sexta-feira, agosto 31, 2007

SOMBRA DA GUERRA COLONIAL

Sanfona dum raio


Antunes Ferreira
S
ou de Boivão. Não entendo esse franzir da testa. Toda a gente sabe onde fica, isto é, quase. É uma freguesia de Valença, que continua a mirar Tui. E faço parte do Rancho Folclórico de lá. Fazia. É melhor explicar. Hoje faço parte da Companhia de Caçadores que está colocada em Pedra Verde. Assim, só quando voltar ao Puto é que também voltarei aos viras e aos malhões. Até lá, a música é outra.

Os instrumentos são muito diferentes. Não cavaquinho, sanfona, ferrinhos ou bombo. Não senhor. Há costureiras, há granadas de mão, há G3, há bazucas, há morteiros, todos afinados para a guerra mas desafinados para a música. Sons completamente diferentes, diapasão diferente, decibéis diferente e por diante. Mais a mais, sem pauta, sem claves, sem colcheias.

Estão, se calhar, admirados de eu saber tudo isto no que ao musical diz respeito. Mas, se eu vos disser que alem de instrumentista e bailador, também era ajudante do regente, então percebem. Até já substituíra o maestro por algumas vezes. Não foi muito difícil. Com batuta devia ser muito mais; mas, nestas andanças das danças não se usa o pauzinho.

Ah, é importante que diga para completa elucidação de todos vós, que a minha conversada, a Maria dos Anjos, também faz parte do grupo. É bailadora e muito gira. Fica-lhe bem o vestido de noiva que usa nos espectáculos. Roliça, alta, bonita, tem tudo o que uma mulher deve ter e nos sítios do costume. Não conto mais nada, senão lá volto à pívea aqui do mato. É o que há.

É engraçado. O contraste do branco da vestimenta com os outros, vermelhos, fica-lhe bem. Muito bem mesmo, As arrecadas são, até, mais vistosas. Se calhar é do olho do artista, cá do Epifânio que sou eu. Epifânio dos Santos Carvalho, um criado às vossas ordens. Aliás, bem criado, com catequese e tudo, que o meu Pai que Deus tenha e a minha querida Mãe não eram de modas.

O nosso capitão Salvado, quando estávamos na especialidade de Caçadores Especiais, na Amadora, disse-me que levasse o acordeão para Angola. Assim fiz. Já no barco fora uma amante dedicada, sem protestos nem amuos, sempre à disposição. Sanfona dum raio! O Nunes, sapateiro na vida civil, classificara a instrumento. Melhor do que uma mulher: está sempre de perna aberta. E não tem o Benfica todos os meses…

Aquelas do António Mafra

Quando andámos a construir os jotacês, a estender o arame farpado e a cavar os abrigos, mal dava a noite, era um primor. O pessoal pedia-me coisas do arco-da-velha. Ó Epifânio, sabes aquela do António Mafra, no baile da dona Ester? Sabia. Sei, meus, sei. Com o Dom José de Vicente; que é de São Pedro da Cova; pra mostrar qu’inda é valente; foi dançar a bossa nova. Escorregou no soalho, caiu foi pró hospital; eram praí sete e picos, oito e coisa nove e tal.

E o carrapito da Dona Aurora que é tão bonito – fica-lhe bem. E o papagaio, tu não te metas na vida do Joaquim; ó papagaio, tem cautela ó papagaio; que a bebedeira do velho te transforma em pinguim. Outros pediam a Eugénia Lima. Alto lá, tive de explicar-lhes que era uma Senhora, rainha do acordeão, eu era apenas um mísero tocador de sanfona.

Mesmo assim, o breu era mais fácil de passar. Até ao primeiro ataque. Os gajos vieram de mansinho, se fosse o mestre diria mesmo soto você, piano, piano, pianísimo, chegaram à beirinha do arame e vá de despejar chumbo em quantidades industriais. O furriel Mendonça nem soube do que morrera, um buraquito no meio da testa e a parte de trás da cabeça – zero.

O Quim Cuecas, assim mesmo, natural de Malange, terra do feijão branco, que se auto-apelidava Castanho e era da incorporação da Província (colónia não havia), depois de passada a fuzilaria, disse tratar-se de bala de ponta romba, para elefante, entra direitinha e sai a romper tudo, mioleira e ossos, Cortam a ponta, os filhos da puta.

Abatidos foram, ainda, o Chico Rodrigues, o Caté, meu vizinho de Gondomil, ficou um passador, as tripas de fora, duas ou três rajadas de Kala ou outra assim; o António Martins, de Viana uma morteirada, andámos a varrê-lo para juntar os bocados dele e a minha concertina. Furada de lado a lado, inchada da chuva que caía, pior do que vaca prenha.

A todos se fez o funeral, com o capitão capelão, um tal Bragança. Todos foram ensacados e metidos nos caixões que ali tínhamos, com o nome e o endereço pregados por fora, a fim de seguirem para a Metrópole. Menos a desditosa sanfona. Bem tentou o Raimundinho, que arranjava pneus na civil e não era especial adepto do mulherio, tapar os buracos, nas zonas dos foles. Em vão.

Rabo de homem

Por isso, agora, já não há. Nem instrumento, nem música, nem cantigas, nem mulherio. Dizem que o Raimundinho dá um jeito… Eu nunca tentei. Rabo de homem tem pelo como o do macaco. Bom, se calhar menos. Mas, mesmo assim, como nunca experimentei… Porra! Nem conto!

Hoje estou de sentinela. Nesta altura do campeonato, o hoje repete-se indefinidamente. Com os turras aqui ao lado, a gente não os vê e, de supetão, dá merda. Sobretudo, de noite, como é o caso. Mal sonhava eu, em Boivão ou em Valença onde trabalhava de barbeiro – bom, para ser verdade, de praticante de – que meses depois estaria aqui, de quico na cabeça e arma aperrada, temendo ter de soltar um quem vem lá?

Mas, prontos. Um homem tem de pensar noutras coisas, e estar alerta ao mesmo tempo. A esta hora, por certo, o Rancho não está a actuar. São três e meia da matina e a Maria dos Anjos já deve estar no segundo sono. Deve estar a sonhar comigo, penso. Na última carta diz-me que está à minha espera, mas que não vá de licença, é caro e temos de juntar para o casório.

Pode ser que esteja descascadinha, é tempo de calor, só com o lençol por cima, nunca a vi assim, mas é como se tivesse olhado, guloso. Pelo andar da carruagem, deve ser um espanto, estendida, oferecida, eu a cobri-la de beijos, pau no ar, agora é que vai ser, amor, não te assustes, que o padre Joaquim já nos deu a bênção. Pronto.

De pau feito estou eu agora e sem a possibilidade de o desfazer. O meu padrinho Zeferino, que fez as vezes do meu falecido Pai, um dia disse-me que um homem de pau feito não é a mesma coisa que um homem feito de pau. Gostei. Aprendi. Os cabrões são meninos para vir por aí, nos bicos dos pés como as dançarinas e darem-me cabo do canastro. Era bonito, um tipo morto de piça em punho…

Vai clareando. Ouço um restolhar. São eles. Não são. É o Freitas de Sanfins que me vem render, acompanhado do cabo Felismino. Barriga. Tomates. Senha e contra-senha. Tudo nos conformes. Vou até à caserna, estou cansado de tamanha vigília, mas não tenho sono. O maluco lá de baixo também acalmou, é capaz de se preparar para dormir. Se não pensar na minha conversada, é gajo para isso.

Ainda não se pode dar umas fumaças. Tiro um AC do maço, espeto-o na beiçola, a fingir que sim. Caralho, isto é tudo um fingimento. São as colónias que não são, são províncias ultramarinas. Nas esplanadas em Luanda é o vinho que não é vinho, é banga-sumo. Ainda por cima, de abacaxi. Que devia ser ananás, mas é só abacaxi. Que mistela. É a PIDE que não é, é a DGS. Nisso, o Marcelo é que a sabe toda. Com as conversas em família vai-nos enrabando de fininho. Ganda cabrão, igualzinho ao Salazar.

O tio-avô Serafim

Sabem? Eu, para alem de gostar da música, do som, do espectáculo, também gosto do meu tio-avô Serafim que lá em Boivão dizem que é comunista. O velhote, com setentas e muitos, foi-me contando ao longo dos últimos anos, a sua vida durante a República. A primeira, avô (sempre o tratei assim, não conheci nenhum dos verdadeiros), a primeira.

O menino cala-se muito caladinho. República só há uma; melhor, só houve uma. Isto que temos é caca pura. Que rima com ditadura. Aprende, meu catraio, deixa de roçar os fundilhos pelos bancos, levanta o cu e aprende que eu não duro sempre. O Senhor Serafim fora contínuo num ministério, conhecera o Bernardino Machado, o Afonso Costa, o Manuel de Arriaga, o Brito Camacho, o Cunha Leal. Ensinou-mos todos. O Sidónio Pais, não. Era um bandido.

Toma nota, rapazinho: eu não sou comunista, mas podia muito bem ser. Só que não sou e está dito. Mas estes sacanas situacionistas, se um homem não entoa loas ao Salazar – é comunista. Lembro-me perfeitamente de ele me dizer que não podia ouvir o quem não está connosco… E acrescentava, entre duas gargalhadas acintosas – é contra nosco!...

Deu-me a ler o Capital do Marx, uns discursos do Lenine, mas também outros do Churchill. É um grande homem, não é da Esquerda, mas é um tipo com tomates, comentou. E oferecera-me umas Illustrações Portuguezas, sem e já com fotografias. Fez-me descobrir o assassino Hitler, como lhe chamava e deu-me uma História da Guerra de Espanha, editada na clandestinidade. Com um prefácio de Manuel Azaña.

