bela mulher. Engordara alguns quilos em relação às fotografias do casamento. Mas a sua estatura suportava bem aquele aumento de peso, que apenas lhe modelava as linhas sob o vestido preto, tornando mais audaciosa a sensualidade daquela mulher ainda jovem, a caminho da maturidade.

Não se tinha oposto ao desejo da família do marido de que o funeral seguisse para a aldeia natal. Não disfarçou, porém, as más recordações deixadas pela deslocação. Ao desgosto da perda, somava-se a incomodidade da antipatia evidente para com ela. Valera o pequeno Daniel para “fazer a ponte” e derreter o gelo.

Perguntámos-lhe por que razão decidira o marido pôr à venda os seus bens. Respondeu, com aparente tranquilidade, que isso resultaria de ela ter recusado ir viver para França. Admitia, por isso, que o marido, homem de poucas falas, mais de agir do que de falar, estivesse a pensar separar-se dela. Explicava assim a razão da mudança de atitude do António para com ela: “Foi a família dele que o infernizou!”. Confirmou, todavia, que o marido nunca foi violento e raramente usou de linguagem ou modos agressivos. “Era um homem manso”, rematou. E, ganhando, talvez, consciência da associação induzida pelo adjectivo, apressou-se a esclarecer: “pacífico e boa pessoa”.

Mas não podíamos deixar de a interrogar sobre as suspeitas de infidelidade …

(continua)

quarta-feira, julho 25, 2007




Grades e copos

Antunes Ferreira
F
iapos esparsos semelhando escorridos de algodão sujo avançam sem grande vontade pelo azul álacre dum céu a precisar de retoques. Detrás das grades grossas de pau-ferro, Jacinto perscruta o horizonte, mãos enclavinhadas nos madeiros cruzados que parecem mais fortes do que se de metal fossem. Que porra de sorte a sua. Dois anos e picos de comissão, mato fora mato e, que sacanice, quando se chegava à cidade, uma puta duma emboscada e caçado à mão. Foda-se, que era pouca sorte.

Para trás ficavam recordações, muitas boas, algumas más. Lembranças e picadas, capim e saudades, terra vermelha e peles morenas e acetinadas, sangue e Macieira, burros de mato e leite em pó, funje e minas, batatas e camoquina, ligaduras e dolca, unimogs e bacalhau. E grão. E azeite. E vinho canforado. E vinagre. E jindungo, pica mas dá gosto. Ah, e quiabos. Que no Puto não há.

No chão de terra batida da cela está um prato de alumínio amolgado onde lhe puseram uma mistela de peixe seco com ervas boiando em óleo de palma espalhada por cima de arroz empapado. Frio. Também, com uma caloraça daquelas, que mal fazia se aquela bodega estivesse gelada, saída do congelador de uma geladeira imaginária? Esquadrilhas de mosquedo aterram na massa informe. Tem fome o Jacinto da Cruz Felperra, mas de outro manjar que não daquilo.

Está completamente desperto. Quando o tinham apanhado, ia ele a alapar-se na berma enlameada, zuniam tiros por toda a parte, levara uma porrada no toutiço e perdera os sentidos. Quando voltou a si, imerso numa escuridão bolorenta, doía-lhe a cabeça, mas não estava ferido. Apalpara-se para ver se tinha alguma coisa partida, um braço, uma costela, sabe-se o quê; apenas um galo no alto da cachimónia.

Por estas bandas o tempo é incerto, mais seguro no cacimbo, mais instável no calor com chuvas. E que chuvas. Portanto, não lhe admiraria que os farrapos que deslizam no astro, quais trenós em neve compactada, daqui a nada se transformem em borrasca de criar bicho. Mas, que raio de lembrança a dos trenós. Só faltavam as renas e o barbudo, e ainda nem sequer se estava no Outono.

Que aqui, Outono, Inverno, Primavera ou Verão pouco ou nada tinham a ver com iguais termos em Portugal. Cuidado, na Metrópole, já que ali, em Angola, também é. Uma Pátria una e indivisível, do Minho a Timor, nem mais. Nem menos, óbvio, isso queriam os comunas, roubar-nos as Províncias Ultramarinas, territórios sagrados que os antepassados ilustres nos tinham deixado – para que os guardássemos e acarinhássemos.

Vai-se fazendo noite, o pôr-do-sol alaranjado foi um ar que lhe deu. Tem a boca seca, e a sede ganha esporas. Fome, nada, basta olhar o prato para que, mesmo que a tivesse, ela se fosse e depressa. Não há garrafa de água, nem cântaro, nem bidon, nem caneca, nem sequer folha de palmeira que a agarrasse. Encosta-se ao quadriculado da janela e pede água em voz alta. Quase que berra.


Um preto claudica na sua direcção, saído de cubata mal amanhada. «Qué que você queres, seu portuga?» «Um pouco de água…» «Faz favor, também por cá usa, portuga.» Mancando, o homem volta para a cubata, onde entra, um tanto agachado porque a porta é pequena. Regressa com uma cabaça, entrega-lha por entre as grades. «Não gasta toda, tem de durar até amanhã», avisa-o, displicente.

Agora já é amigo?...

«Olha lá, amigo, e onde faço as necessidades?» O coxo olha-o enquadrado nas barras cruzadas. «Agora já é amigo?... Antes, turra…» Jacinto não sabe que fazer nem que dizer. Tem razão o gajo. (A gente a pensar que estes macacos eram todos burros. Olha-me só pra este. Amigo? Nem sequer conhecido, pensa ele e acertadamente). «Vai-lhe meter um balde e você fazes aí mesmo. Mas não chateia, senão mija e caga no chão…»

Está visto que assim não vai longe. Aliás a prisa nunca o deixaria ir onde quer que fosse, mais a mais com guarda ainda que manco. O homem não tem pinta de carcereiro. Mas, à bandoleira, traz uma kala, e dois carregadores redondos pendurados do cinto. O vestuário puído, está, porem, limpo, dentro do possível e do local, que não prima pelo brilho.

Outra ideia. Rosa pulcra. Na missa dos domingos, em pleno Inverno, o prior bufando do calor da braseira, faz um frio de rachar, afirmava-o com mais obrigação do que convicção. Jacinto bem gostava, agora, de voltar a experimentar nem que fosse uma vez apenas, aquela lida de sacristão que vivera durante um mês, no lugar do Pedro Carrapato que fora ajudar a mãe na azeitona.

Mas agora não se trata disso. Se as recordações são como os baloiços, vêm e vaiem, é melhor afogá-las para que não tenham um só sentido, pior que for apenas de vinda, sem volta. Porque ele quer voltar, ele vai voltar. Há um furriel miliciano, o Marques, que tem a mania de cantar sozinho, sem assistência, no banho de regador, mas em voz baixa, baixíssima, uma coisa que fala num soldadinho que vai numa caixa de pinho ou algo assim.

