quarta-feira, abril 30, 2008

Antigos foros
e costumes de Portugal

Quasi todos os nossos historiadores e chronistas [raríssimas são as excepções] se deram exclusivamente ao trabalho de escrever a historia dos príncipes e dos exércitos: paços e campos de batalha são os únicos logares por onde elles sabem andar ; as noticias acerca da maneira de existir do povo nos diferentes séculos da monarchia é cousa de que nada ou pouquíssimo curaram. Deste desleixo, ou, diremos antes, ignorância do verdadeiro fim e caracter da historia , nasceu o não possuirmos hoje dos annaes de Portugal senão a parte militar, e a consagrada ás acções dos reis:, partes em verdade importantes, mas insufficientissimas para com ellas só se haver de compor uma acabada historia nacional.


Todavia em nossos tempos tem-se começado a fazer serias indagações sobre os usos, costumes , instituições, e usanças de nossos avós:, emfim sobre todas aquellas cousas que podem servir de materiais para a verdadeira historia — a dos progressos da civilisação entre nos.
Deste género de trabalho devemos a maior e melhor parte á Academia Real das Sciencias , e mais de certo lhe deveríamos, se esta corporação não tivesse sido desajudada, menoscabada, e esquecida , por aquelles a quem cumpria anima-la , e incitar esses poucos homens grandes que nos restam a consagrarem os seus últimos annos a desenterrarem do pó do esquecimento vivas e inteiras as gerações que passaram.

Entre os monumentos dos séculos antigos da monarchia , são os foros e usos de varias povoações do reino, porventura, os mais curiosos, e delles foram já publicados alguns pela Academia. Eram estes foros leis municipaes, que do principio da monarchia até o reinado de D. Alfonso 2.° foram as únicas que houve, e que continuaram ainda a ter vigor, não encontrando as leis geraes do reino. Foi então que os concelhos começaram a servir-se de uma espécie de ordenações particulares, em que lançavam primeiro o foral da terra, depois os usos até ahi não escriptos , e ás vezes apoz isto as leis geraes do reino, que podiam importar á boa administração da justiça dentro dos limites do concelho.

Um dos mais notáveis entre os já publicados são os foros e costumes de Santarém , de que daremos aqui um extracto tirado daquelles artigos , que mais podem caracterisar essas epochas semi-barbaras.

Foros.

Se aquelle que travava uma briga era morto, e isto diante de homens bons [pessoas graves e principaes], o que o matava tinha que pagar um maravedim ao dono da casa, onde fora a morte, e metade se o perturbador só ficava ferido. — Homicídio, ou violência contra mulher , sendo o caso publicamente feito pagava-se com 500 soldos! Quem punha a outrem sujidade na boca [afronta grandíssima, mas mui frequente nos primeiros tempos da monarchia] pagava 60 soldos.

Para se fazer cabal idéa da conta em que os primeiros portuguezes tinham os mouros seus escravos, pondo-os em valia abaixo de bestas de carga, é interessantíssimo o artigo do foral que diz respeito ao pagamento da dizima : nelle se vê que a sua cathegoria, na escala dos animaes domésticos, era entre o burro e o porco. " Do cavallo ou da mula, que venderem ou comprarem homens de fora, por mais de dez maravedins, dêem um maravedim, e sendo por menos de dez , dêem meio : da egua vendida ou comprada dêem dois soldos : do burro e da burra, um soldo : do mouro ou da moura, um soldo meio maravedim : do porco ou do carneiro dois dinheiros : do bode ou da cabra um dinheiro &c. "

O clérigo gosava foro de cavalleiro : se o achavam, commettendo actos torpes com uma mulher, podiam prende-la a ella, mas no clérigo, nem pôr-lhe a mão.


Costumes.

Nenhuma mulher que recebesse preço de “más manhas”, podia fazer cousa que fosse válida, “sem mandado de seu marido”.

Nenhuma mulher podia queixar-se de ter sido violentada dentro da villa, salvo se a mettessem em logar onde não podesse gritar :, e nesse caso apenas saísse d’ahi devia vir chorando e bradando pelas ruas, e ir logo ter com a justiça , e dizer : " Vedes, o que me fez fulano? Se o caso era fora da villa, devia vir todo o caminho chorando e gritando, e dizendo a todos os que encontrasse, quer fossem homens, quer mulheres : " Vedes o que me fez fulano?" — e ir do mesmo modo queixar-se á justiça.