Sim, porque o Leopoldo Nunes, o José Augusto – que depois viria a escrever uns escarros intitulados carta de Paris – o Cunha Júnior o Aprígio Mafra, eram todos pró Franco, o galego caganito, e as reportagens deles eram fascistas, dizia o avô Serafim. Até o Norberto Lopes, o Portela e o Mário Neves, mais inclinados à esquerda…

O Gaiolas corneta já tocou para o pequeno-almoço, que o Cuecas já nos ensinou que é o mata-bicho. O sol levantou, vai estar mais um dia de calor de ensopar um marmanjo. Com autorização do nosso capitão, os gajos que saem de sentinela podem ir comer sem fazer a barba. E o homem é duro como o aço, não brinca em serviço, mesmo aqui na mata, se um tipo mija fora do penico – é ecada à máquina zero. Do que me encarregou, o que é chato. Até para mim.

Uma mina – das nossas

É então que estala a maka. São só tiros e granadas, a esmo, para cima da malta de caneco na mão. Aproveitando a rendição das sentinelas, os paneleiros vieram atirar-nos como a bonecos de feira. Enfio-me num buraco de morteirada, mas saio, logo de seguida, rastejando até à caserna, para ir buscar a canhota. Aqui é o Inferno, cabrões dos mafarricos.

Quando puxo a culatra, sinto-me no ar. E estou. Pisei qualquer coisa e voo até cair de borco. Não me lembro de mais nada. Acordo no Hospital Militar em Luanda, o médico diz-me que tive muita sorte e só fiquei sem a perna esquerda, por baixo do joelho. Era uma mina, das nossas, caralho, das nossas. Para outros pisarem, que não eu. Mas pisei.

No resto está tudo bem, umas ligaduras, umas tinturas, umas sulfamidas, o pé que me resta engessado, mas não há-de ser nada. O clínico, que é major, conta-me que no Alcoitão me põem uma pata nova. Melhor do que a verdadeira, acentua para me animar. Tu que fazes? Para já, nada. Mas vais começar a fazer. Ginástica e tens de te habituar às muletas. E passas à peluda, logo que estejas bom.

Ele insiste: que fazes na vida civil. Barbeiro, ou seja, ajudante. Não tem problema, podes cortar cabelos e fazer barbas, tens os dois braços e as duas mãos. Se fosses carteiro, isso já era outra coisa, bem diferente. Assim, não te chateies. Vai tudo correr bem. Para os que lerparam acabou-se. Mas para os que ficaram, como tu, que não seja o pior. Vais arribar, moço.

Claro que vou. Quando sair do avião, outra loiça, o barco já foi, vou a mata-cavalos para Boivão, de táxi, nem olho para Valença, nem para a ponte, muito menos para a Galiza. Para ver a Maria dos Anjos, que deve continuar a ter os seios empinados como dois morros de mel. E para encontrar os outros, os amigos, o avô Serafim, dar-lhe um abraço dos grandes. À Maria dos meus amores, arrefinfo-lhe um beijo na boca – de estalo. Ou mais. Na frente de toda a gente, para que saibam que é minha, uma espécie de ferrete de marcar novilhas – mas sem dor, só doçura.

Depois, bom, depois, volto a Valença, visitar o patrão Gonçalves para lhe dizer que estou ali, torno à tesoura, ao pincel e à navalha. Mas, antes, durante uns dias, fico-me pela minha freguesia. Até porque, quero tratar da boda, mesmo que os pais da Maria dos Anjos enjeitem a novidade. Que, no fundo, não é nenhuma, é mais um fingimento a juntar aos outros.

O enfermeiro vem tirar-me a febre, vai na boca ou no sovaco? Aí mesmo meu sargento, sei lá por que cus já passou esse zingarelho. Mede-me a tensão. A outra, sem n, vai voltando só de pensar na moçoila que me espera. E, aí, uma dúvida. Quando ela me perguntar se volto para o Rancho – que lhe digo? Com certeza que não, nesses preparos, infelizmente. Dançarino sem perna, por melhor que seja a prótese (penso que é assim que se chama), corre o risco de pisar chão torto e inclinado. Viras, malhões e quejandos – acabou-se.

Já sei. Percorrendo-lhe a pele de pêssego, vou responder-lhe que sim. E acrescento logo que para tocar sanfona os dois braços chegam. E para a apertar ao peito – também. A perna? Que se foda!

(Fotos da guerra: 4CCE, a quem agradecemos)

quarta-feira, agosto 29, 2007




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O APANHA BOLAS
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Benfica gañou en Dinamarca

Antunes Ferreira
O Benfica venceu – vivó Benfica! Em Copenhaga, num estádio velhinho de cariz batatal, os pupilos do señor José Antonio Camacho, conquistaram a passagem à fase de grupos da Champion’s League. Um grego pôs os dinamarqueses realmente gregos. Katsouranis, o rei da festa, chegou para as encomendas e ainda se deu ao luxo de molhar a sopa.
Analisando bem e independentemente a partida – e que partida, pensarão os Carlsbergs – diria que o resultado mais consentâneo teria sido: Desperdícios nórdicos 14 – SLB – 1. Quim disse à nossa reportagem que, no primeiro tempo livre que tiver, vai fazer uma peregrinação a Fátima e dará 183,7 voltas ao recinto – de joelhos, obviamente. Com joelheiras, idem.
O treinador español declarou à Comunicação Social, no seu mais puro espanholês, que «todos jugaran muito ben, os jugadores estuveran fantasticos y assi tchegaremos à final, por soposto. Sem embargo, o hierro tamben ajudou a nosoutros». O jubilado do Real Madrid? «Nada, nao, o de as balizas, mui amigo».
Entretanto, Vieira tentava a todo o custo contratar o avançado Sargento, pois o Soldado diz que prefere os ares – e os impostos – da banda de lá. ¡Bueno, bueno, no pasarán!
Entretanto, soubemos, de fonte absolutamente segura, que Fernando confessou a amigos que pensa ir treinar a equipa do Vaticano. Para já, encontra-se em recolhimento e oração em convento não identificado.



Entreposto não - entrecosto
A saga do meu último Hyundai

Antunes Ferreira
J
á vou no meu quarto Hyundai. Que é o último. Explico de seguida.O primeiro foi, até dos primeiros que chegaram a Portugal. Comprei-o principalmente por ter estado em Ulsan uns tempos antes, aquando da minha primeira visita à Coreia do Sul. O que era uma pequena e pacata aldeia piscatória cresceu por influência de ali se ter instalado a empresa de fabrico de automóveis Hyundai. Em coreano, Hyeondae quer dizer modernidade. Hoje, a cidade tem mais de um milhão de habitantes e é o centro da maior região industrial do país.

Visitei as instalações fabris e fiquei entusiasmado com a tecnologia (na altura ainda associada à japonesa Mitsubishi), mas igualmente com a absoluta limpeza que nela reinava, para além dos índices de produtividade que me foram apontados. De tal sorte que escrevi então no Diário de Notícias de que era chefe da Redacção que na fábrica «se podia comer no chão» tradição coreana.

De tal forma o impacto muito favorável me atingiu que, tempos depois, nos primeiros anos de 90, comprei o meu Hyundai. E a este, mais dois se seguiram. E sempre satisfazendo-me, o que justificava a «reincidência». Aliás, a muitos familiares e amigos recomendei o automóvel, baseado na satisfação que ele(s) me proporcionava(m). Era só meter gasolina - e andar.


Em Setembro do ano passado comprei um novo Accent (as posses não dão pra mais…). Mal sabia o que me esperava. Já em Fevereiro deste ano, o bicho começou a fazer um «barulhinho» a que comecei por não ligar. Animal novo precisa de adaptar-se ao condutor e vice-versa. E, sobretudo, aos relevos desta nossa cidade das sete colinas, alegadamente. E ao estado das ruas…

Porém a dimensão sonora foi-se ampliando para uns quantos decibéis que não sei quantificar. Vinham os estranhos ruídos lá debaixo da viatura; mas, confesso a minha ignorância, disso – nem pó. Daí que me tenha deslocado às oficinas do Entreposto, o representante da marca, ali aos Olivais.

A via-sacra dos Olivais

Malfadada hora. Resumindo e concluindo: vai para uns três meses, senão mais, que tenho feito uma via-sacra para o local, que já começo a conhecer da frequência. Creio que em noite de breu, com as luzes em black out e os olhos vendados já lá chegarei, mesmo com GPS…

A avaria deixou o pessoal da assistência pasmado. Nunca tal se verificara. Nenhum cliente tinha apresentado tais queixas. Pensei para mim que quiçá estivesse perante um carcinoma ferrugento auto. Não era. Os especialistas disseram-me que eram apenas umas coisas desapertadas. Puseram o desgraçado no ar à força hidráulica – e não era. Uns apertos circunstanciais, mas tinha de lá voltar para substituir umas peças, nada de grave. Dias depois, assim aconteceu. Só que, dias depois também, voltaram… os ruídos. Afigurou-se-me que tinham aumentado. Voltei às oficinas.

Garanti que achava que e por aí fora. Deixei o «bólide» e fui à minha vida, que a morte é certa. Tinha, de resto, uma preocupação e grande. O médico operador de minha mulher queria falar. Felizmente, não passou de um susto. Era só para dar boas novidades. À tarde, quando de novo ali fui, presumi que estava tudo bem, pois me disseram que o 26-CD-86 estava ali fora e podia ir-me. Nem perguntei sobre a doença, muito menos da terapêutica. Saí.