Porra! Ele vai voltar mas pelo seu pé, abrenúncio, cangalheiros e gatos-pingados não são para aqui chamados, caralho. Do bolso das calças rasgadas do camuflado sai como em passe de mágica de circo, um maço de AC, ainda que amarrotado. Está cheio, ou quase, pois antes do acontecido, ainda tirara umas fumaças, antes da cacetada. Há uns dois ou três cigarros partidos, é por um deles que começa.

Vai uma passa?

Não olha para ele, mas sabe que o seu guarda está de lâmpadas esbugalhadas olhando a pirisca. Como quem não quer a coisa, estende o braço entre os madeiros e na mão a outra metade do fumante. «Vai uma passa»? O coxo agita-se frenético, como aquele tipo de Manteigas que apanhara um raio que não o partiu, mas quase.

Claro que vai. «Tem lume»? O homem apanha um tição da fogueira já a cair para as cinzas e acende-lhe o meio cigarro, sé depois o dele. «Obrigado». E parece-lhe que se derreteu aquele bloco de gelo que o guerrilheiro era. «Olhe, portuga, não sabes quanto tempo eu leva sem fumar. Muito obrigado» reforça. Engole tanto fumo que se engasga e tosse escandalosamente.

«Pareço um miúdo que ainda não aprende como se fuma»… «Deixe lá isso, companheiro, a gente sabe o que são necessidades. Há quem diga que é um vício. A ser assim, é um pequeno, porque também há vícios grandes». E Jacinto ri-se da graçola que aprendeu já não sabe onde. «Patrício, eu chamo Kitombo João, andei na escola industrial na Huila, mas não lhe acabei».

«Pois eu sou o Jacinto da Cruz Falperra, natural de Moncorvo, Trás-os-Montes, se um dia lá for vai provar um buxo de se lhe tirar o chapéu, feito pela minha mãe, acompanhado dum verde tinto ainda melhor. Tiro e queda». «E o que é isso do buxo»? «É assim a modos que um chouriço mas mais gordo e sem tanta gordura. É de comer e chorar por mais»…

«Ó seu Jacinto, lhe gosta de burro do mato»? «Compadre, não me fale nisso senão começo para aqui a babar-me. Se gosto. Assado na brasa, com umas batatas metidas no borralho, com casca, é um vê se te avias. Burro do mato é melhor do que vitela. Um nada acima, só a posta mirandesa». O Kitombo ri-se, faltam-lhe três dentes, quase igual ao seu avô Faustino a quem já se foram quatro da frente. Tal como a este.

«Se tu me promete que não foge eu lhe abro a porta e vamos assar uma perna inteira. Cacei-o ontem, ainda está fresco, coberto com folhas de palmeira por causa das moscas. Tenho sal, óleo de palma e jindungo. Alho não tem. Mas não faz mal, não achas, portuga». «E eu ralado com o sacana do alho. Faz tanta falta como uma viola num enterro».

Não foge, seu Cruz

Agora sai uma gargalhada tonitruante, o João que também é Kitombo – raio de nome, mas o dele, Falperra também não é grande espingarda – quase cai no chão de tamanho gozo. «Não foge, seu Cruz» e vai abrindo a porta, levanta o travão que é um toro pesado, vê-se pelo esforço do preto. Jacinto sai, aspira o ar e dá-lhe uma mão para encostarem o tronco à parede de terra batida.

Não é uma trégua – é uma confraternização. Para eles a guerra não parou, já foi. «Se tivesse aqui o meu bornal outro galo cantaria» suspira o transmontano. «Olha tu, ó Jacinto, o bornal está ali, na palhota, no meio das tuas coisas que te tiraram quando te amachucaram o toutiço. Porquê»? «Já vais ver meu sacana». E corre a buscar algo de especial. Oxalá não se tenha partido…

Não partiu. É uma garrafa de uísque The Monkies, o alferes Daniel diz que quer dizer… E o Kitombo interrompe «quer dizer os monges, os frades, essa gente de hábito. Mas estes bebem-se…» É a galhofa. Entre risadas dedicam-se ao assado, vira daqui, torna dacolá, mais óleo, «não abuses do jindungo que pica como o caraças».

Jacinto, quase inconscientemente, repara que o seu companheiro de farra gastronómica já não fala pretoguês, antes um português correcto, sem pronúncia angolana. «Mas tu já pareces um branco a falar». «Não digas nada. Era a fingir para que não notasses. Eu nasci em Lisboa, pai incógnito, até andei a estudar na Fragata Dom Fernando. A minha mãe voltou com os cinco filhos e ficou em Sá da Bandeira. Onde teve mais três. Percebes»?

Está tudo esclarecido, percebidinho da costa, dá-lhe mais sal e, ainda assim, mais picante. O pernil rescende. Trescende. Coradinho por fora, sem estar queimado, de modo nenhum, e a garrafa vai-se esvaziando. Se outra houvesse. Há. Duas de Constantino que o Kitombo tinha guardadas para ocasião especial, sabe-se lá, boda ou baptizado, até mesmo velório.

Mais especial do que esta? Nada, não, impossível. «Sabes, voltei a Lisboa, estava no Sporting quando chegou o Dinis “brinca na areia” e vaticinavam-me um futuro no chuto. Ainda treinámos juntos. Numa manhã maldita, saltei do eléctrico no Lumiar e um carro apanhou-me, partiu-me a perna, ainda me operaram, mas já não havia Pattex que me consertasse. Fiquei assim, coxo para o resto da minha vida».

Fazer alheiras

Puta de vida. Jacinto adianta-lhe estórias da terra, dos nevões invernais, das castanhas. Kitombo – que, afinal, é Francisco, Kitombo é nome de guerra, o verdadeiro é Francisco João Neto – conhece. Foi uma ou duas vezes por lá, aprendeu a fazer alheiras. Um dia, deixo-me disto. «Quando Angola for livre e independente ainda vou ao Puto». «Espero-te lá, Chico, podes ter a certeza».

«É pá, ó Jacinto, tu vais-te pirar, antes dás-me uma trancada na moleirinha para disfarçar, apanhaste-me à traição… Mas antes despes o camuflado e pões outros farrapos dos meus. Mais: pintas o trombil com a cinza castanha, para pareceres preto e algum dos nossos te topar. Além do mais ainda a noite é uma criança, passas por patrício, com o barulho das luzes».

«Compadre, és um gajo porreiro. Comida feita, companhia desfeita. E bebida também. Estou mais do que zonzo, estou bêbado que nem um cacho…» «Eu também irmão. Mas tem de ser assim. Guerra é coisa péssima, mas é guerra…». Raio de fatalismo, não se pode mudar, mas melhores dias virão. «Chico, podes vir comigo até à picada grande, não vá eu perder-me de noite»?