Quando qualquer mulher casada era condemnada a levar açoutes ou varadas, por ter brigado com outra, vinha o alvazil com ella a casa :, punha um travesseiro no meio do chão, e começava a dar arrochadas em cima delle : o marido estava defronte com a mulher, e com outra vara ía repetindo nas costas della a mesma solfa, estando á vista a justiça e a queixosa. Se o marido não dava as varadas na mulher com a mesma ancia com que o alvazil batia no travesseiro, dava-lh'as a justiça nelle.


Entre outras significações que antigamente tinha a palavra homicídio, ou “omezio”, era a de rixa que ficava entre o assassino de qualquer homem e a família deste, que por costume de muitas terras, e talvez geral, tinha direito de matar o matador , vendo-se este, portanto, obrigado a andar fugido ou escondido. Disto nos veio, segundo parece, a phrase vulgar de andar homiziado.

Quando a família do morto se compunha com o matador ou lhe perdoava, chamava-se a isso “fiir omezio”, isto é, acabar a rixa com o homiziado. Pelos costumes de Santarém, a ceremonia que neste caso se usava era a seguinte : o criminoso punha-se de joelhos, e mettia o seu “cuitello” na mão do queixoso: então o outro lhe pegava na mão, erguia-o, e beijava-o, ficando d'alli avante amigos. Isto se fazia perante homens bons.

Quando os alvazis condemnavam um homem á morte, o alcaide servia de algoz. Os filhos bastardos de peão, isto é, de homem não nobre , podiam ser reconhecidos , e nesse caso tinham na herança parte egual á dos filhos legítimos. Se o sayom [beleguim] ía fazer alguma penhora a casa de cavalleiro, e lá o moíam com pancadas, mandava o costume da terra que ficasse com ellas, sem coima.

Se alguém dizia “paravoas devedadas” [palavras prohibidas] a alguma mulher honrada, era obrigado a jurar-lhe diante de doze “mulheres boas”, ou doze “homens bons” que nunca viu aquilo que della dissera, que mentira, e que soltava aquellas palavras com sua paixão.


(in " O Panorama - Jornal Literário e Instructivo” – editado pela Sociedade Propangandeora dos Conhecimentos úteis, pag 379, Vol II, 1838)


Actual (com as adaptações óbvias...)

O Ricardo Charters mandou-me este texto. Unem-me ao remetente laços de Amizade de mais de meio século, vejam lá. Ou seja, de meninos e moços. Ricardo Charters d'Azevedo (que ainda recentemente publicou um livro sobre a sua Família de séculos, que tem vindo a reunir muitas opiniões encomiástica a significar o sucesso da obra) tem destas coisas.

Já o convidei por diversas vezes para colabora aqui, no Travessa. Mas, o «malandro» tem-se furtado, continuamente, alegando que sim, mas que também e etcoetera. Por isso, sempre que posso, aproveito algum do material com que me mimoseia - e publico-o, como hoje é o caso.

Engenheiro, homem da Cultura e de muitas facetas e correspondentes qualidades, é suficientemente conhecido não só neste País, mas a nível internacional. Adepto ferrenho da Europa e, por conseguinte, da UE, já foi - e muito bem - o Representante Permanente da Comissão Europeia aqui em Portugal. Isto bastaria para lhe conferir a dimensão política e profissional que tem.

Porém, é na qualidade humana, de Amigo, que lhe presto, aqui, a minha homenagem. O Ricardo é, realmente, Amigo do seu Amigo, não enjeita arrogantemente (quando no desempenho de funções muito altas é figura pública) os da sua criação. E quantos foram. Permito-me aqui lembrar, sentida e comovidamente os Câmaras Oliveira, também Charters, seus primos, que para mim foram, todos, mais do que irmãos: Amigos.

Penso que já vai longo este texto. O verdadeiro mimo que publico acima (respeitando, obviamente, a ortografia e a construção sintáctica da época) , de 1838, é, direi, perfeitamente aplicável na actualidade, obviamente com as devidas adaptações... Não lhe faço mais comentários. Deixo aos leitores essa oportunidade, arrisco-me até a dizer, esse dever... No entanto, mal ficaria comigo próprio, se não terminasse como faço no parágrafo seguinte.

Em Portugal, onde se cultiva a memória curta (e disso há muitos políticos que servem de exemplo), é bom recordar escritos como estes, trazê-los à superfície e, consequentemente, publicá-los. Esta é a minha opinião, que poderá ser contestada, considerada mal, criticada - mas é a minha. Pior do que uma péssima opinião é, tão só, não ter nenhuma.