Para voltar uns dias depois. Ó diabo, o perito da casa pôs o boguinhas no ar, uma outra vez. Duas horas depois, que tinha de lá voltar porque era necessário substituir todo o conjunto das peças, de que uma parte fora já mudada. Mas – há sempre um mas… - era preciso pedir autorização ao importador para a vinda das tais peças.

Os clones Entrepostos

Comecei a explodir. O responsável com quem falei (e que, até esse momento, tinha sido de uma gentileza e simpatia notáveis, é preciso que o diga) e a quem disse que, face ao ocorrido, iria protestar junto da Administração e exigir um carro novo, tentou acalmar-me, que não era caso para isso, que das oficinas nunca saíra uma viatura sem estar em condições, que a garantia seria escrupulosamente cumprida.

Meti travões suavemente ao prólogo da indignação. E então? Muito rapidamente me iriam telefonar a comunicar-me se já estava concluída a operação com o citado importador. Referi ao meu interlocutor que somente as suas atenções para comigo me demoviam de impor coisas à Administração, mas – outra adversativa – não era tudo Entreposto? Importador, vendedor, oficinas – não tocavam pela mesma pauta?

Pois que e mais que, que, mas eram diferentes, mas difícil de explicar. Pensei para mim, de novo, que seria assim uma espécie de clones, de Vieira contra Veiga, tudo no SLB, em família, sem que um falasse mais alto do que o outro, ou, pelo menos, não o tentasse fazer. E fiquei-me a perguntar quem seria o Santos do Entreposto? Na altura, ainda não se materializara o Camacho…

Passou mais de um mês. E de telefonema, nada. Já em estado de ebulição telefonei a saber. Não sabem como é difícil. A central telefónica geralmente leva uns bons minutos a atender. E, quando se alcança o desiderato, a(s) operadora(s) não sabe(m) quem é o senhor por quem procuramos, vai-nos passar, mas talvez não seja.

A espoleta já estava armada. Falei com um cidadão que me disse que tinham estado de férias, mas, dentro em pouco me telefonaria para dizer o que se passava. Se as famosas peças, aqui de um verdadeiro auto teatro trágico/ridículo, já teriam vindo. Isto porque, ainda que encomendadas ao importador pelas oficinas do… importador/vendedor, talvez ainda estivessem… para chegar. Disse-lhe que esperava que o pouco fosse mesmo pouco, senão não me ficaria. Não telefonou.

A ouvir música

Telefonei eu. Primeiro, outro senhor que me atendeu, aliás nenhum dos dois que solicitara á telefonista, a pretexto de que não me conhecia (isto apesar das repetidas visitas ao local), que tentaria encontrar quem eu desejava. E deu-me música pelo telefone, coisa de que não gosto. Mesmo nada. Ao fim de cinco minutos e poucos segundos (cronometrei o invento, digo, o evento) desliguei e voltei a ligar.

Agora, para me chatear com quem quer que me atendesse e informar que daria do caso conhecimento à Embaixada da Coreia do Sul, escreveria um texto pouco simpático para o Entreposto e publicá-lo-ia onde quer que fosse. Logo depois, um telefonema de um dos senhores hyundaicos, a comunicar-me que hoje às nove horas me devia deslocar (adivinhem onde…) aos Olivais, às oficinas etc. e tal.

Assim fiz, tendo perguntado se o meu último telefonema aviso/ameaça fizera com que as peças tivessem sido artilhadas de ontem para hoje, pois já lá estavam. O que representava para mim uma singular coincidência. Nada, não senhor, tivemos de as tirar de outra viatura. Espero que novas, acrescentei. Novinhas em folha. Não jurou.

Ora pronto. Esta é uma longa estória que me proporcionou o grato sentimento de ter passado a conhecer a zona, melhor do que o bairro onde morava há mais de trinta anos e que hoje já não é o meu. Aí, teria de estar agradecido ao Entreposto, não sei se ao importador, se ao vendedor ou se ao reparador das oficinas. Mas não o faço – por motivos óbvios. A minha religião não mo permite, mas, sobretudo, a boa educação proíbe-mo.

Não dei quaisquer nomes porque entendo que (já) não vale a pena. Mas, garanto-vos: este foi o último Hyundai que comprei. Palavra de honra. Do Entreposto – estou farto; agora, só entrecosto.

(NR - As fotos não são das oficinas Entreposto/Olivais)

segunda-feira, agosto 27, 2007




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O APANHA BOLAS
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Mail a Ricardo


Antunes Ferreira
Constou-nos que um grupo de sportinguistas ferrenhos prepara-se para enviar um mail ao guarda-redes Ricardo, no rescaldo do ocorrido ontem no Dragão. Entretanto, e face ao interesse do texto, outros sócios e simpatizantes do clube de Alvalade, já começaram a recolher assinaturas para um abaixo-assinada que, oportuna e tempestivamente, corroborará a mencionada mensagem. Os ânimos fervem e há quem proponha que o Paulo Bento faça mais 250 mil telefonemas, desta feita a aconselhar calma, cautela e caldos de galinha que, como se sabe, nunca fizeram mal a ninguém. «Desde que não nos lixe as finanças» terá sido o comentário de Soares Franco. Para conhecimento dos que nos visitam, segue o texto do supra citado mail: «Ricardo, volta! Estás perdoado!» Espera-se que, após o recebimento, o Bétis de Sevilha emita comunicado a propósito. Mas, uma fonte seguríssima do Real Balompié já nos adiantou, por antecipação, o que será a resposta dos andaluzes: «!No pasarán! Nada, nada, caballeros, y ole. El portero quedará con nosotros. Aun que no salga de la baliza, no saldrá de nuestro Club. Es decir, lo dejaremos salir contra 756,9 millones de euros. Hay que ganar algo !Váyanse a la porra!»
Tentámos ouvir Stojkovic, mas fomos informados pelo porta-voz do Sporting que «é impossível, pois o guardião encontra-se em Caxias, em recolhimento e meditação».

domingo, agosto 26, 2007




Recordando E.P.C.


Maria Lúcia Garcia Marques
Conheci o Eduardo Prado Coelho em 1961, na Faculdade de Letras de Lisboa, onde ingressou um ano depois de mim para o mesmo curso que eu escolhera. Creio que logo no ano seguinte se tornou responsável pelo Instituto de Língua Francesa, que viria a ser, para mim, poiso habitual nos intervalos das aulas – ou substituto daquelas a que não ia – ou lugar de descompressão das actividades associativas (académicas ou da Acção Católica) a que me dedicava à época. O Eduardo estava sempre lá. Senhor tutelar e usufrutuário guloso da respectiva Biblioteca, facilmente embarcava em longas conversas sobre leituras e autores com quem convivia numa avassaladora intimidade. Recordo hoje como único o sabor denso dessas falas apalestradas, temperadas pelo picante das suas críticas a latere, naquela sua voz meio nasalada, meio cantada, com um risinho no fim. Era o tempo das erudições jucundas, na i-reverência dos nossos 20 anos. Mais tarde, em 70, encontrámo-nos no bar da Faculdade de Letras de Coimbra, num intervalo roubado de um dos doutos Congressos a que o dever de ofício nos obrigava.

Estás lembrado? Ofereceste-me uma bica e um pastel de nata. À minha observação de esquiva gratidão de que “julgava que o marialvismo já tinha acabado”, respondeste, gargalhando ao teu modo: “Marialvismo coisa nenhuma – é que preciso dos trocos e a conta assim dá mais jeito …!”. Simultaneamente pragmático e sedutor!

Foste sempre assim na Vida. Atiraste-te a Ela a teu gosto: leste-a nos livros, viste-a no cinema, colheste-a nas artes, viste-a até no futebol. Em miríades de universos entrecruzados. E ofereceste-nos, em registos sabiamente diferenciados, a magnanimidade das suas idiossincrasias.
Amealhaste gostosamente saber e prazer, carreados no esforço e na constância. Mas foste o mais generoso dos Cresos: a nosso favor os reverteste. Foi tudo em pura perda, agora que te foste? Não creio. Desculpa dizer-to, a ti que te querias/crias ateu (agora que cá não estás para me contraditar), mas acho que, no teu diálogo aceso com a Vida, expandindo pela palavra inteligente os valores do Ser e do Estar dos homens, foste – queiras ou não – parte efectiva na concretização da obra de Deus. E por isso te cabe a perene Memória!

sábado, agosto 25, 2007



Eduardo Prado Coelho

Morreu hoje, com 63 anos de idade, o meu Amigo desde a infância, Eduardo Prado Coelho. Sem quaisquer comentários. Não sou capaz de. Até à vista, Eduardo.



Montréal ao fundo
* À atenção de António Costa

Antunes Ferreira
O
meu cunhado Raul Palhau informa-me pelo msn : O centro de Montreal está fechado. Foram descobertas fissuras numa placa de betão subterrâneo situada na rua De Maisonneuve, uma das principais da cidade. O maire Gérald Trembley determinou de imediato o encerramento de diversas ruas da zona, mais precisamente um quadrilátero balizado pelas ruas Sainte-Catherine, Université, Président-Kennedy e City-Councilors. O serviço de metro foi tambem suspenso na Linha 1 (Verde), entre as estações Lionel-Groulx e Berri-UQAM.

Desde sexta-feira ao fim da tarde, altura em que foi assinalado o acontecido, que a interdição da circulação de viaturas e peões se verifica, afectando sete ruas. E ainda que no perímetro não existam residências, apenas escritórios e comércio, as autoridades decidiram evacuar muitos estabelecimentos comerciais.