«Posso, claro» E seguem os dois cambaleantes, arrimados um ao outro, amparando-se, uma risada pegada, a seguir vão separar-se, a picada é já ali, Jacinto terá de dar a cacetada no Chico, para fazer de conta, por causa das moscas. Silêncio – nada. Bem ao contrário.

Jacinto, por entre os vapores do álcool, lembra-se do final da cantiga do furriel. Desta vez o soldadinho (que vai num caixão de pinho) nunca mais se faz ao mar. Ele não tem nada com isso. Volta, direito, com a ajuda do Chico Neto, gajo porreiraço, não fosse ele. Param para um último abraço. O branco levanta o pau, o preto ri-se, não vai doer nada. Nisto, a rajada.

Os flechas saltam do capim da emboscada para a terra batida. Siô Inspector lerparam os dois, se acabou o cagaçal. Estão mortos mesmo, um atrás do outro, sangue os envolve, os irmana, já começa a empapá-los. Olha só patrício: esse preto é branco. Chamuscado.

segunda-feira, julho 23, 2007



Que língua se fala no Brasil?


Rosilene Rodrigues
Q
ue língua se fala no Brasil? A pergunta parece óbvia, pois todos sabem que é o português. Basta pegar um jornal, ligar o televisor, passar os olhos nas prateleiras de uma livraria, salta à vista que o português é a língua do Brasil! Observe que a pergunta faz referência apenas à fala e… será que falamos a mesma língua que escrevemos e lemos?

Há diferentes opiniões acerca do assunto; mas, para consolidar nossa opinião, observemos algumas situações concretas de uso da língua. Suponhamos que você está numa aula de Língua Portuguesa e se esqueceu de trazer o material necessário. O professor passa uma atividade e você diz ao amigo: - Me empresta sua apostila.

Ao ler a frase acima, muitas pessoas talvez nem reconheçam nela uma infração ao padrão culto da língua de tão comum que é. Note que essa é uma forma correta de falar naquele local e naquele momento. E que qualquer pessoa poderia utilizar uma frase como essa (não apenas as chamadas “pessoas incultas”). A frase acima pertence ao repertório lingüístico de qualquer brasileiro, pois é assim que falamos (ou você é daqueles que, pela manhã, dirige-se ao padeiro e diz: Dá-me dez pãezinhos?!). Podemos escrever diferente como, por exemplo, “Empresta-me sua apostila”, mas falamos daquele jeito.

Imaginemos outra situação: Um jovem , caminhando pela cidade, encontra-se com outro da “mesma tribo” e diz: “Fala véi, como cê tá? Tava falano docê gorinha mesmo!”
Essa frase, pode nos deixar estarrecidos, indignados; todavia expressões como “cê” (você) , “tá” (está) “falano” (falando) “docê” (de você) e “gorinha” (agorinha) são próprias da linguagem oral (apenas linguagem oral!).

Comece a observar, porque é assim mesmo que muita gente fala. Embora na escrita choque um pouco, porque está cheia de traços que não costumamos encontrar em textos escritos (ou pelo menos não deveríamos encontrar!): a preposição pra (em vez de para); o infinitivo vim (em vez de vir); a construção Você assistiu o filme? (em vez de Você assistiu ao filme?); a regência Professor, posso ir no banheiro? (em vez de Professor, posso ir ao banheiro?); as expressões fazer eles (em vez de fazê-los); o verbo tiver (em vez de estiver).

Na fala, o pronome nós é cada vez mais substituído por a gente, e, paralelamente, as formas de primeira pessoa do plural (fizemos, gostamos, íamos) vão caindo em desuso. Há pessoas que não as usam praticamente nunca. Querem mais? Na fala, a marca de plural não aparece em todos os elementos do sintagma. Assim, formas como “Esses aluno danado!” (ou ainda “ques aluno danado!”) está presente na fala de muitos de nós. Na escrita, naturalmente, a marca de plural é sempre obrigatória em todos os elementos flexionáveis: Esses alunos danados. Também é comum ouvirmos: “Cê vai saí com nóis?” , escrevendo, tem de ser: Você sairá conosco?

Acredito que não é necessário continuar. As diferenças são muitas, como todos sabemos. Elas constituem uma das dificuldades principais que enfrentamos nas instituições de ensino, ao tentar produzir textos escritos. Aliás, por que temos tanta dificuldade em escrever textos em português? Não é nossa língua materna?

A resposta é simples, mas pode surpreender alguns: não, o português escrito não é a nossa língua materna. A língua que aprendemos com nossos pais, irmãos e avós é a mesma que falamos, mas não é a que escrevemos. As diferenças são bastante profundas. Em outras palavras, há duas línguas no Brasil: uma que se escreve e outra que se fala. E é esta última que é a língua materna dos brasileiros; a outra tem de ser aprendida na escola, e a maior parte da população nunca chega a dominá-la adequadamente.

Mas não sejamos hipócritas em achar que tudo é permitido, pois, em determinadas situações comunicativas, espera-se da pessoa (dependendo da função social que ela exerce) uma linguagem (mesmo a oral) mais próxima da norma padrão escrita. Não se aceita que um administrador, por exemplo, num simpósio, fale “a gente fomos”, “pra mim fazê” (mim não faz nada!), “cê tá se empenhano”.

Na sociedade, exercemos papéis diferentes. Eu, por exemplo, mal deixo de ser mãe de um garoto de quase seis anos e já sou professora de alunos do sexto ano; algumas horas depois já sou professora da graduação, esposa, filha, funcionária, colega, amiga… E, em cada uma dessas situações, a linguagem é diferente (mesmo na fala!).

Falar ou escrever bem uma língua não significa usar em todos os momentos da sua vida, a norma padrão, mas sim adequar a linguagem ao ambiente, ao propósito enunciativo. Tanto é inadequado dizer “Por obséquio, passe-me a salada!” num almoço com a família, quanto um advogado dirigir-se ao juiz, num tribunal de júri, “Meu caro colega, o réu é inocente!”. A questão é de inadequação e não de erro.

Amar a nossa Língua

As coisas são o que são. Umas quantas pessoas ensinaram-me a amar a nossa Língua Portuguesa. Escolho: o meu tio e professor primário em Montalvão, Domingos Antunes; a Dona Clélia Marques, minha professora da quarta classe, na Escola Mouzinho da Silveira; a Dr.ª Maria Helena Lucas, minha professora no Liceu Camões e, a citação é de justiça e mérito, a Dr.ª Maria Lúcia Garcia Marques. Claro que livros e autores constam também de um acervo sem fim. Poderia aqui mencionar uns tantos, mas eles multiplicar-se-iam de tal forma, que cairia no ridículo de quase reproduzir um lista telefónica, ainda que das páginas brancas.