Com um obrigado, mais um, ao meu Amigo Ricardo Charters d'Azevedo
Antunes Ferreira

terça-feira, abril 29, 2008

NA ROTA DO CALENDÁRIO

Abril e as Mentiras

Maria Lúcia Garcia Marques

Abril abre com o “Dia das Mentiras”. E se, à semelhança dos outros “Dias de ...”, o seu espírito é o de louvar, acarinhar e, eventualmente, promover, então estamos, sem dúvida, perante uma manobra do calendário a consagrar o lado transgressor, licencioso, quando não apenas picaresco, do dual balanço em que se move a alma humana desde os alvores da vida.

De facto, desde a história da Cobra e da Maçã e da falência do paraíso terreal, tudo se tornou duplo e co-relativo. Da edénica concórdia passou-se para a dilemática e incessante luta entre o Bem e o Mal, entre a Verdade e a Mentira, num jogo de equilíbrios em que os pobres humanos buscam encontrar o fio que lhes permita passar (apesar de tudo e mesmo assim) pelo fundo da agulha.

Só que a Verdade não nos pertence. Não é obra nossa. Temos de buscá-la e respeitá-la. É-nos um Dever. Enquanto a Mentira, podemos criá-la, tecê-la, afeiçoá-la ao nosso jeito e propósitos, urdi-la meticulosamente e, cúmulo da ousadia, servi-la com os temperos da Verdade. É-nos uma Tentação. Por isso a Verdade é árdua e seca, enquanto a Mentira, a genuína, pode ser uma obra de arte, de artifício e deleite.

A que Eça chamou “fantasia”, preconizando no seu receituário de artista:
... Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia.

Ou, na óptica de Fernando Pessoa, mais intrincada e mais íntima, encastrada no próprio retrato do poeta: O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que de-veras sente. Isto é, evidentemente, o lado “luxuoso” da Mentira – refinado e excepcional, louvado e até, para poetas e escritores, modo de vida. Chamam-lhe então “ficção”.

Mas há o trato caseiro da Mentira – e aí há uma graduação. Não é mentira – mas é já uma boa aproximação... – a ocultação da Verdade, o fazer-se desentendido ou a resposta enviesada. E aí temos o delicioso exemplo, numa das pérolas do nosso barroco repentista, na satírica pena de Nicolau Tolentino (1740-1811):

Chaves na mão, melena desgrenhada
Batendo o pé na casa, a mãe ordena
Que o furtado colchão, fofo e de pena
A filha o ponha ali ou a criada.


A filha, moça esbelta e aperaltada
Lhe diz co´a voz que o ar serena:
“Sumiu-lhe o colchão? É forte pena;
Olhe não lhe fique a casa arruinada!”

“Tu respondes-me assim? Tu zombas disto?
Tu cuidas que por ter o pai embarcado
Já a mãe não tem mãos?” E, dizendo isto

Arremete-lhe à cara e ao penteado.
Eis senão quando (caso nunca visto!)
Sai-lhe o colchão de dentro do toucado!.

Já me parece uma “proto-mentira” o dizer-se apenas parte da Verdade, ainda que com as mais pacificadoras intenções como decerto foi a do aviso feito pela Avó espanhola de uma das minhas amigas no dia em que esta se casou: Hija, fija-te: A su marido solo se dice la mitad de la mitad! Prudentíssima Senhora! O mesmo serve para quando digo: Muito obrigada por esta agradabilíssima noite!, quando me aborreci de morte. Aí não estou a mentir, estou apenas a ser educada. Coisas destas como por exemplo os preços aldrabados do regateio, não são mentiras mas simples regras de convivência num consentido e com sentido apagamento da Verdade ...

A Mentira “verdadeira”, porém, é mais que isso. Pressupõe uma escolha deliberada, uma tentativa de colher algum benefício sem que, do outro lado, haja nada que alerte as pessoas para o facto de estarem a ser enganadas. Pressupõe a intenção de enganar, de induzir o outro em erro e não é de todo gratuita. Mente-se para fugir ao castigo, para acertar num exame, para ganhar uma aposta, um jogo ou umas eleições, em última instância para salvar a pele ... Mas também se mente para não magoar as pessoas – as mentiras “carinhosas” – ou para as proteger – as mentiras “caridosas”.