Gilles Ducharme, o mais importante membro do Serviço de Segurança e Bombeiros da cidade, afirmou então que «de acordo com o que se lembrava, era a primeira vez que havia riscos de afundamento subterrâneo tão graves no centro da cidade». E acrescentou que ainda se estava a analisar o problema, para ver se seria necessário um corte de corrente, pois verificavam-se infiltrações de água.

O quotidiano mais destacado de Montreal, La Presse publicava, na sua reportagem, um comentário de um cidadão não identificado: «As nossas infra-estruturas são tão velhas, e há tanta falta de dinheiro na Mairie (a Câmara) que muito brevemente eles vão-nos anunciar que os riscos são muito grandes e o centro da cidade continuará fechado à circulação auto, sabe-se lá até quando.

Um nome conhecido do jornal, Patrick Legacé, escreveu uma crónica na edição de hoje, transcrita igualmente na edição informática Cyberpress, na qual afirmava: «É talvez apenas uma impressão, mas diria que o Québec cai em ruínas. Roído pela gangrena. Neste Verão, festejámos o quadragésimo aniversario da Expo 67. Ah, as belas imagens ! Ah, esse Québec que usava flores no cabelo! Ah, como tudo estava por e para fazer e tudo se construía! Viessem os projectos!».

Montreal tem uma cidade à superfície e outra subterrânea, uma por cima, a segunda por baixo. O Inverno rigorosíssimo é a maior explicação para isto. A primeira vez que ali estive, fiquei impressionado, quase estupefacto. As dimensões da cidade subterrânea são enormes. As da que está à superfície são muitíssimo maiores, é claro. Mas, mesmo assim… Nas seguintes, fui-me habituando. Mas sempre pensei «se um dia há uma chatice…»

Para os montrealenses isto é um pesadelo. Está a ser, pois que ainda não se sabe até ao momento em que escrevo, o que estará na origem da ocorrência, quanto tempo ficarão fechadas ruas e metro, quais as medidas que se irão adoptar – depois de conhecida a dimensão do desastre.

A situação tem de ser seguida com muita atenção, mesmo por cá, em Lisboa. Arrisco-me até a dizer, principalmente por cá, tais as similitudes que existem nas Câmaras das duas cidades. É evidente que a nossa capital não tem uma gémea subterrânea. Mas – e a Baixa? E a estrutura do nosso centro pombalino?

Bem se pode dizer, também que, talvez seja apenas uma impressão, mas Portugal quase cai em ruínas, e em especial, Lisboa. Não será tanto assim, felizmente, trata-se tão-só de uma comparação sem rigor, mas. Já no que concerne às finanças municipais, a CML também não tem dinheiro, ou tem pouquíssimo…

António Costa que atente neste acontecimento. O seu homónimo Trembley parece estar metido numa enorme alhada. A do novo Presidente não será muito diferente. Sem fissuras tão grandes no betão – mas com fissuras enormes no dia-a-dia de todos nós.

As fotos do centro de Montréal encerrado e da estação de metro também fechada são, igualmente do Cyberpress. Merci bien, les Amis

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sexta-feira, agosto 24, 2007

RI-TE, RITA

Portugueses torturam crianças no Iraque
O António Fonseca sempre foi – e é, e será – um tipo discreto. Porreiríssimo, mas soft. Desde o Camões até à Faculdade de Direito – nunca nos abandonámos. E até na tropa andámos juntos. Campeoníssimo de… vejam lá, xadrez, os olhos a luzirem-lhe por trás das dioptrias de que sempre abusou, é um Amigão. Do peito, podem crer. Destinatário de milhentos mails que lhe envio com uma regularidade criminosa e sem atenuantes, ele raras vezes me mimoseia com coisas, mesmo que de ricochete. Agora, aqui está uma delas. Não hesito e meto-a neste blogue. A GêNêRê e o FêCêPê são motivo para uma boa piada. Mais um membro de um gang que se vai alargando, o que só me dá alegria – e espero que aos visitantes também. Continua, Fonseca! Antunes Ferreira

terça-feira, agosto 21, 2007




À RODA DOS DIAS

Agosto



Maria Lúcia Garcia Marques
Agosto habita no coração dos hibiscos. Afogueado e pujante, vibrante e cavo como um tímpano reverbera no ar, acende a cal, ateia o mar, incendeia os poentes.

Agosto é um mês jucundo: arde na pele e afoga-a em águas de puro gozo. É o calor das férias, dos tempos vagos, do Sol a jorros, dos corpos expostos. Porque Agosto é um mês macho – em que a mulher se alteia e Eros se solta. Em que Eva cai deliciosamente no embuste da serpente e se crê ser tudo: o Atlas do mundo e o mais belo bicho da Criação. Em que se expõe à Conquista e à Entrega, num quadro lindo de subtil sedução como naquele poema de Cesário Verde:


[…]
Mas todo púrpura, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas
ou jogando-se toda inteira no ardente convite dos versos de Florbela Espanca:
Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços …
Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca … o eco dos teus passos …
O teu riso de fonte … os teus abraços …
Os teus beijos … a tua mão na minha …

Se tu viesses quando, linda e louca,
.Traça as linhas dulcíssimas de um beijo
E é de seda vermelha e canta e ri
E é como um cravo ao sol a minha boca …
Quando os olhos se me cerram de desejo …
E os meus braços se estendem para ti …

ou ainda quando, mulher-Ceres, fecunda e mãe, desenhando-se como a opulenta deusa de Agosto, nuns dos mais belos versos de David Mourão Ferreira:

É quando estás de joelhos
que és toda bicho da Terra
toda fulgente de pêlos
toda brotada das trevas
toda pesada nos beiços
de um barro que nunca seca
nem no cântico dos seios
nem no soluço das pernas
toda raízes nos dedos

nas unhas toda silvestre
nos olhos toda nascente
no ventre toda floresta
em tudo toda segredo
se de joelhos me entregas
sempre que estás de joelhos
todos os frutos da Terra

Agosto é dos poetas e dos amantes. Carpe diem, a gosto!

sábado, agosto 18, 2007




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SALTEADO
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Agosto, o mês

Antunes Ferreira
Adoro estar em Lisboa - em Agosto. Quando inúmeros habitantes ulissiponenses saem da cidade, é uma calma notável. Os miúdos, de férias grandes, os pais de férias pequenas, todos juntos, mais os solteirões com subsídio em dia e os velhotes com posses ou reformas chorudas, tipo Banco de Portugal, essas centenas de milhar ausentes deixam, aos que ficam, descansar. Eu, juro-vos, sossego, logo, descanso.
O trânsito é outra loiça. E, agora, com os radares dos 50 quilómetros a ajudar (ó António Costa, devia haver em toda a capital, todinha), circula-se como se se vogasse em colchão de praia – de papo pró ar. Chega-se, até, a dar, misericordiosa e civicamente, passagem fora das passadeiras aos peões educadíssimos que nós somos. E que, mesmo nos outros meses assim procedem. Civismo, é o que é. Mais. Aos carros, poucos de matrícula nacional, que por aí erram.
Por isso esta minha adoração, amor, o que se lhe queira chamar pela minha cidade em Agosto. Ontem, um chofer de táxi quando lhe disse que queria ir para a rua do Zaire, nem me perguntou se era no Bairro das Colónias. Pudera, não. Por mais maçarico que fosse na profissão, nem precisaria de GPS. Há, apenas, um problema: os turistas. Mas como estes trazem ma$$a$, perdoa-se-lhes que nos roubem essa excelente tranquilidade. Não muito, porem, que tudo tem um limite. A paciência, também. Adoro estar em Lisboa – (mas) em Agosto.



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O APANHA BOLAS
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Ah seus Leões!

Antunes Ferreira
O Sporting começou bem a Liga. Antigamente, dizia-se Campeonato Nacional. Hoje, os meus netos, quando me ouvem utilizar a denominação aparentemente ultrapassada, atiram-me com a desavergonhada pergunta: «Avô, o que é isso?» E olham para este kota pré-histórico, quase coevo do Cromagnon. Mesmo assim, os putos são bué de fixes.

Pois começaram bem os Leões. O único mal foi terem aberto a época (4-1) com a minha Académica de sempre, ainda que relegada para segundo plano pelos verde-e-brancos. Ainda por cima, passei a morar à esquina do estádio mais lindo do… Lumiar. Mas o Paulo Bento (ainda) não me telefonou. Um aviso à navegação: não esperem isenção neste cantinho. Ponto.
Só ainda não consegui compreender que só eu sei porque fico em casa. Agora – segue-se o FêCêPê, na remarque desejada. É só um pouco mais acima de Leiria…

quinta-feira, agosto 16, 2007




SOMBRA DA GUERRA COLONIAL

Carne Fresca


Antunes Ferreira
T
irou a folga do gatilho e voltou a apurar a mira. A palanca, imóvel, levantou o focinho, parecia cheirar algo, não sabia o quê. Raspou o solo capinado, com um tanto de nervosismo, os cascos restolhando nos cotos da erva segada. Lingrinhas pensou um, dois milésimos de segundo, quiçá três, mesmo cinco. Assim faziam os touros mansos antes de investirem. Por isso disparou.

O animal saltou para a frente, como que começando a corrida, mas ficou-se no arranque, como que suspenso no ar, parado no tempo e no espanto. Caiu de lado, esperneando, nos estertores de quem acaba, seja bicho ou homem. Caralho, Lingrinhas, deste-lhe na mouche! Dois pontos para o Lisgás! Porra, essa foi do suco da barbatana!