Sem cair na repetição calina, o blogue da Embaixada de Portugal no Brasil entrou de pleno direito nesta panóplia. O Francisco Seixas da Costa já faz parte, por isso mesmo (já fazia antes pelo mérito de primoroso cultor da nossa Língua) dos «culpados»a que acabo de me referir. Sem atenuantes, acentuo. Através do blogue tenho vindo a encontrar textos que reproduzo neste Travessa. O que muito gosto me dá, como podem compreender.


Hoje aqui registo o artigo da Dr.ª Rosilene Rodrigues de Carvalho que é Mestra em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal de Mato Grosso, UFMT, professora de Língua Portuguesa na Rede Pública Estadual de Ensino e na UESP-FAIESP, Universidade Especial Sobral Pereira – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da mesma. O artigo foi publicado em «A Tribuna», de Mato Grosso. A quem agradeço, bem como à Autora. Com uma promessa: vou continuar nesta senda e a ser vosso leitor.
A.F.

sexta-feira, julho 20, 2007




HISTÓRIAS DA PJ

Aconteceu no Natal ...

José Augusto Garcia Marques
Era emigrante em França há cerca de 12 anos. Trabalhava, como operário especializado, numa fábrica de automóveis, em Orléans. Saíra, já com trinta anos, da sua Beira Alta natal, na segunda metade da década de cinquenta, em busca de melhor viver. Alguns anos depois, com um pé de meia razoável, o António decidiu tirar férias para arranjar companheira, de preferência no torrão que foi o seu berço.
Afinal, veio a encontrar a Sílvia na zona de Sintra, mais concretamente na Praia das Maçãs, de onde ela era natural. Mais nova do que ele uns bons doze anos, era uma estampa de mulher – alta, com belas formas, clara de pele e de cabelo alourado. Até parecia uma francesa! Namoraram com o recato próprio dos tempos – estava-se no começo dos anos sessenta, Portugal embarcava para Angola “rapidamente e em força” e vivia com alguma angústia o começo da guerra de África.A Sílvia foi conhecer a família e a terra do António – uma das mais modestas aldeias do concelho de Almeida, chamada Malpartida.

Ficaram noivos e decidiram que o casamento seria no Verão de ano seguinte, na terra do noivo. Assim foi. O António já tinha trinta e seis anos, a Sílvia apenas vinte e quatro. As fotografias do casamento mostram um par feliz – ele, moreno e radiante, vaidoso da beleza da sua jovem mulher. Todavia, na pobreza de Malpartida, a figura vistosa da Sílvia e o seu ar de Senhora não caíram bem entre os convidados em geral e, em especial, junto das irmãs e cunhadas do noivo. O inverso também terá sido verdade. Aquelas mulheres escuras, pequenas e precocemente envelhecidas, com ar de permanente sofrimento, desagradavam ao temperamento extrovertido e alegre da noiva. Passava o ano de 1963.

Com grande desgosto do marido, a Sílvia não se adaptou à vida em França. Faltava-lhe o Sol! Como, entretanto, engravidou, decidiram que ela viria para Portugal, ficando a viver em casa dos pais até que tivessem condições para comprar uma moradia, ou, ao menos, um terreno para construir a vivenda, com jardim ou, até, com quintal. Entretanto, nasceu o Daniel, filho único do casal, o qual, com dois anos de idade, foi viver para a moradia que os pais entretanto compraram num lugar perto de Torres Vedras.

Vir a Portugal

O António continuava a vir a Portugal, todos os anos, no mês de Agosto e, em regra, de dois em dois anos, pela época do Natal. Quando não podia vir passar o Natal com a Família, era a Sílvia que costumava deslocar-se à França, mas não se demorava por lá mais do que dez ou quinze dias, argumentando que não convinha que o Daniel, ainda muito pequeno, passasse muito tempo sem a presença da Mãe.

Com desgosto para os seus pais e irmãos, o António passou a aplicar as economias do seu trabalho de emigrante na região onde tinha a casa de habitação. As deslocações a Malpartida foram mesmo rareando, uma vez que preferia passar as férias entre Torres Vedras e as praias mais próximas – Praia de Santa Cruz, Ericeira, Magoito, Azenhas do Mar, Praia das Maçãs, Praia Grande, Adraga ...Para a família do António, a culpada era só uma – a estranha que lhes roubara o António, que se recusava a acompanhar o marido, como lhe cumpria - sabia Deus por que razão ...- e que o afastava daqueles junto de quem nascera.

A carta anónima

Perto do fim do mês de Novembro de 1969, o António recebeu uma carta anónima, remetida de Leiria, que o preocupou muito. Nela se dizia que a Sílvia lhe era infiel e era aconselhado a vir a Portugal com urgência. Para “defesa da sua honra”, concluía-se. Não estava previsto que, nesse ano, viesse passar o Natal junto dos seus. Todavia, a carta fê-lo mudar de ideias. De qualquer modo, era uma forma de poder estar alguns dias com o filho. Decidiu nada dizer e, obtida a anuência dos patrões, partiu de automóvel para Portugal logo nos primeiros dias de Dezembro.

Entrou por Vilar Formoso e dirigiu-se logo a Malpartida, distante não mais de 20 quilómetros da fronteira. Ali passou, com os Pais, Irmãos e Sobrinhos, cerca de uma semana: pôs a conversa em dia, visitou amigos e conhecidos, deu notícias acerca da sua recente promoção, falou dos projectos de reforma e passeou pelos campos da sua infância.

Surpreendentemente, antes de partir, “fechou” o negócio de compra de uma garagem em Almeida, com papel escrito e assinado, servindo como contrato promessa. De acordo com uma das cláusulas, e como contrapartida do sinal por si deixado, o filho da sua Irmã mais velha, que enviuvara recentemente, passava a trabalhar na garagem como mecânico aprendiz. Prometeu que, no regresso, voltaria a passar pela sua terra e reforçaria então o sinal da garagem. Até talvez comprasse uma vinha na Vermiosa, freguesia a meia dúzia de quilómetros de Malpartida, com terras barrentas e xistosas, boas para a cultura do vinho. Partiu então para o Sul.

A sua chegada a casa constituiu motivo de forte surpresa. A mulher já estava intrigada, por não obter resposta telefónica. Censurou-o asperamente e ficou incomodada quando soube do desvio que fizera por aquelas terras “danadas” em que nascera, que ficam “lá por trás das pedras”, e “onde só se vai de propósito”. Aparentemente, o marido terá omitido a Sílvia o negócio da garagem.

Todavia, as surpresas não se ficavam por aqui ... Na verdade, para estupefacção geral, o António revelou a intenção de levar consigo para França, logo no fim das férias do Natal, a mulher e o filho. A oposição da Sílvia foi imediata e veemente, tendo-se seguido uma discussão muito viva, com ameaças de abandono do lar por parte da mulher. O António quis saber a razão daquela obstinação, que levava a Sílvia ao incumprimento de um dever fundamental por parte dos cônjuges. A resposta era sempre a mesma: ela não gostava da França, o Daniel era muito pequeno e os pais precisavam dela perto deles.