E há mentiras históricas como, por exemplo, a de Deu-la-deu Martins na praça forte de Monção, lá pelo século XIV, que, vendo-se na contingência de se render pela fome, pegou nos últimos pães e, das muralhas, atirou-os ao inimigo, gritando-lhes que, se quisessem mais, era só pedir. Julgando os castelhanos a praça farta quando a tinham por esfomeada, levantaram o cerco e retiraram. Mentira heróica ou simples bluff, que importa? Foi saída redentora.

Apesar da ocasional utilidade da Mentira, teimam os sábios em dizer que “se apanha mais depressa um mentiroso que um coxo”. Mentira! Um bom mentiroso é um grande andarilho, um viajeiro imaginoso, um indutor de verdades “segundas” que, por serem quase-quase conformes às “originais”, lhe garantem largos raios de acção e destinos felizes – a prazo, mas felizes ...
E devo confessar que, excluindo o caso de mentiras malevolentes, nada me tira o prazer de uma boa mentira, porque – deixemo-nos de coisas – uma boa mentira dá-nos lustro ao ego, restaura-nos o amor próprio e é intimamente muito divertido!

Daí que o “Dia das Mentiras”, ao abençoar-nos este apetite, ponha uma pitada de humor matreiro na sisudez do calendário.

quinta-feira, abril 24, 2008



Um bom 25 de Abril !

Antunes Ferreira
D
e novo, o 25 de Abril. Há muito boa gente que se recorda dessa data em que o Movimento dos Capitães avançou contra a ditadura e a tirania que sobreviviam, estrebuchavam, lancinantes, em Portugal. Essa aventura épica traria como consequência a Liberdade e a Democracia ao nosso País. Por isso, o 25 de Abril ficou, fica e ficará para sempre na História. Na deste rincão à beira-mar plantado – e na Universal.

São passados 34 anos e, para mim, como para muitos outros, parece que foi ontem. Estava, então, em Luanda, onde ficara a viver depois de cumpridos os cinco anos de serviço militar obrigatório que me couberam em sorte. Os meus filhos recordam-se perfeitamente de me verem com os ouvidos colados ao rádio Sony que tinha em casa, e com as lágrimas correndo-me pela cara.

O do meio, o Paulo, perguntara à Mãe por que motivo o Pai estava a chorar. Foi um tanto difícil explicar-lhe que era de alegria. Ele tinha, na altura, acabado de fazer oito anos… Mas, como já então, quer ele quer os irmãos se debruçavam sobre livros e jornais (o Miguel estava a caminho dos dez e o Luís Carlos dos cinco, mas já sabendo ler bem, para ver o que eu escrevia…) as coisas foram-se tornando mais fáceis de explicar e de entender.

Soubera da madrugada redentora do dia 25 de Abril, ao meio dia, mais coisa, menos coisa, do dia… 25 de Abril. Foi uma correria. A alegria que me penetrou sem pedir autorização (ai dela que o fizesse!) e me encheu o corpo e o espírito todos, foi, se possível, aumentando à medida que chegavam, via radiofónica principalmente, catadupas de notícias, qual delas mais empolgante e emocionante. Donde, as lágrimas.

No dia 3 de Maio estava caído em Lisboa. Falhara até o primeiro Dia do Trabalhador em Liberdade, sem a salazarenta opressão. Mas, a TAP entrara em… greve. Liberdade, liberdade, quem a tem chama-lhe sua. Eu não tenho liberdade nem de pôr o pé na rua, cantava a Maria da Graça.

Isto é tão-só um registo e uma homenagem. Os que já se esqueceram que houve um 25 de Abril, façam o favor de recordar-se – e ser felizes. Os que não sabem (ou não querem saber) o que foi – façam o obséquio de se informar. A todos – um bom dia 25 de Abril. Ponto. De exclamação e de aclamação.

(Também publicado no blogue www.sorumbatico.blogspot.com)

sábado, abril 12, 2008

A loja do Abdul




Antunes Ferreira
As grandes cidades têm sempre zonas que, em tempos, eram chamadas de má fama. As pequenas grandes cidades, também. Naturalmente, portanto, Lisboa também as tem. Algumas entre essas problemáticas, evoluem; outras, consideradas até ao seu momento fatal de sanidade acima de qualquer suspeita, involuem. Ou regridem, ou lá o que quiserem. Gosto mais do in, mesmo que não exista o vocábulo. E se tal acontece, vou já à SPDA e ao Prof. Malaca Casteleiro para fazer os respectivos registos. C’os diabos: não se parem neologismos todos os dias.