Os cinco soldados – tinha saído uma secção incompleta a ver se abastecia de carne fresca a companhia, farta de enlatados, de bacalhau sem batatas e linguiça em pão duro e bolachas Capitão – quase o levavam aos ombros. Ó pá tu és um meia-leca, se os turras te atacassem, punham-te debaixo do braço e ala que se faz tarde… Mas, no fogacho ninguém te bate!

Por alguma razão o capitão Malveira tinha mandado o Cristóvão Lingrinhas, mais o quinteto de camaradas ao açougue da mata. Era quase certo. O trinca-espinhas traria bifes e costeletas e lombo e perna e todas essas coisas que um homem quer ter quando voa para o rancho. Já não apanhamos mais nada, o eco assustou os animalejos, vamos embora.

Nem pó. O caçador cheirava presa, algo mais viria para enriquecer a despensa do aquartelamento e os desejos gastronómicos da soldadesca. Os cinco, entre o medo de uma qualquer merda – já bastava o que bastava – e a gula de cascata na boca, começaram a falar fininho, por causa das moscas – e do resto.

Andavam por ali uns quantos cabrões, que se intitulavam a eles próprios guerrilheiros, comandados por um tipo que infundia cagaço ao mais pintado. Era um tal Mata-Mata, mulato, dono de uma carabina Mauser de precisão, com mira telescópica, prenda do pai branco, que onde punha o olho punha o chumbo. Era igualmente caçador, mas de soldados tugas, não se sabendo se se dedicava a outras sortes cinegéticas.

Ó pá, talvez fosse mais seguro pegarmos no animal e leva-lo para a esfola e a panela. Basta pensar que nos podemos meter em trabalhos, uma alhada nunca vem só. Depois, com estes filhos da puta, nunca fiando. Chico Cristóvão nem lhes dava troco. Vamos apanhar a palanca, meter-lhe umas varas para ser mais fácil de transportar, tipo padiola. Quatro levam-na para o quartel; o Sebastião vem comigo. Não se desorientem, seus atrasados mentais. E voltem logo para levar mais caça.

O silêncio ouve-se

Sebastião deitou contas à vida. O sacrista do Lingrinhas ainda lhe arranjava uma valente enrabadela. E os pretos, dizem as meninas do Bairro Operário, têm a piça grande. Da-se, nem pensar nisso que lhe sobe um arrepio pela espinhela acima. Ó camarada, e se nos puséssemos na alheta? Medricas, sempre me saíste um bom mariquinhas pé-de-salsa. Aqui não morre ninguém, muito menos te tocam no cu, estamos quites.

Mas de alimária – nada. Até os macacos, empoleirados em seus galhos, deixaram de guinchar. O silêncio na mata ainda é mais opressivo. O silêncio ouve-se. Tal como o barulho. Os dois deitam-se no leito de folhas secas da floresta. Vai um cigarrito, Lingrinhas? És mesmo uma besta-quadrada! Lume aqui? Mas foste tu que acabaste de dizer que não nos pode acontecer nada. Cala-te e nada de piriscas.

Emboscados, por entre troncos apodrecidos, pensavam que confundiam o camuflado com os tons do que os rodeavam. Esperavam. Presa ou os transportadores de carne fresca. Quem seria o primeiro? Sebastião, a quem chamavam na companhia o come-tudo, sem ou com colher, lembrança da canção dos putos, avançou um tímido estou cheio de larica. O comparsa nem lhe respondeu. Se calhar nem lhe ligou nenhuma.

A ramaria deixava coar uma luz cada vez mais esparsa, avermelhada do poente. Um tiro, um só. Sebastião nem soltou um pio. Pedaços da mioleira esfacelada saltaram sobre o Lingrinhas que se enfiou ainda mais, se possível, pela podridão vegetal. Segurou com força a G3 de mira também telescópica, como a da arma do Mata-Mata. E se fosse o gajo?

Houve um tropel de cascos misturado com botifarras calcando o solo pegajoso. Eram os militares que voltavam e tinham ouvido a detonação. Pelo ruído, corriam. Mas, por trás de uma moita agigantada surgira um burro do mato, grande e encorpado, fora do normal. Um verdadeiro desafio para o Portuga. Uma provocação.

O Chico não podia levantar-se, o bandalho fuzilá-lo-ia, mas o vício era desmesurado. Ou lhe atirava a matar ou as entranhas saíam-lhe pela boca, pelo olho de trás, pelos poros. Os soldados gritavam por ele, aguenta-te Lingrinhas que estamos a chegar, não te vás abaixo! E chegaram, ofegantes, disparando um tanto à toa, assim os turras não respondiam, tinham medo de dar a posição deles. Ou dele, pensou Cristóvão, enquanto mecanicamente disparava – mas sobre o animal. Qual Sebastião, este caiu de chofre, sem qualquer hipótese.

Já um pouco afastado ouviram um berro de ameaça – eu volto! Promessa sangrenta que sabiam que iria ser cumprida. E uma gargalhada de bazófia, mas também da consciência do medo que infundia. Era o Mata-Mata, não havia dúvidas, a maneira de falar dos brancos, mulato fino, voz rouca. Ele voltaria, não se sabia quando, mas voltaria. Cumpriria o prometido, era homem de palavra.

Dois cadáveres

Regressaram os soldados, com dois cadáveres aos ombros: o burro do mato e o Sebastião. Ou vice-versa. A recepção que se antevia eufórica no pressuposto de mais carne fresca, enlutou-se com a carne também fresca – mas do magala desditoso. A tudo assistia o Lingrinhas, esbodegado, como se lhe tivesse passado um cilindro das estradas por cima, lágrimas ensacadas, um homem não chora.

O capitão Malveira chamou-o ao seu «gabinete» numa jotacê e perguntou-lhe se achava bem o que tinha causado. O Sebastião, de resto, era um gajo porreiríssimo e um paz-de-alma. Tocador de acordeão. Se não tivesse sido a tua estúpida ideia de dar mais uns tiros, o rapaz ainda estava vivo. Mas tu pensaste, cabeça de atum em lata, que estavas no Parque Mayer com as putéfias a regougar – vai um tirinho, freguês? A pensar morreu um burro, meu sacana!

Não estou a gozar. Isto não é para brincadeiras. Estou fulo. Estou fodido! Vou mandar levantar-te um auto de corpo de delito por homicídio involuntário. O nosso alferes Lucindo trata disso. Vais ver como elas te mordem. Nunca mais vais esquecer isto. E, a partir de agora, só sais com a canhota para combate. Meia volta, volver. Rua!

Estava metido numa boa alhada. Maldita a hora em que cheirara presa. Maldita a hora em que a mãe o parira. Esperava-o um futuro bem negro. Um auto de copo de litro, como os taratas gostavam de arremedar, atropelando a versão correcta. Como os que diziam auga em vez de água. Caraças, todo este torvelinho de ideias lhe vinha à cabeça – de atum em lata?

E o Sebastião? E a mulher do Sebastião, Gracinda de seu nome, 23 anos empinados? E a filhinha do Sebastião, Laurinda, a Laurindinha, doze meses incompletos, fazia anos a 22 de Setembro? E os pais do Sebastião? Que fora um camarada ali para as curvas, não dizia mal de ninguém, nada de coscuvilhices, nem intrigas, muito menos fum-funs ou gaitinhas. Estava para ali a cismar no seu futuro, quando o do desgraçado não era nenhum. Apagado, como fósforo queimado.

Uma grande cagada. Não tivesse ele mandado os outros levar a palanca e o Sebastião que ficasse com ele e outro galo cantaria. Assim, o galo fora do come-tudo, para ali espapaçado nas folhas podres, descapotado, os miolos espalhados em redor, até nele, Chico Cristóvão. Um arrependimento, tardio e enviesado, espalhava-se-lhe pela casquimónia. Que lhe restava agora? Nada. Mas, muito menos do que ao Sebastião.

Não te mortifiques

Muitos praças olhavam-no de viés. Já não bastavam os terroristas, também este cabrão, resmoneou o Marques açoriano da Fajã, às vezes nem se entendia o que dizia, mas agora não. O Fagundes, apontador de morteiro, agarrou-lhe um braço e afastou-o da censura quase generalizada. Ouve, Lingrinhas, ouve. Ouve-me e não me copules. Escuta-me filho duma pega.

Toma nota. O destino já tinha marcado a hora do Sebastião. Não tens que te mortificar e assumir a culpa. Limitaste-te a tentar trazer mais paparoca para os dentes da malta. Estivesse eu no teu lugar e, se calhar, fazia o mesmo. Essa gajada – deixa-a falar. O que tu bem sabes é que eles cobiçam-te a pontaria. O olho, salvo seja. Atira para trás das costas e não te enterres a ti próprio.

Enterrar. Enterro seria o do Sebastião, caixão desembarcado no Puto, a viúva em ânsias, os pais amarfanhados, a menina no carrinho, já dando os primeiros passos, nunca junto à cova do pai. Assim, não vais a nenhum lado, Lingrinhas. Assim consomes-te por dentro, comes-te a ti próprio, dizia o Prof. Candeias que serias um autofágico, lembras-te?

De passagem: enterrar sim, mas outra coisa, naquela moça do bengaleiro do cinema Império, mestiça danada, calças justas, segunda pele a azul ponteado, um par de mamas viçosas e tesas, sem sutiã, que nós bem lhe vimos os mamilos desenhados na camiseta encarnada debruada a preto. Aí sim, aí enterrava até aos tomates e tenho a certeza de que ela se rebolaria como uma cabra no cio.