Perante aquela recusa, o António decidiu então que, com excepção da casa morada de família, iria vender todas as propriedades que adquirira na região, começando pelos prédios rústicos. O regime de bens do casal – separação absoluta de bens – permitia-lhe fazer isso, sem necessidade de consentimento da mulher, uma vez que os prédios eram exclusivamente seus. E, se bem o disse, melhor o fez. Deu publicidade à intenção de vender, identificou as propriedades e fixou o preço da respectiva venda. Preços genericamente tidos como muito acessíveis para quem estivesse interessado.

Alguns dias depois, ficou apalavrada a venda de dois prédios rústicos, que estavam de renda, sendo compradores os respectivos rendeiros. Estava-se perto do dia de Natal. O negócio ficou fechado por volta das quatro horas da tarde, à mesa de um restaurante, próximo de Torres Vedras, a cerca de três ou quatro quilómetros da casa do António.

Assassinado

Cerca de duas horas depois, o corpo do António era descoberto sem vida perto da berma de uma estrada de terra batida, crivado de facadas, com golpes visíveis nos braços, no tronco, abdómen e pescoço.
Não se descobriram no local as armas brancas utilizadas na prática do crime. Uma pedra ensanguentada e com cabelos colados estava caída perto do corpo. A bicicleta em que o emigrante se transportava também jazia, toda retorcida, por ali perto. O António não tinha dinheiro consigo. Por se tratar de homicídio praticado por desconhecido(s), a GNR de Torres Vedras pediu a intervenção da PJ, detentora da competência exclusiva para a investigação do caso. Distribuído o processo à minha Secção, partimos de imediato para o local do crime.

(continua)

sábado, julho 14, 2007






Acordo
ortográfico




Nelly Carvalho
A
cordo ou desacordo? Parece que ninguém se entende bem nesta questão de ortografia da língua portuguesa, sobretudo os maiores interessados que são os povos que a falam. Cada um acha que o outro foi o privilegiado na escolha da forma de escolhida para a grafia e todos temem se atrapalhar na hora da mudança.

O acordo ortográfico começou a tomar forma em 1986 e foi decidido por uma comissão formada de um brasileiro - Antônio Houaiss – e vários portugueses, além de observadores das repúblicas africanas de fala portuguesa. A pretensão inicial era apenas a louvável unificação das ortografias brasileira e portuguesa. Mas, desde o princípio foi olhado meio enviezado e com má vontade e chegou a ser chamado Acordo Mortográfico, porque achavam que não emplacaria. Agora, entretanto, parece que vai emplacar e entrar como norma.

Porém, o projeto inicial ampliou-se e foram incluídas a abolição do hífen, do trema e do H interior. Só faltaram incuir a abolição da escravatura... O Y,W,K voltarão triunfantes. A primeira vista parece simplificar a nossa vida, esta atualização do código escrito. Mas, na realidade, embutidas nestas regrinhas simples, estão as exceções que vão ser pedras no sapato do já mal alfabetizado povo brasileiro. Afinal, a palavra escrita é um retrato que temos na mente, e a ausência do hífen iria provocar grafias quilométricas que são avessas ao espírito da língua portuguesa, de certa forma, assemelhando-a ao alemão, esse sim, com uma longa tradição aglutinativa.

A primeira ortografia da língua portuguesa pertence a uma época remota quando o Brasil ainda não existia como nação. Foi a fase fonética e reinou durante este período a anarquia ortográfica. A seguir, por influencia dos escritores clássicos chegando aos românticos, tivemos um período do pseudo-etimológico, quando ressuscitaram letras mortas e sem valor fonético. Foi o tempo da “asthma” e da “phtysica”.

A partir de 1911, Gonçalves Viana, em Portugal, lançou bases da atual ortografia, adotada no Brasil com modificações, oficialmente em 1943. E é a que usamos hoje. Posteriormente, houve uma tentativa mal sucedida de reformulação e unificação em 1945, logo anulada. Chegou a ser ensinada nas escolas e adotada em livros didáticos. Mas foi revogada. A partir de então, a Língua Portuguesa ficou com as duas ortografias oficiais, o que se tornou um problema mais político que lingüístico, pois a língua portuguesa ficou regida por duas leis ortográficas, o que acontece com nenhuma outra língua.

Continuando as mudanças unilaterais, em 1971, foram suprimidos os acentos diferenciais – ainda hoje usados (sêca – seca/ côco -coco), inadvertidamente, por muitos que foram alfabetizados antes desta data.


O atual projeto de reforma que partiu de uma acertada decisão de unificar as “grafias” (porque nem a língua, nem os usos, nem as pronúncias jamais serão regidos por lei) ao ampliar-se, encontra ainda forte reação, sobretudo dos intelectuais portugueses.

O acordo/desacordo será uma adaptação, um ajuste, havendo inclusive, casos opcionais. É como funcionam as reformas ortográficas em espanhol, sabiamente conduzidas e autoritariamente impostas pela Real Academia Espanhola a todos os países "hispanohablantes”.

A reforma é apenas uma pequena tentativa de atualização de grafia, ajustando-a aos usos comuns dos povos lusófonos. Vamos chegar a um acordo sobre o que for resolvido sobre nossa ortografia?
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Abaixo as alíneas

Antunes Ferreira
A Professora universitária Nelly Carvalho já teve um texto de sua autoria publicado neste blogue, o que me deu muito prazer e, por certo, aos leitores que o visitam. É uma estrénua defensora da nossa língua. De resto, lecciona Português na Universidade Federal de Pernambuco.

O artigo, como habitualmente, foi publicado no PE360GRAUS da Globo, a quem endereço os meus parabéns e os meus agradecimentos. Outro tanto vai para o blogue da Embaixada de Portugal no Brasil que frequentemente dá a conhecer os trabalhos de Nelly Carvalho.

Reincido: Nelly Carvalho regressa ao Travessa do Ferreira. De novo respeito a grafia da professora, tanto mais que o título deste seu texto é sintomático – Acordo Ortográfico. Malaca Casteleiro, o ponta-de-lança da equipa portuguesa neste imenso e complicado assunto (para usar linguagem futebolística em que o desacordo é abissal…), ainda terá que esperar muito pelo fim deste ciclópico cometimento.

Entretanto, todos os contributos são bem vindos para se «ressuscitar» um acordo a que, como diz a professora Carvalho, muitos chamaram «Mortográfico». Estou certo de que todos os que falam a língua de Camões, Jorge Amado, Pepetela, Craveirinha, Corsino Fortes ou José Rangel, estão empenhados e terão de assim continuar num documento que seja actual, verdadeiro, coerente e actuante, sem se limitar a texto com parágrafos, números e alíneas.