Rezaram os media que, a PSP, através do Comando Metropolitano de Lisboa desencadeou há uns dias a operação «Vasco da Gama». Com um nome destes, forçosamente que teria de haver conotações orientais no acontecido. Pormenorizando, e sempre de acordo com a comunicação social, ela contou com efectivos bastantes. E qualificados.A saber: o Grupo de Intervenção e o Grupo Operacional Cinotécnico; a Câmara, com elementos da Polícia Municipal e da Área Social; a ASAE (podia lá faltar a Autoridade); o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras; a Direcção de Finanças da capital; a Inspecção Tributária; a Direcção Geral das Alfândegas e Impostos Especiais sobre Consumo e, ainda, a Autoridade para as Condições do Trabalho. Não faltou ninguém.

A acção decorreu durante três horas na Praça da Figueira, Martim Moniz, Largo de São Domingos, Rua da Palma, Almirante Reis e Intendente. Locais identificáveis e identificados à distância. A investigação, iniciada dois meses antes, pretendeu fiscalizar a actividade comercial na zona e detectar situações ilegais e ilícitas, como a presença de cidadãos ilegais no País, focos de pequeno tráfico de droga e prática de prostituição em albergues e pensões onde são detectados casos de desordem. O texto consta de comunicado do Comando Metropolitano da PSP.

Os resultados, igualmente enumerados, tiveram a expressão que conseguiram ter. Foram identificados 310 estrangeiros, encerrados quatro estabelecimentos e apreendidos dois mil quilos de peixe sem rotulagem, no valor de oito mil euros. Oito desses estrangeiros «foram alvo de notificações de abandono voluntário» do País e «21 foram objecto de notificações de comparência». Presumo que perante as autoridades.Apreenderam-se dez telemóveis e uma máquina de jogos, fiscalizaram-se 129 veículos, foram registadas 16 infracções ao Código da Estrada, 18 autos por contra-ordenação do trânsito e 16 também por contra-ordenação, estes no domínio dos estabelecimentos.

Um rol com uma certa dimensão. Não se pode comentar que foi um mons parturiens, mas também não teve resultados empolgantes. Comparados com o do pesadelo no Alvalade, menos decepcionantes, mas, enfim…A estas coisas, há, no entanto, que dar o devido valor e não se ficar pela nossa mesquinhez habitual, muito menos pela mediocridade que exibimos quotidianamente. Não se fizesse nada e caía o Carmo e a Trindade.

Mas que é isto? Até onde chegámos! É para isso que pagamos os nossos impostos? E a nossa segurança? E a criminalidade? Por este andar, não vamos lá.Desta feita, foi-se. E logo vem o autor destas linhas lançar perfidamente a insinuação torpe, plantar a cizânia ignóbil, apostrofar os autores do feito por mor da debilidade dos saldos que se conseguiram obter. Não presta, portanto, o escriba, confissão que nem com quinhentos actos de contrição e penitência de milhentas orações justificaria a absolvição. Tenho-o dito e escrito: nós, os Portugas, não prestamos.

Dito isto, só me resta o recurso (não para qualquer Relação ou Supremo, nem para ralações supremas) a uma estória que me foi emeilada por um tal Maia Figueiredo, meu correspondente quotidiano e prolífero. Um muito obrigado aqui exaro. Sem ele e o seu contributo, não haveria crónica por crónica e prolongada falta de inspiração do autor. Entretanto foram-me chegando remessas semelhantes. A esmo e por exemplo: da Marina Dinis, psiquiatra encartada na nossa praça.Não me parece necessário entrar em muitos pormenores.

Daí que me detenha, nomeadamente, no Martim Moniz, cujos centros comerciais, sobretudo o da direita (de quem vai para a Almirante Reis, nada de maus pensamentos e ínvias intenções) possuem inúmeras lojas, lojinhas & similares caracteristicamente orientais, do indiano ao chinês.É um centro também de… fumo e de agulha, até mesmo de comprimidos. Consumidores/compradores, é o que não falta. Pequenos dealers (forma bonita de dizer rastejantes e milimétricos vendedores) por lá igualmente andam e proliferam. O ar que se respira já indicia o que se passa.