Repara Chico, e só estivemos em Luanda, no Grafanil, oito miseráveis dias e umas horas. A fita era a mesma, A Revolta na Bounty, com o Marlon Brando, mas fomos lá cinco vezes. Já sabíamos de cor o enredo, o motivo do desatino era a moça morena. De canela, Lingrinhas, morena de canela, mulatinha. Mau. Mulato era o Mata-Mata que enfiara o balázio na fronha do Sebastião. Ele dissera que voltaria. Quando o fizesse, ele, Chico Cristóvão estaria lá, à sua espera.

Com o rodar dos dias, as folhas do calendário que tinha à cabeceira - com uma louraça abonada e de peito ao léu, rapariga muito cobiçada ainda que de papel, frente à qual muito boa gente esgalhara uma pívia à maneira – foram-se arrancando. No mato, sem sanzala perto, era uma merda, e mais a mais as palmas das mãos não tinham cabelos. Mas era o que havia.

O fradalhão de Santa Comba

Filha da puta de guerra era aquela. O Fagundes, pela calada da noite, abria-se em palavras sussurradas – à sorrelfa. Os gajos tinham razão em quererem a independência. O Brasil era um exemplo. E os africanos estavam agora a dar cabo da colonização. Isto não são províncias ultramarinas, são colónias. Em Lisboa até há um bairro das colónias, se não sabes, aprende que eu não duro sempre.

E acrescentava, cada vez mais baixinho, que o maricas do fradalhão de Santa Comba – quem? – o Salazar, meu animal, o Botas, é que mandava o pessoal apanhar no cu, sacrifício ignóbil e inútil, porque aquilo ia acabar mal para a malta. Destas conversas de cobertor participava o Machado, sacristão na civil, até comentava que o Fagundes era comunista, igualzinho ao tio Serafim, que fora apanhado pela PIDE e estava a ferros em Peniche. Não sou, mas podia muito bem ser. Bons sonhos.

José Malveira, capitão de Infantaria (QP), decidira, face aos constantes ataques, agora já não apenas na picada, mas ao aquartelamento, que um pelotão reforçado iria montar uma emboscada, junto ao carreiro da água. Dali vinham disparos nocturnos e, até, pelo entardecer, barbaramente certeiros, eu cá seja ceguinho se não é o Mata-Mata.

Cristóvão ofereceu-se, o grupo de combate nem era o dele, mas foi. O comandante – águas passadas não movem moinho – aceitou, já que se tratava de acção de combate e a pontaria do Lingrinhas fazia muito jeito. E como em tempo de guerra não se limpam armas, o caçador seguiu. Fagundes, agarrado ao seu eterno morteiro, ainda lhe disse que não se devia ter metido naquilo pelo que quer que fosse.

Agachados, ajoelhados, deitados por trás de sebes de verdura húmida, os emboscados aguentaram horas. Que já pareciam dias, senão mesmo semanas. Nisto, um restolhar manso e suave, quiçá um descuido sem razão, entrou pelos tímpanos da malta. Eram eles, não havia dúvidas. Por gestos, passaram palavra. Uma secção por ali, outra por acolá, aqui ficam os restantes. Chico à cabeça da primeira, o alferes Janica em seguida.

Os guerrilheiros, sem disso se aperceberem, já estavam cercados. A um berro do capitão, voaram as primeiras granadas de mão, encheu-se a mata de fogachos, gritos e insultos, fumo e metralha. E sangue. Chico nem disparara. Mexia-se sorrateiro, pé após pé, arma em riste, dedo no gatilho. Pela cabeça – de atum em lata? – passava-lhe o Sebastião tocando o acordeão, nisso era um alho. Mas igualmente o desejo lancinante de encontrar o Mata-Mata, que devia andar por ali.

E, de chofre, ficaram cara-a-cara, espingardas expectantes, quase a dois metros um do outro. O Lingrinhas e o Mata-Mata. Quando dispararam, em simultâneo, ainda disseram um para o outro – é o Chico, porra!, é o Lourenço, foda-se! Ficaram de papo para o ar, a linfa vermelha esvaindo a vida aos borbotões, empapando o solo ele próprio revoltado.

Tinham andado na mesma escola, veio depois a saber-se, o Francisco da Costa Cristóvão e o Lourenço da Silva Mendes tinham feito a primária juntos, sentavam-se na mesma carteira. Eram como irmãos, melhor, eram amigos. Que diria a Dona Alzira se soubesse que se tinham matado um ao outro, em Angola, na mata, no caminho para o Quitexe?

segunda-feira, agosto 13, 2007



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SALTEADO
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Hotel no espaço

Antunes Ferreira
Informa a agência Lusa que «o primeiro hotel no espaço deverá abrir em 2012 e a viagem de 450 quilómetros até lá, mais uma estadia de três dias, deverá custar cerca de três milhões de euros, revelaram dirigentes da Galactic Suite, a empresa espanhola responsável pelo projecto. O preço da viagem, que poderá começar a ser reservada a partir de 2008, incluirá 18 semanas de preparação numa ilha dos trópicos, para onde os turistas espaciais podem viajar com a família e onde se treinarão para a experiência espacial».
O Mundo também é isto. No meio de homens-bomba, de famintos, de desalojados sem Pátria nem lei, de experiências nucleares, de sexo, de drogas, de ignomínia, de crimes, de baixa política, de corrupção, ainda há projectos como este. Caríssimo – mas aliciante. A tecnologia ao serviço do Homem. Milionário, é claro.





Saudades do futebol

Helder Fernando
A
depto do Benfica, pratico o benfiquismo desde criancinha. Não sendo encarnado fanático (também gosto do ManUnited, do Liverpool, do Atlético de Madrid, do Leixões e do Sporting de Braga), acho que todos os outros clubes depois do Benfica são excelentes, embora deseje, com fervor, que percam sempre que entrem em campo. E, como sou português, sou masoquista em circuito fechado, entretenho-me alegremente a dizer mal do meu Clube de cada vez que ele resvala para o disparate, coisa que acontece frequentemente há para aí duas gerações. Para falar coisas feias sobre o S.L.B. basto eu, os de outras camisolas que se calem à minha frente. É por isso que sou benfico-masoquista em circuito fechado.

Mas isto agora não interessa para nada nem mesmo em crónica de Verão. O que realmente interessa é encontrar urgentemente soluções - e não lenitivos - para que, de uma vez por todas, não se repita este enorme, monstruoso, angustiante espaço em branco sem o desporto-rei, sem uma única jogada de mestre, sem o passatempo "Com o Santos na Liga Portuguesa de Futebol", sem os fantásticos relatos na rádio e as denunciadoras imagens em câmara lenta na televisão, para que fixemos na nossa memória presente e futura a arte, a inteligência, a dedicação, a alegria, a emoção do maior espectáculo do mundo.

Lamentavelmente, estamos a muitos milhares de quilómetros de qualquer terreno onde, na verdade, se jogue futebol, fora ou dentro da época. Bastava que as estrelas jogassem para a televisão e para os relatos na rádio, ficava feliz. Se cada equipa tem mais de vinte jogadores, só sendo necessários, à partida, onze, enquanto uns descansavam nas férias, os outros iam-nos deliciando em jogos exclusivos.

Assim é que o futebol de alta competição correspondia, na mesma medida, ao amor-com-amor-se-paga. Existirão coisas na vida mais empolgantes do que um poderoso remate à trave, uma cabeçada de cima para baixo, um voo felino do guarda-redes, a exibição técnica e táctica de todo o conjunto, uma finta de fazer sentar o adversário, meia-equipa balanceada no ataque com passes de bola teleguiados, levando tudo à frente, aproximando-se da baliza contrária, o estádio em pé...o golo!!?

O goooooollloooooooooo!!! O tal orgasmo de que falam alguns protagonistas. E os másculos jogadores aos abraços e beijos entre eles, uns por cima dos outros, os bamboleares de quem atinge o êxtase para lá da linha de golo.

E os penteados dos atletas, as fitinhas no cabelo, as suas tatuagens, o beijo no dedo anelar, o gesto de embalar, na dedicatória do golo em direcção ao rebento que nasceu, o rodopiar a camisola na mão exibindo, viris, o tronco atlético, a saliva que se fartam de cuspir para regar a relva, as cotoveladas, as rasteiras assassinas, as discussões com o árbitro. E os gestos dos treinadores para dentro do campo, o lago de beatas de cigarro à sua volta, as expressões de espanto, alegria, tristeza ou de guerreiro, sabendo que as câmaras estão a mostrar tudo.

E as manobras da arbitragem para disfarçar a asneirada mas garantir a emoção nas bancadas. E os bilhetes no mercado negro, a linguagem de guerra dos presidentes dos clubes, os insultos ao árbitro, o aliviante palavrão à solta, dentro e fora do campo, as coreografias das claques organizadas, o seu clubismo extremo, as cadeiras que mandam pelo ar, as bombas de Carnaval, o aplauso fogueteiro com labaredas, o modo como se libertam de paus e garrafas em direcção às claques inimigas. E, nas conferências de imprensa, os jogadores e dirigentes tapados quase na totalidade por garrafas de vários tamanhos, placas gigantes coladas ao microfone para lhes cobrir os rostos mas nos obrigar a ler os nomes das empresas ou dos produtos.