Sejamos realista – que o mesmo é dizer práticos. Uma língua constrói-se, aprimora-se, desenvolve-se enquanto praticada por seres – vivos. De contrário, é uma língua morta.




sexta-feira, julho 13, 2007




À RODA DOS DIAS

Julho

Maria Lúcia Garcia Marques

Que supersticioso e mágico nos saiu este mês de Julho!

Uma 6ª feira 13 (dia de todos os perigos)
e, sobretudo, um 7 do 7 de 2007 que, em rima absoluta, inflama, nesta sua conjunção, os espíritos mais crédulos. E foi um corre-corre de casamentos e festas de aniversário – não contando os felizes acasos de alguns nascimentos – acontecimentos que, pela sua natureza própria, são altamente mobilizadores dos bons auspícios. É que sete invade a vida; vai da conta dos dias aos contos de fadas: sete são os dias da semana, as cores do arco-íris, as notas da gama diatónica ..., os anõezinhos da Branca de Neve, Polegarzinho e os seus irmãos ...

De facto e definitivamente o 7 é supersimbólico. A merecer uma consulta ao Dicionário dos Símbolos que nos lembra, a propósito: “Cada período lunar dura sete dias e os quatro períodos do ciclo lunar (7x4) fecham o ciclo. Por outro lado, a soma dos sete primeiros números (1+2+3+4+5+6+7) chega ao mesmo total: 28. Sete indica, por isso, o sentido de uma mudança depois de um ciclo concluído e de uma renovação positiva”.

Visto de outra perspectiva temos que “tendo criado o Mundo em seis dias, Deus descansou no sétimo e fez dele um dia santo: o sabbat – que não é verdadeiramente um descanso desligado da Criação mas o seu coroamento, a sua conclusão na perfeição. Este sétimo dia em que Deus descansou significa como que a restauração das forças divinas na contemplação da obra concluída, e marca um pacto entre Deus e o Homem”, entre o Criador e a sua Criatura. O sete simboliza assim a conclusão do Mundo e a plenitude dos tempos. São também sete as virtudes: as três teologais – Fé, Esperança, Caridade – e as quatro cardeais – Prudência, Temperança, Justiça e Força.

E acrescentam as minhas leituras: “No Islão, o sete é igualmente um número auspicioso, símbolo de perfeição: sete céus, sete terras, sete mares, sete divisões do Inferno, sete portas. Os sete versículos da Fatiha (surata que abre o Corão), as sete letras não utilizadas do alfabeto árabe que “caíram debaixo da mesa”, as sete palavras que compõem a profissão de fé muçulmana, a Shahada, etc. Durante a peregrinação a Meca deve-se dar sete voltas à Caaba
e fazer sete vezes o percurso entre os montes Cafa e Marnia”.

Também em África, o sete é o símbolo da unidade e da perfeição; “soma o “4”, símbolo da feminilidade e o “3”, símbolo da masculinidade, pelo que representa a perfeição humana – é o sinal do homem completo (com os seus dois princípios espirituais de sexo diferente), do mundo completo, da criação terminada, do crescimento da natureza. É, ainda, a expressão da Palavra Perfeita e, por isso, da unidade original”.

Se acreditarmos no Talmude, os hebreus viam também no número sete o símbolo da totalidade humana, masculino e feminino ao mesmo tempo; e isso pela soma de “4” e “3”: com efeito, Adão, nas horas do seu primeiro dia, recebe a alma que lhe dá existência completa na hora quarta e é na hora sétima que ele recebe a sua companheira, isto é, que ele se desdobra em Adão e Eva. Aliás, toda a Bíblia está repleta da simbologia do “sete” que a tradição judaica ainda preserva. Lembremos como exemplo o candelabro dos sete braços ...

E creio que tem também a ver com esta tradição um facto curioso acontecido comigo. Foi assim: herdeira de uma velha casa na aldeia de meus sogros e pai, na Beira Alta, decidi recuperá-la, conservando-lhe as características e restituindo-lhe a visibilidade dos materiais típicos da zona. Nessa intenção, mandei retirar o reboco caiado, tratar adequadamente a pedra agora posta a descoberto e picar o granito dos cunhais e molduras de portas e janelas “criminosamente” pintadas de cinzento.

A casa é tipicamente beirã: lojas em baixo com duas grandes portas térreas, habitação no andar superior a que se acede por uma porta ao nível das lojas, ladeada à esquerda por um pequeno óculo. Construção modesta, possui, no entanto, numa janela do 1º andar e numa das portas das lojas, um trabalho de cantaria na moldura superior: arco de quilha quebrada na janela, ornamento gótico do meias bolas na porta da loja. Ao observar este último, alguém comentou: “É engraçado, só tem cinco meias bolas ...! Se fosse casa de judeu teria sete”. Fiquei alerta.

Estávamos numa aldeia em pleno perímetro dos judeus fugidos à perseguição dos tempos de D. Manuel I (entre Belmonte e Escalhão) e, olhando bem, além das características gerais da casa – as lojas e o janelo junto à porta, que permitia ver quem batia antes de se lhe franquear a entrada – que indiciavam ter ela pertencido a um comerciante (e os judeus eram-no preferencialmente), divisava-se um remate assimétrico nas ombreiras da porta ornada com as referidas meias bolas. Do lado direito o sulco do remate inferior do friso formava um ângulo recto perfeitamente visível, enquanto que do lado esquerdo desaparecia subitamente sob uma espessa camada de argamassa pintada de cinzento.

Recomendei então ao artista que iria picar o granito das ombreiras que o fizesse com o máximo cuidado pois o friso poderia não acabar ali. E, de facto, três dias depois, estavam a descoberto mais duas meias bolas, o remate adequado do friso com o sulco em ângulo recto descendente e uma falsa segunda ombreira colocada ao lado da primitiva estreitando a porta e rebocada de forma a apagar os relevos denunciadores. Eram sete as meias bolas e estávamos de facto perante uma casa de antigos judeus.

Lançada, porém, no afã de lhe desvendar mais história, esquadrinhei cantos e recantos, lajes e cantarias e acabei por descobrir, meio apagada e toscamente gravada no granito da ombreira esquerda da porta de entrada, à altura média dos olhos de qualquer visitante, uma cruz – envergonhada, reticente ou arrependida, quem sabe? – ténue e sofrida protecção de quem morava lá dentro e a custo sobrevivia a zelos fundamentalistas. Mandei também avivá-la na pedra, feliz por, na minha casa e na minha terra, hoje um símbolo de fé já não excluir o outro.

terça-feira, julho 03, 2007




Clima económico em Portugal
atinge máximo de cinco anos

em Junho


Maria João Soares
mjsoares@mediafin.pt
O
indicador de clima económico em Portugal apresentou em Junho a quinta melhoria consecutiva, prolongando a tendência ascendente iniciada em Outubro de 2005 e atingindo o máximo desde Junho de 2002, divulgou o Instituto Nacional de Estatística (INE).
O indicador de clima económico subiu para 1,4 pontos em Junho, contra 1,2 em Maio, apresentando o quinto aumento consecutivo.