Alto lá: não sãos todos assim os humanos que por ali cirandam. Nada disso. Há gente boa, honesta e vertical por toda a parte, felizmente. Por que bulas não haveria de existir no Martim Moniz? Aclarado o escrito, vamos à estória.

Um senhor de fato e gravata e, até, de spatos engraxados, entra na loja/cubículo do Abdul, cidadão com autorização de permanência no País. O cavalheiro mira, com ar desprezível, a desarrumação normal: coisas aos montes, caixas de cartão vazias, sacos de plástico das mercadorias, brinquedos mais sofisticados ou absolutamente primários, leques, saris garridos pendurados em cabides de arame duvidoso, barrinhas de incenso para fumigação, quadros e estatuetas de Shiva, de Gandhi, do Padre Cruz, do Cristiano Ronaldo e da Senhora de Fátima, preservativos reforçados, relógios, corta-unhas e outra tralha.

- Ouve lá, senhor, como é o teu olhar com cara de parvo sobre o meu lojinha? Com ela, desde mais de dez anos, já tenho andar no Chiado, casa de campo no Carregado, uma apartamento em Albufeira, terrenos pé de Castro Verde, meu filho estudar medicina nos Estados Unidos, minha filha estágio de moda em Paris, para não te contar dos seis automóveis e quatro computares e telelés com pequena pen e tudo. E conta nos Banco. Ouviste senhor?

- Bom dia. Identifico-me com o meu cartão. Rui Saraiva, funcionário da Direcção Geral dos Impostos, em serviço de fiscalização a bens diversos, incluindo imóveis, móveis e outros.

- Senhor Dótor. Eu me apresento: Abdul Ahmed, monhé maior mentiroso de Martim Moniz. Desejas alguma coisa, senhor?

(Também publicado no blogue SORUMBÁTICO)

quarta-feira, abril 02, 2008



ÀVOLTAKÁTESPERO

Car(g)ta fiscal

Querido Fisco

No meu casamento, que se realizou no dia 18, estiveram presentes 120 convidados: 89 adultos, 9 crianças e 2 bebés. A festa teve lugar na Quinta da Quinta do meu padrinho Luís M. que me presenteou a boda (as cópias dos talões do talho, da mercearia e da peixaria seguem em anexo).
A minha tia Alzira S., que é costureira, fez-me o vestido e não cobrou nadinha, mas gastei 60€ em tecidos, 34,5€ nas rendas e bordados e 18,75€ em linhas, botões e alfinetes. As meias e as ligas ficaram por 35€, conforme recibos que envio. O noivo usou o fato da Comunhão Solene com umas ligeiras alterações (a Tia Alzira não cobrou nada).

O meu irmão foi o fotógrafo de serviço. Todas as fotografias foram enviadas aos convidados por e-mail, que imprimirão as que entenderem por sua conta. Não foi alugada qualquer viatura. Eu fui na charrete do Sr. José M., que andou comigo ao colo e é como um pai para mim. O Manuel (o meu noivo) foi de mota: a mota dele que ainda está a acabar de pagar, conforme se comprova com documento.


As flores foram todas do jardim da minha avó Margarida e a minha prima Mariana F. , que é uma moça muito prendada, fez os arranjos. A animação da festa esteve a cargo do irmão e dos primos do Manuel, que têm uma banda - os "Sempr'Abrir" que merecem ter sucesso.

Não pudemos aceitar nenhum dos presentes, uma vez que não vinham acompanhados dos recibos. Os charutos cubanos que um amigo nosso nos trouxe de Cuba ficaram para nós, porque não os declarou na Alfândega, e assim não os podíamos oferecer; agora não podíamos provar o seu custo.
Os preservativos comprou-os o Manuel naquelas máquinas que estão longas horas ao Sol (porque é um rapaz muito introvertido), mas que não dão recibos, o que me permite escusar-me a revelar o seu número, não vá, daqui a alguns anos, lembrares-te de cobrar retroactivamente uma taxa pelas que foram dadas na lua-de-mel.
Maria Julieta Silva Chibo
Manuel António Sousa Chibo

E as alianças?

Não entendo. Não consigo entender. Que o Fisco se empenhe em combater a fraude fiscal, num País como o nosso, em que enganar o Estado e fugir aos impostos é prática quotidiana, acho muito bem. Ou pagamos todos, ou não paga nenhum, diz o Povo. Ora, ele, o referido Estado, precisa de receitas. Donde, e a cobrança fiscal. E não se trata de uma bisca com euros. O jogo é mesmo a sério. Com trunfos e tudo.