E o modo, à moda, como são colocado nos cabelos gelatinados dos jogadores vindos do duche, os bonezinhos com os símbolos publicitários - ainda não na estridente profusão dos fatos-macacos dos pilotos motorizados, mas lá chegaremos - a tradicional eloquência dos conferencistas, as perguntas tão oportunas e tão inteligentes dos repórteres, as imagens inesquecíveis dos artistas da bola ao volante dos seus bólides topo de gama, para os espatifarem, de vez em quando, no final de uma merecida noitada contra o stress. Vestindo, o futebol, todas as camisolas de todas as cores, incluindo a cor-de-rosa,
oferecendo a milhões e milhões de pessoas, mesmo às que nunca assistiram a uma partida, drama e júbilo, grandes tristezas e enormes alegrias... que doce vício é o futebol!
(In Macau Hoje)

Ó Senhor Oliveira

Antunes Ferreira
O Hélder Fernando é um gajo quase porreiro. E não o é em absoluto – porque é benfiquista. Mais, confessa-o despudoradamente. Claro que toda a gente sabe que não se pode ser perfeito e que no melhor pano cai a nódoa. Porém é triste ver um cavalheiro tão prendado prostrar-se reverencialmente perante um Vieira, andar de braço dado com um eng.º Santos (agora já não há o Veiga, tadinho), chorar a partida de um Simão, aplaudir as camisolas cor-de-rosa, ai, ai.

Mas enfim, é a vida. Apesar desse tremendo handicap, registo aqui e hoje uma crónica que regularmente, o sujeito publicou no Macau Hoje. Na verdade, este moçambicano colonizado virou macaense – e ficou por aquelas bandas do Rio das Pérolas. Se mais não houvesse, este era um verdadeiro testemunho da pluralidade deste blogue.

Mas não descanso enquanto não o convencer a colaborar no Travessa com textos próprios – mas sem pagamento… E estou certo de que o Oliveira (o tipo também é, mas não usa) fará parte desta equipa. Que não é do Benfica, de jeito nenhum, como diria o portuguesíssimo Deco. Em tempo: já começou a doer. Que o diga o FêCêPê.

sexta-feira, agosto 10, 2007




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SALTEADO
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Enquanto Salazar dormia

Antunes Ferreira
L
eio no blogue do Seixas da Costa, isto é, da Embaixada de Portugal no Brasil, que o Domingos Amaral pula o Oceano e aterra no lado de lá. Conduzindo um voo de sucesso que se chama «Enquanto Salazar dormia», o Autor, das melhores coisas que a ficção portuguesa tem produzido nos últimos anos, Domingos Amaral vai de vento em popa. As edições aqui neste País sem grande apetência pelos livros, já vão em onze. Trinta mil leitores, o que, numa gente que desaprendeu de ler, é obra.

Li-o de um sopro, de fio a pavio. Li-o na cama até o sol raiar, li-o no café, li-o na casa de banho. Li-o. Estou certo de que os Brasileiros o vão ler e aplaudir, tal como por aqui acontece. A melhor sorte do Mundo para o Domingos Amaral. Que, do êxito, já está habituado.

quarta-feira, agosto 08, 2007




O Português que nos pariu

Um crítico literário brasileiro perguntou: «Além de um casal luso, alguém sabe fazer um português?» E, logo, respondeu. «A receita está no livro O Português que nos pariu - Uma viagem ao mundo dos nossos antepassados, de Angela Dutra de Menezes. Junto com a receita, o leitor leva, de brinde, "estórias" da História portuguesa. Factos que, de um jeito ou de outro, marcaram o carácter brasileiro.
Tudo narrado com bom humor, já que a história oficial é insossa e arrastada. Por que não jogar na mesa que o grande Afonso Henriques
provavelmente amargava um insolucionado Complexo de Édipo? Que dom Henrique, o Navegador, não sabia navegar? Que dom Sebastião, o tal do messianismo, não passaria em psicotécnico de nenhum Detran da vida? Descontracção não anula a verdade dos factos. Se o livro dá um "jeitinho" de colorir a História é porque nosso "jeitinho" também é herança lusa».






Angela Dutra de Menezes
C
oloque uma vasilha dentro de água. A massa só alcançará o ponto exacto se os ingredientes forem misturados em recipiente mergulhado na água salgada. Senão, a receita desanda.

Ingredientes:

• Homens pré-históricos do vale do Tejo e do Sado.
• Um punhado de povos indígenas, principalmente lusitanos. Se possível, da tribo liderada por Viriato.
• Celtas – apenas para polvilhar.
• Romanos.
• Bárbaros: alanos caucasianos, vândalos germânicos e escandinavos, suevos e visigodos germânicos – estes últimos dissolvidos na civilização romana.
• Mouros: tribos islamizadas do Marrocos e da Mauritânia.
• Uma pitada de árabes.
• Judeus sefarditas (ibéricos) – coloque um punhado entre um ingrediente e outro. Reserve a porção maior para o fim da receita.
• Cristãos a gosto

Modo de fazer

Coloque na vasilha os pré-históricos. Dê preferência aos que apresentarem características físicas do Português contemporâneo: estatura mediana e dolicocéfalos. A arqueologia prova que pré-históricos ibéricos já se assemelhavam aos gajos pós-modernos – ora pois.

Tampe a vasilha com um pano húmido. Espere fermentar até se transformarem em tribos pacíficas e receptivas a ondas migratórias oriundas de vários pontos europeus. Não se preocupe se alguns, sorrateiramente, fugirem pela borda da vasilha. O ancestral do Português já cultivava vocação viajeira, muitos chegaram à Inglaterra e à Normandia. Apenas oriente os neofujões para não tomarem o rumo de Brasília. Nunca se sabe o que lhes pode acontecer.

Polvilhe um pouco de celtas. Além do charme, você vai introduzir o domínio da metalurgia e a vocação para o exoterismo. Afinal, quem não gosta de druidas? Além de estarem em moda, eles acrescentarão o toque exotérico ao paladar do prato.


Lentamente despeje os romanos. Atenção: vai sair pancadaria. Maneje com calma a colher de pau para driblar Viriato e outros caudilhos que não apreciarão o novo ingrediente. Cuidadosamente misture os revoltosos, os romanos e as tribos que se lixaram para a invasão romana. No fim dará certo. É questão de paciência.

Bata levemente durante 500 anos. A massa crescerá e revelará um povo urbano, meio escravo/meio livre, que falava latim vulgar e sofisticou o comércio e a agricultura. Enfim, quase um luxo.

Introduza os bárbaros. Primeiro os alanos, vândalos e suevos. Capriche nos suevos pois eles chegam para marcar presença: adoram trabalhar com enxadas e logo escolherão terras para cultivar. Por favor, convença-os a abandonar os instrumentos agrícolas às margens da vasilha. Alguém pode quebrar o dente quando o Português for servido. (…)

Adicione os visigodos romanizados (…) Espere inúteis três séculos – visigodo é um chuchu histórico, só faz volume, não larga gosto – e jogue os árabes e os mouros. A massa ficará mais encorpada, adquirirá novos contornos, novas falas, novas técnicas, uma nova arquitectura.

E por aí adiante. Não digo mais. Leia e aprecie. Se não gostar, ponha na beirinha do prato.


Obrigadissimérrimo

Êta livro fascinante. A Civilização Editora que o publica em Portugal merece um muito obrigado, à vontade. Firme. Sentido. Permitiu aos Portugas a leitura de um texto primoroso, cheio de graça, ironia e, sobretudo, Amor. Angela Dutra de Menezes, a autora, não leva um obrigado, não, ainda que muito. Dou-lhe um obrigadissimérrimo, que bem o merece.

Falo de uma obra, neste caso perfeitamente prima, vinda de quem vem, 189 páginas magníficas – «O Português que nos pariu». Linda de morrer. Alto lá. Estou influenciado pela Angela, sem circunflexo. Arrisco-me mesmo a sentir-me tentado pelo plágio. Daí este escrevinhar luso-brasileiro, ainda que com a grafia da banda de cá. Se mais houvesse a encomiar, prosseguiria de grato que estou. Porém, basta. Vamos ao que interessa.

Nunca convido ninguém para o que seja, sem ter a certeza de que experimentei a coisa e gostei. Daí a proposta que considero impositiva, até, se mo permitem, obrigatória: Amigas e Amigos, leiam «O Português que nos pariu». Aliás, parido no ano da graça de 2000, no cuzinho do século XX, trata-se de uma belíssima despedida do milénio. Um brinquinho.

Tomo a liberdade, depois de ter obtido a anuência da Livraria Civilização Editora, do Porto (
www.civilizacao.pt), de publicar acima, só para aguçar o apetite de possíveis leitores, um trecho do livro. Nestes transes, o que melhor que há a fazer é entrar direito pela obra e segui-la até ao fim, com os intervalos necessários para satisfazer algumas das necessidades mais elementares do ser humano.

A última indicação sobre a aceitação do que nos pariu no Brasil é que já tinha sido ultrapassada a sexta edição. Se calhar, registo por defeito, porque talvez já haja mais. De acordo com «O Globo», foi «um dos dez melhores livros do ano» esta «visão brasileira sobre a História dos Portugueses». Pudera, não.

Se não existisse a Wikipedia – ela teria de ser inventada, actualizando o ditado calino. Assim, Angela Dutra de Menezes (
Rio de Janeiro, 1946) é uma romancista e jornalista brasileira. Com o seu primeiro romance, Mil anos menos cinquenta (1995), a saga de uma família em dez séculos de civilização (de Portugal à vinda para o Brasil), filia-se à corrente do romance histórico moderno, trabalhando uma linguagem colorida e rica em nuances.
Na linha de um
Luiz António de Assis Brasil ou de um Tabajara Ruas, realiza uma ficção reflexiva e crítica da História. O seu segundo romance, Santa Sofia (1997), mergulha no imaginário de Minas Gerais do século XIX.
Os seus livros mais recentes são O avesso do retrato (1999), romance ambientado no Rio de Janeiro, que explora a dualidade do
carácter humano, e O Português que nos pariu (2000).