O indicador de confiança dos Consumidores melhorou ligeiramente em Junho, tal como já acontecera no mês anterior, evolução que interrompera a tendência descendente iniciada em Novembro.

"As perspectivas sobre a situação económica do país foram a componente do indicador que apresentou a maior recuperação, à semelhança do sucedido nos dois meses anteriores", revela o INE.

A confiança das empresas melhorou no sector da Construção, estabilizou na indústria transformadora e deteriorou-se ligeiramente nos serviços e no comércio.


NETranscrevo, muito simplesmente, o texto da jornalista Maria João Soares, do Jornal de Negócios. Não são precisos quaisquer considerandos, muito menos adjectivos qualificativos (se calhar já não é assim que se diz…, mas foi assim que aprendi com a Dona Clélia Marques, minha Professora da Instrução Primária… que também já não se diz). Agradecendo à jornalista, ao DE e, uma vez mais, ao seu Director e bom Amigo, Pedro S. Guerreiro, aqui fica o artigo. A.F.

domingo, julho 01, 2007



Joaquim Barradas de Carvalho

Um lutador pela Liberdade

«Meu caro Antunes Ferreira,

Por mero acaso, encontrei no teu blogue (que não conhecia) uma referência à minha pessoa. Agradeço a referência, mas sou obrigado a fazer uma correcção: o meu pai foi o Joaquim Barradas de Carvalho, historiador, exilado político em Paris e em São Paulo, e não o Rómulo de Carvalho.
E como andas?
Um grande abraço
Alberto Arons de Carvalho»


Engano lamentável
Hoje mesmo, acabo de receber uma mensagem do meu bom Amigo e camarada (creio que ainda se pode dizer assim… Eu, pelo menos, digo. E tenho a certeza que ele também) Alberto Arons de Carvalho*. Publico-a acima, pois o erro que cometi é lamentável e o esclarecimento do Alberto é mais do que justificado. Como quase sempre, ele tem razão. Não posso, entretanto, deixar de lhe pedir aqui as minhas desculpas por esta falta imperdoável. Não podia confundir as duas pessoas – mas fi-lo. A César o que é de César.

Permito-me fazer notar a forma directa, mas educada e sincera como o Arons se me dirige. Ele não é – como nunca foi nem será – de farroncas ou de arrogâncias. Muito pelo contrário. Podia censurar-me (e com toda a razão, porque não se deve esperar uma falha destas de um amigo de muitos anos) mas, não o fez. Limita-se, apenas, a corrigir o erro. Simplesmente, com objectividade.

Tenho a maior honra e satisfação de aqui exarar que conheci o Alberto Arons de Carvalho nas fileiras do PS, logo a seguir ao 25 de Abril libertador. Ele era, nessa altura, um jovem porreiríssimo e empenhadíssimo, secretário-geral da Juventude Socialista, a JS. Não haja dúvidas: um digno herdeiro de seu Pai, o Professor Joaquim Barradas de Carvalho, um lutador pela Liberdade e pela Democracia. À sua maneira, à maneira do comunista que era, mas de mentalidade aberta e, portanto, vistas largas. E que por isso sofreu nos tempos da ditadura personificada na salazarenta personagem.

Confundi-lo com Rómulo de Carvalho/António Gedeão não lembra ao diabo – mas lembrou-me; a mim!!! Até porque tive o privilégio de ter conhecido o historiador Barradas de Carvalho pessoalmente. Que tendência para a asneira, confesso. Daí esta correcção, este repor da verdade que atropelei incompreensivelmente. Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. E dispenso-me de acentuar que bato no peito, mas devagarinho, porque posso fazer-me doer as duas costelas que in illo tempore a PIDE me partiu.

Um apelo final. Meu caro Alberto: já que descobriste (ainda que por mero acaso) este blogue – não quererás, de quando em vez, colaborar nele? Ficaria eu e ficariam os já bastantes leitores que ele tem, muito satisfeitos. Vá lá, camarada: um pequeno esforço e responderás antecipadamente, tu próprio, à pergunta que me fazes com a Amizade de sempre. Ando bem, ando reformado, escrevo como sempre fiz e tudo isso se sublimará com a tua colaboração. Se te for possível e se o quiseres.

Um abração do

Henrique Antunes Ferreira



* O Alberto Arons de Carvalho é um Homem multifacetado. Licenciado em Direito, já foi Jornalista e membro do Conselho de Imprensa, secretário de Estado para a Comunicação Social e muitas outras ocupações. Autor de várias obras sobre a Comunicação Social, o que já fazia nos tempos da Outra Senhora. Entre os seus diversos livros, tenho uma especial predilecção pelo 2Direito da Comunicação Social", para mim uma referência incontornável. Hoje é deputado por Setúbal à Assembleia da República e professor da Universidade Nova.


HISTÓRIAS DA PJ


A morte do cauteleiro

José Augusto Garcia Marques
Eram aproximadamente duas da manhã de uma noite abafada do mês de Junho de 1969 quando fui acordado pelo chefe de piquete da PJ. Tinha sido encontrado um corpo sem vida, num descampado para os lados do Lumiar. Combinámos que uma viatura com dois agentes das secções de homicídios e um técnico do laboratório viria buscar-me a casa. Chegados ao local – ermo e sem iluminação -, dirigimo-nos a dois guardas da PSP que, munidos de uma lanterna, estavam postados junto de uma pequena elevação do terreno.

Perto deles encontrava-se o corpo de um homem magro, de cinquenta e tal anos, deitado de barriga para baixo, tendo ao lado uma tesoura comprida e pontiaguda, manchada de sangue. Tinha uma ferida profunda no pescoço e uma poça de sangue ao lado da cabeça, que se misturava com vomitado com forte cheiro a vinho. O corpo encontrava-se estendido numa rampa de terra batida, havendo, porém, no terreno seco e duro, sinais de calçado de diversas origens, rastos com diferente definição, mais claros uns, outros mais indefinidos e alongados.

Nos bolsos das calças do morto havia algumas notas de 20, 50 e 100 escudos, além de um porta-moedas com algum recheio. Por sua vez, no bolso da camisa, algumas “cautelas da Santa Casa” denunciavam a actividade da vítima: tratava-se de um vendedor de lotaria. Além destas peças de roupa, o homem vestia ainda, apesar do tempo quente, um casaco leve e muito gasto. Não trazia qualquer documento. Feitas as recolhas de vestígios e as fotografias da praxe, o corpo foi removido para o Instituto de Medicina Legal.