Mas esta estória da fiscalização das despesas com o casamento está muito mal contada. Ainda ninguém conseguiu tirar a limpo o que realmente estaria na mente das Finanças ao conceber a medida e pô-la em prática; e creio que, pelo menos eu, nunca lograrei fazê-lo. Ou se trata de anedota mal amanhada – e nisso não acredito – ou é necessário que seja explicado aos cidadãos o que se pretende alcançar com a disposição. Cabalmente.

Terá sido deturpada a ideia? Terá havido uma má interpretação por parte da Administração Pública? Que diz o Ministro Fernando Teixeira dos Santos? Ou, no mínimo, a Direcção Geral dos Impostos? Ficaremos todos na dúvida? Há que esclarecer, obrigatoriamente, o caso e provar que a deliberação tem razão de ser. O Fisco não pode ser um tubarão de boca permanentemente aberta, mostrando os dentes terriveis.


Entretanto, enquanto paira a incerteza, nós os Portugueses, que somos especialistas no repentismo das anedotas, já pusemos a correr uma substancial quantidade delas, escritas, desenhadas, faladas. Uma das melhores é, em meu entender, esta carta ao Sr. Fisco, que me chegou através de mail enviado pelo Jorge Correia Jacinto, um bom e «velho» Amigo.

Uma nota que se me afigura pertinente: ele está permanentemente contra o Governo, e em particular, contra o Sócrates. Tem, disso, o seu pleníssimo direito, pois estamos em Liberdade e Democracia. Abusa disso? Quiçá. Não da Democracia e da Liberdade, o Jorge não é desses, mas é praticante entusiasta do bota-abaixo. É o que faz e, pelos vistos, gosta de fazer. Militantemente.

Não concordo politicamente com ele, muito menos com algumas das «graças» que quase quotidianamente transmite. Normalmente, deleto-as. Sem me chatear e sem comentários. Outras dão-me gozo, por terem piada. Por vezes até, muita. Esta carta é bem o exemplo. Gostei. Mas acima das divergências políticas, clubistas, religiosas ou outras, coloco (como sempre coloquei e colocarei) o bem precioso que é a Amizade. O resto são cantigas que, ao que dizia a letra, o vento as leva. Aqui fica, portanto, o documento. Divirtam-se.
Antunes Ferreira

terça-feira, abril 01, 2008

RAIO DE VIDA

Despoletar
• A praga da asneira

Antunes Ferreira
V
ocês sabem alguma coisa de tropa? Estiveram no serviço militar? Consultaram, ainda que episodicamente, uma Enciclopédia? Mesmo a Wikipédia? E como vamos de conhecimentos de Português? Leram o Fernando Pessoa? Já ouviram, pelo menos, citá-lo quando escreveu que «a nossa língua é a nossa Pátria»?

Homessa. Que saraivada de perguntas. E, ainda por cima, aparentemente, não teriam muito a ver umas com as outras. Está visto: o cronista pifou, apagou as lâmpadas incandescentes, apesar das campanhas da EDP, ainda não as substituiu pelas económicas, de longa duração e poupadoras de energia. Resumindo: está cada vez mais parvo.

Como visado, o escriba tem (ainda) o direito de se defender. Isto não é a Carolina Michaëlis. Nem se está a utilizar qualquer telemóvel, apenas um teclado inofensivo de um modesto computador XP, por obra e graça de Mr. Bill Gates. Mas pago, não de graça. Daí que não venham para aqui chamados quer a aluna, quer a professora, muito menos o jovem que filmou, empolgado, a cena canalha. Estrumeira. Sarjeta. No more comments.



Que pretende, então, o escrito? Alto, e pára o baile. O dito cujo está a abarrotar de pontos de interrogação, mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. Ter-se-á, pois, de seguir em frente, sem considerandos mais ou menos espúrios, se não mesmo ininteligíveis. Já basta o que basta, e, ainda que não pareça, pode continuar-se a pensar que a linha recta é a que une mais directamente dois pontos.

Continua a ser expressão usada (e abusada) - que é um crasso erro, de qualquer ponto de vista. É o calino despoletar. Oradores, escribas, jornalistas, locutores, políticos, numa esmagadora maioria são militantes dessa asneira. Despoletar uma situação. A agressão despoletou consequências péssimas. O golo despoletou a recuperação do clube que perdia ao intervalo.