Só mais um aditamento. José Adelino Maltez – desnecessária a sua apresentação – escreveu: «Li esta semana o pequeno livro da jornalista e romancista brasileira, Angela Dutra de Menezes, dito "O português que nos pariu", onde é contada uma história lusitana, na qual as falhas científicas são compensadas pelo ardor imaginativo de quem nos ama e nos conhece de raiz. Afinal, os Estados Unidos da Saudade, também podem ser saudades de futuro.» Está tudo dito.
Antunes Ferreira

segunda-feira, agosto 06, 2007




HISTÓRIAS DA PJ

Aconteceu pelo Natal...


(Conclusão)


José Augusto Garcia Marques
D
ir-se-ia que estava à espera dessa pergunta. Nada perturbada, limitou-se a dizer não terem tais suspeitas qualquer fundamento. Considerava-se uma vítima da sua maneira de ser, espontânea e extrovertida e da inveja das cunhadas.

Fizemos-lhe ver que não seria só isso. A recusa em ir viver para a França não podia deixar de levantar suspeitas. Além disso era uma mulher vistosa, muito mais nova do que o marido. Perguntámos-lhe se, nesta sua última viagem, o António não lhe manifestara dúvidas acerca do comportamento dela ou se não se revelara particularmente ciumento. Se não seria justamente essa desconfiança que estava na origem da própria viagem e se não seriam aquelas preocupações que explicavam as decisões que tomara.

A Sílvia foi perdendo a serenidade. Levantou-se, passeou pela sala, foi buscar um maço de tabaco, tirou um cigarro, hesitou e voltou a metê-lo no maço. Pareceu-me ser o momento psicológico de “atacar”. Levantei-me também, aproximei-me dela – era quase da minha altura - e murmurei num tom de voz muito baixo, quase confessional: “Então e o Rodrigo? Onde é que costumam encontrar-se?”

Um rubor intenso invadiu-lhe o rosto claro, ao mesmo tempo que balbuciava: “O Rodrigo... foi meu namorado em solteira. Gostávamos muito um do outro. Mas depois casei, ele esteve na guerra e agora somos amigos. Só isso!” Pareceu-me desnecessário manter aquela tensão emocional. Afinal de contas, qualquer que fosse a verdade acerca da vida pessoal e amorosa da Sílvia, isso seria possivelmente estranho à matéria de facto envolvente do acto criminoso.

Recuperado o auto-domínio, e parecendo ler-me o pensamento, estranhou o interesse que toda aquela história acerca do seu namoro antigo poderia ter para a descoberta da verdade e para a identificação dos autores do crime. Sempre foi dizendo que o marido nunca lhe dissera com clareza que desconfiava dela. Mas que a desconfiança, qual “água mole em pedra dura”, deve ter-se ido instalando, pelo que não era de estranhar o progressivo distanciamento por parte dele.

Herdeiro – o filho

Quanto aos assaltantes, afirmou não fazer a mínima ideia de quem eram, de onde vinham, para onde iam e ao que andavam.

Antes de nos retirarmos, perguntámos-lhe se ela estava a par dos negócios do marido, das vendas em concretização, seus montantes e formas de pagamento. Disse que só sabia do que se estava a passar em termos muito gerais. Ou seja, percebia que o marido se queria desfazer do que possuía em Torres Vedras, mas ignorava quem eram os compradores, se já tinham pago os preços acordados e o que é que o marido projectava fazer com o dinheiro.

Observei apenas que, agora, morto o marido, todo o património se transferia para o filho. Na verdade, à data, o cônjuge sobrevivo era preterido na sucessão pelos descendentes. Mas cabendo-lhe o exercício do poder paternal sobre o filho menor, ela seria a administradora dos bens e, de facto, sua “usufrutuária”.

Voltámos à sede, tendo preparado e difundido por todas as autoridades policiais do País e, através da Interpol, para Espanha, uma folha informativa relativa ao homicídio do emigrante, contendo a fotografia e os dados nominativos conhecidos do Ângelo e ainda os dados sinaléticos dos outros dois assaltantes e o modus operandi utilizado na prática do crime. Passados uns dias, já em meados de Janeiro, recebemos um telefonema da GNR da Malveira informando que tinha acabado de ser preso, numa feira, um tal Rui, o cigano mais alto do bando. Uma viatura da PJ partiu de imediato para o ir buscar.

Ainda não tinham regressado à sede e já muitos ciganos, familiares do detido, se aglomeravam na Gomes Freire ou no pátio do Arquivo de Identificação, junto da porta de entrada da PJ, num procedimento colectivo muito próprio de tais comunidades nestas circunstâncias. Bastou uma conversa com o Rui para concluir que ele nada tinha que ver com o crime. Era efectivamente um homem muito alto e magro, com vinte e poucos anos, o aspecto sofrido de quem já está habituado a ser vítima de discriminações e injustiças. Percebia-se, porém, que tinha tido conhecimento do homicídio do emigrante e que, sobre o assunto, tinha informações, porventura, relevantes. Só que logo percebemos que não iria falar.

Vigorava, ao tempo, um regime legal que permitia a prisão sem culpa formada durante cerca de um mês. Embora condenável, sob a óptica dos direitos humanos, o certo é que a PJ, que não era instância legisladora, aproveitava, dentro de parâmetros tidos como razoáveis, as possibilidades de investigação que um tal regime lhe proporcionava. Quer isto dizer que, apesar da convicção de que o Rui estava inocente, foi decidido mantê-lo sob prisão, nos calabouços da PJ, durante alguns dias. As nossas expectativas vieram a ter concretização.

Um velho cigano


Um dia, um cigano, já com cerca de sessenta anos, todo vestido de preto, a barba grisalha, longa e espessa, com aspecto de “patriarca”, pediu para falar com o Chefe de Brigada, seu antigo conhecido e polícia com bom nome na comunidade. Apresentou-se como tio do Rui.

Conhecia bem a família que adoptara o Ângelo de Jesus. Em virtude da sua conduta, este colocara-se à margem da comunidade, de que acabou por ser expulso, até porque punha em permanente risco as crianças e as mulheres que a integravam e que viviam no acampamento. Segundo o “patriarca”, o Ângelo já não era “um cigano”. Ao abandonar a família, fora, porém, acompanhado pelo seu “irmão de leite”, o Simão, um “bom gigante”, seu incondicional seguidor. Formaram um bando de malfeitores, onde o “Beiço Rachado” pontificava, secundado por um tal Alfredo, delinquente com largo cadastro. Segundo o nosso informador, teriam sido estes os três matadores do António.

Libertado o Rui e recolhidos, no ARI, os abundantes dados existentes acerca do Alfredo, incluindo uma fotografia relativamente actualizada, foram actualizadas as fichas biográficas e sinaléticas dos suspeitos. Apenas o Simão não tinha antecedentes policiais nem dele existia fotografia disponível.

O tempo passou. Chegou o Verão de 1970 e o nosso agente Adérito Guerreiro (nome fictício), natural de Odeceixe, foi passar férias à sua terra. Sentado a uma esplanada, deliciava-se com os sabores da sua juventude e conversava com os amigos, que queriam conhecer as aventuras da vida profissional do patrício que, ainda muito jovem, fora trabalhar para a “Judite”. Ao segundo prato de caranguejos, o Américo falou do crime de Torres Vedras. Referiu-se então ao “Beiço Rachado” e ao “calmeirão” de quase dois metros que o acompanhava. Eis senão quando um dos amigos lhe disse: “Mas esses gajos andam por aí”! Tinha-os visto algumas vezes nos últimos dias, sempre juntos, ou acompanhados por um terceiro indivíduo, mais velho e de má catadura. Alguns dos presentes confirmaram a informação.

O agente Adérito (utilizo obviamente as designações da época, quer quanto a cargos, quer quanto a serviços da PJ) contactou a GNR e, com os maiores cuidados, dirigiram-se ao local onde os suspeitos acampavam. Não havia dúvidas. Eram mesmo eles. Mas não estavam sós. Avistaram ainda uma mulher jovem com um rapazinho “escarranchado” na anca. A perigosidade dos meliantes, a quase certeza da resistência que iam oferecer e a presença de inocentes que importava proteger tornavam a operação particularmente delicada.

A caça ao homem


Obtidos os reforços necessários e assegurado o comando adequado, o cerco foi realizado. Aproveitando-se a providencial ausência dos três homens, recolheram-se a mulher e o bebé. A seguir foi preparada a emboscada. Houve a resistência esperada. No tiroteio que se seguiu, o Simão deu o corpo às balas para salvar o Ângelo. Ficou gravemente ferido e, em consequência, paraplégico. Os outros dois acabaram por se render.

Interrogados, disseram que o assalto de que resultou a morte do emigrante fora da sua exclusiva iniciativa, tomada no local e no momento em que divisaram a aproximação da bicicleta. Desconheciam quem fosse a vítima ou que trouxesse tanto dinheiro consigo. Embora tal relato fosse, para eles, o mais favorável do ponto de vista da tipificação do crime cometido, uma vez que excluía a premeditação ou, mesmo, a preparação antecipada da emboscada, pareceu-nos merecedor de crédito. O infeliz emigrante tinha-se limitado a passar no local errado, na hora errada!

Isenta de culpa, ficava, assim, a sua bela viúva. Passados cerca de dois anos, soube casualmente que a Sílvia voltara a casar. Com o Rodrigo...