Um dos agentes da PSP, melhor conhecedor do local, deu-nos conta da existência de uma taberna nas imediações. Apesar da hora tardia - ou matutina, dependendo dos pontos de vista -, fomos ainda bater à porta, tendo sido atendidos pelo patrão que vivia ao lado do estabelecimento e que, mal encarado, tinha vindo informar-se do que se passava.

Cheirar o ambiente

Perguntámos-lhe a que horas tinha fechado na noite anterior e se lá tinha estado um cliente, vendedor de lotaria, com sinalética correspondente à da vítima. Foi altura de o homem perguntar: “Quem? O Ti Jerónimo?” E logo informou: “Chegou tarde, comeu pouco mas bebeu mais do que de costume. Tive que o pôr na rua, porque estava implicativo por causa dos copos e eu queria fechar”.

Recolhemos a identificação do nosso interlocutor – Raul (nome fictício) - e, depois de explicarmos o que nos levava ali, informámo-lo de que voltaríamos no dia seguinte à hora de almoço, a de maior movimento do estabelecimento. Ainda protestou, alegando que era a pior altura para nos prestar atenção. Interessava-nos, porém, respirar a atmosfera, cheirar o ambiente e conhecer alguma da clientela habitual.

No dia seguinte, de manhã, com mais tempo, voltámos ao local. O terreno foi minuciosamente analisado, recolhendo-se indícios que depois seriam cotejados com os resultados médico-forenses e de polícia científica. Na taberna, à hora do almoço, encontrámos o Raul, acompanhado pela mulher e mais meia dúzia de fregueses. O assunto da conversa era, como não podia deixar de ser, a morte do “tio Jerónimo”. Dos elementos recolhidos pudemos traçar-lhe o retrato. Era um homem solitário e estimado, não lhe sendo conhecidos inimigos. Vivia numa barraca próxima, para onde se devia dirigir quando a morte o ceifou.

Procurámos saber se, na noite da véspera, o “tio Jerónimo” tinha tido alguma discussão com alguém. Reparámos com estranheza que a mulher olhou para o marido, ao mesmo tempo que um e outro baixavam o tom da voz, evitando responder directamente à pergunta. Limitaram-se a dizer que o Jerónimo estava quezilento e mais nervoso do que era costume.

Insistimos. Pedimos à patroa que nos levasse à cozinha e aí, fora do olhar dos fregueses, confirmou-nos que o Jerónimo tinha discutido longamente com um vendedor ambulante que, de longe em longe, parava por aqueles sítios. Gaspar de seu nome. A desavença incidira em redor de uma tesoura para cortar a lotaria, que o outro lhe tinha vendido tempos atrás. Queixava-se de que tinha sido enganado e que a tesoura se tinha estragado ao fim de pouco tempo. A desavença subiu de tom, tendo levado o patrão a zangar-se com os dois. Todavia, como tudo continuasse na mesma, resolveu pô-los na rua, tendo fechado a porta da taberna pouco antes da meia-noite. Mais nos disse que tinham sido os últimos clientes a abandonar o estabelecimento, tendo saído juntos e prosseguido a discussão no exterior até que deixou de lhes ouvir as vozes.

O “Paga-Pouco”

Perguntámos à nossa interlocutora como era a tesoura do “tio Jerónimo”, tendo-nos dito que era relativamente curta e romba na extremidade, ou seja, um objecto muito diferente do que encontrámos junto ao corpo – uma tesoura comprida e com as lâminas afiadas. Confirmámos esta informação junto de alguns clientes, que identificámos. As coisas pareciam, assim, apontar para um suspeito: o referido vendedor ambulante, mais conhecido como o “Paga-Pouco”. O mistério foi esclarecido no dia seguinte.

Localizado o Gaspar, confirmou-nos a discussão com o Jerónimo, que se queixara asperamente de uma deficiência no parafuso que devia permitir a junção das lâminas da tesoura que lhe tinha vendido em tempos. Para não o ouvir mais, propôs-se o “Paga-Pouco” emprestar-lhe uma tesoura nova – longa e muito afiada -, que o Jerónimo utilizaria, enquanto ele, antigo amolador de tesouras, procedia ao arranjo da velha. E assim foi. Deslocou-se, com o vendedor de lotaria, à sua “carripana” onde escolheram a tesoura nova que o Jerónimo guardou. Segundo disse na PJ, o Gaspar ainda teria prevenido o Jerónimo, dado o estado em que o viu, quanto aos cuidados a ter com um objecto perigoso a que não estava habituado. Ter-se-iam despedido cordialmente. Pedimos ao vendedor ambulante que nos exibisse a tesoura romba do falecido, o que ele fez sem demora, tendo o objecto ficado apreendido junto aos autos.


A importante Medicina Legal

O depoimento do “Paga-Pouco” pareceu convincente, tendo sido confirmado por uma testemunha merecedora de crédito. O mistério continuava por resolver. Foi aí que entrou a sempre competente intervenção do Mestre da Medicina Legal de Lisboa, o Professor Arsénio Nunes, amigo e precioso auxiliar dos investigadores da PJ: estava-se claramente na presença de um acidente e não de um homicídio. O falecido, talvez em consequência dos “copos” escorregara ao subir a rampa de terra dura e batida, tendo feito um movimento amplo com os braços em rotação para trás, para tentar manter-se em pé. Trazia a tesoura, que o “Paga-Pouco” lhe emprestara, no bolso de cima do casaco, do lado esquerdo. Ao fazer o referido movimento, empurrara a tesoura, comprida e pontiaguda, há minutos na sua posse, que fora espetar-se-lhe no pescoço perfurando a carótida, tendo provocado a hemorragia que lhe causou a morte.

O Professor Arsénio Nunes deu-se ao trabalho de fazer uma simulação com um manequim, tendo exemplificado o movimento que esteve na origem da morte do infeliz. Se conto este episódio, isso deve-se à circunstância de pretender prestar uma sincera homenagem a esta especialidade da Medicina – a Medicina Legal -, que é, por definição, área privilegiada de confluência da Medicina e do Direito. Por ela passam e nela se debatem temas e questões da mais transcendente importância para o homem, não só enquanto vítima ou autor de factos criminosos, mas também enquanto profissional daquelas ciências. No dia a dia das respectivas existências, Medicina e Direito cruzam-se e amparam-se nas suas respectivas competências, para melhor conhecer, defender e fazer respeitar o Homem integral, na intangibilidade dos seus direitos e na integridade da sua pessoa física e moral.

A Polícia Judiciária e a Medicina Legal devem caminhar, assim, irmanadas e sem desfalecimento na senda que possa conduzir à descoberta da Verdade e à realização da Justiça.