No fundo, uma constante: algo originou que um processo se activasse, se desenvolvesse, ou aumentasse a sua importância ou dimensão. Ou seja, algo fez explodir a coisa que se encontrava mais ou menos em estado larvar. Está profundamente errada a utilização do termo. Profunda, não, completamente errada. Se a análise fosse feita em termos religiosos, tratar-se-ia de um pecado capital. Em termos jurídicos, um crime, no mínimo por ignorância.

Tome-se uma granada, por exemplo, uma de mão, defensiva. O seu corpo metálico, em forma de pinha recortada (invólucro), é «recheado» de explosivo. Ao ser deflagrada, são os estilhaços dela que deverão atingir o inimigo. Para que isso funcione, rezam os manuais da arma, acentuam os instrutores, que os utentes têm de usar cuidados especiais. Se os não respeitarem, podem eles próprios ser vítimas dela. Muitíssimas vezes isso tem acontecido, infelizmente.

Explique-se o funcionamento do artefacto bélico. Para que o detonador origine a explosão é necessário que algo o percuta. Assim no interior da granada, existe um objecto seu componente; pode dizer-se de modo mais simples, que é uma espécie de prego com uma ponta, naturalmente. É o percussor. Nem mais, nem menos.

A granada está armada, com a espoleta (às vezes existem duas) no seu lugar, a qual quando detona faz explodir o artefacto bélico, por força do movimento vertical e para baixo do percussor que acciona o detonador. Aquele é envolvido por uma mola helicoidal. Na sua extremidade, no cimo da granada, tem um orifício seguro por uma «argola» ou pino, que trava a acção da mola. Além disso, uma alavanca colocada lateral e longitudinalmente no exterior da arma é outra garantia para o militar que a arremessa.

Deste modo, o atirador, retira o pino, segurando firmemente a alavanca para que a mola não prima de imediato o percussor sobre o detonador. Leva o braço atrás, conta até dez, para temporalizar o acto e lança a granada para o inimigo. O restante, é óbvio. A não ser assim, não existiriam tais objectos letais. O que, aliás, seria excelente.

Ora muito bem. Espoletar uma granada é ter a espoleta colocada no seu lugar, pronta a actuar, ou seja a originar a explosão. Se o Português ainda tem regras – e tem-nas, ainda que bastas vezes esquecidas, ignoradas ou, até, vilipendiadas – o que se ensinava sobre o prefixo des era que da sua junção à palavra base resultava a negativa desta.

Organizado. Desorganizado. Elegante. Deselegante. Ocupar. Desocupar. Não vale a pena continuar com exemplos, aliás despiciendos. Espoletar. Despoletar. Sendo assim, despoletar significa tirar a espoleta de uma granada. O que quer dizer que ela não explodirá, pois fica inerme. Sem grande margem para dúvidas, refira-se. Militares e linguistas, ou vice-versa, não podem estar mais de acordo.


Donde, a expressão estar a ser utilizada (e já há bastante tempo, infelizmente) com significado absolutamente oposto ao que suposta e aparentemente se pretende com ela. Despoletar é desarmar, é impedir que a detonação se verifique, é, em boa hora, impedir que corra sangue. É abortar a violência.

Este, hoje, é um texto que foge ao habitual. Já lá vão uns anos, um Senhor chamado António Valdemar escreveu sobre o tema no Diário de Notícias e o escriba, na altura seu camarada de lides jornalísticas, mais uma vez aprendeu com ele. Refere-se aqui a circunstância, citação que se entende inteiramente justa, correcta e, portanto, em absoluto, pertinente.

Foi, no entanto, a voz que clamou no deserto. Valdemar, um Homem cultíssimo, sabedor, cabeça prestigiada, memória prodigiosa, maçon sem peias, académico de mérito, foi à estacada, esgrimiu com mestria, desancou nos ignorantes – mas o erro crasso prosseguiu, dir-se-ia, impávida e tranquilamente. Debalde, por conseguinte.

Nós, os Portugueses, somos assim. A calinada, de tantas vezes repetida, entrou no corriqueiro do dia-a-dia. Esmerou-se na alarvidade linguística. Para ser mais correcto: esmerámo-nos, pois o cronista é tão luso como todos os restantes cidadãos. E compatriotas. Só que, no caso vertente, tenta usar correctamente o despoletar. Quer na Língua, quer na guerra, há que despoletar, sim, mas no sentido correcto.

(Tambem publicado no blogue SORUMBATICO)