quarta-feira, abril 30, 2008

Antigos foros
e costumes de Portugal

Quasi todos os nossos historiadores e chronistas [raríssimas são as excepções] se deram exclusivamente ao trabalho de escrever a historia dos príncipes e dos exércitos: paços e campos de batalha são os únicos logares por onde elles sabem andar ; as noticias acerca da maneira de existir do povo nos diferentes séculos da monarchia é cousa de que nada ou pouquíssimo curaram. Deste desleixo, ou, diremos antes, ignorância do verdadeiro fim e caracter da historia , nasceu o não possuirmos hoje dos annaes de Portugal senão a parte militar, e a consagrada ás acções dos reis:, partes em verdade importantes, mas insufficientissimas para com ellas só se haver de compor uma acabada historia nacional.


Todavia em nossos tempos tem-se começado a fazer serias indagações sobre os usos, costumes , instituições, e usanças de nossos avós:, emfim sobre todas aquellas cousas que podem servir de materiais para a verdadeira historia — a dos progressos da civilisação entre nos.
Deste género de trabalho devemos a maior e melhor parte á Academia Real das Sciencias , e mais de certo lhe deveríamos, se esta corporação não tivesse sido desajudada, menoscabada, e esquecida , por aquelles a quem cumpria anima-la , e incitar esses poucos homens grandes que nos restam a consagrarem os seus últimos annos a desenterrarem do pó do esquecimento vivas e inteiras as gerações que passaram.

Entre os monumentos dos séculos antigos da monarchia , são os foros e usos de varias povoações do reino, porventura, os mais curiosos, e delles foram já publicados alguns pela Academia. Eram estes foros leis municipaes, que do principio da monarchia até o reinado de D. Alfonso 2.° foram as únicas que houve, e que continuaram ainda a ter vigor, não encontrando as leis geraes do reino. Foi então que os concelhos começaram a servir-se de uma espécie de ordenações particulares, em que lançavam primeiro o foral da terra, depois os usos até ahi não escriptos , e ás vezes apoz isto as leis geraes do reino, que podiam importar á boa administração da justiça dentro dos limites do concelho.

Um dos mais notáveis entre os já publicados são os foros e costumes de Santarém , de que daremos aqui um extracto tirado daquelles artigos , que mais podem caracterisar essas epochas semi-barbaras.

Foros.

Se aquelle que travava uma briga era morto, e isto diante de homens bons [pessoas graves e principaes], o que o matava tinha que pagar um maravedim ao dono da casa, onde fora a morte, e metade se o perturbador só ficava ferido. — Homicídio, ou violência contra mulher , sendo o caso publicamente feito pagava-se com 500 soldos! Quem punha a outrem sujidade na boca [afronta grandíssima, mas mui frequente nos primeiros tempos da monarchia] pagava 60 soldos.

Para se fazer cabal idéa da conta em que os primeiros portuguezes tinham os mouros seus escravos, pondo-os em valia abaixo de bestas de carga, é interessantíssimo o artigo do foral que diz respeito ao pagamento da dizima : nelle se vê que a sua cathegoria, na escala dos animaes domésticos, era entre o burro e o porco. " Do cavallo ou da mula, que venderem ou comprarem homens de fora, por mais de dez maravedins, dêem um maravedim, e sendo por menos de dez , dêem meio : da egua vendida ou comprada dêem dois soldos : do burro e da burra, um soldo : do mouro ou da moura, um soldo meio maravedim : do porco ou do carneiro dois dinheiros : do bode ou da cabra um dinheiro &c. "

O clérigo gosava foro de cavalleiro : se o achavam, commettendo actos torpes com uma mulher, podiam prende-la a ella, mas no clérigo, nem pôr-lhe a mão.


Costumes.

Nenhuma mulher que recebesse preço de “más manhas”, podia fazer cousa que fosse válida, “sem mandado de seu marido”.

Nenhuma mulher podia queixar-se de ter sido violentada dentro da villa, salvo se a mettessem em logar onde não podesse gritar :, e nesse caso apenas saísse d’ahi devia vir chorando e bradando pelas ruas, e ir logo ter com a justiça , e dizer : " Vedes, o que me fez fulano? Se o caso era fora da villa, devia vir todo o caminho chorando e gritando, e dizendo a todos os que encontrasse, quer fossem homens, quer mulheres : " Vedes o que me fez fulano?" — e ir do mesmo modo queixar-se á justiça.

Quando qualquer mulher casada era condemnada a levar açoutes ou varadas, por ter brigado com outra, vinha o alvazil com ella a casa :, punha um travesseiro no meio do chão, e começava a dar arrochadas em cima delle : o marido estava defronte com a mulher, e com outra vara ía repetindo nas costas della a mesma solfa, estando á vista a justiça e a queixosa. Se o marido não dava as varadas na mulher com a mesma ancia com que o alvazil batia no travesseiro, dava-lh'as a justiça nelle.


Entre outras significações que antigamente tinha a palavra homicídio, ou “omezio”, era a de rixa que ficava entre o assassino de qualquer homem e a família deste, que por costume de muitas terras, e talvez geral, tinha direito de matar o matador , vendo-se este, portanto, obrigado a andar fugido ou escondido. Disto nos veio, segundo parece, a phrase vulgar de andar homiziado.

Quando a família do morto se compunha com o matador ou lhe perdoava, chamava-se a isso “fiir omezio”, isto é, acabar a rixa com o homiziado. Pelos costumes de Santarém, a ceremonia que neste caso se usava era a seguinte : o criminoso punha-se de joelhos, e mettia o seu “cuitello” na mão do queixoso: então o outro lhe pegava na mão, erguia-o, e beijava-o, ficando d'alli avante amigos. Isto se fazia perante homens bons.

Quando os alvazis condemnavam um homem á morte, o alcaide servia de algoz. Os filhos bastardos de peão, isto é, de homem não nobre , podiam ser reconhecidos , e nesse caso tinham na herança parte egual á dos filhos legítimos. Se o sayom [beleguim] ía fazer alguma penhora a casa de cavalleiro, e lá o moíam com pancadas, mandava o costume da terra que ficasse com ellas, sem coima.

Se alguém dizia “paravoas devedadas” [palavras prohibidas] a alguma mulher honrada, era obrigado a jurar-lhe diante de doze “mulheres boas”, ou doze “homens bons” que nunca viu aquilo que della dissera, que mentira, e que soltava aquellas palavras com sua paixão.


(in " O Panorama - Jornal Literário e Instructivo” – editado pela Sociedade Propangandeora dos Conhecimentos úteis, pag 379, Vol II, 1838)


Actual (com as adaptações óbvias...)

O Ricardo Charters mandou-me este texto. Unem-me ao remetente laços de Amizade de mais de meio século, vejam lá. Ou seja, de meninos e moços. Ricardo Charters d'Azevedo (que ainda recentemente publicou um livro sobre a sua Família de séculos, que tem vindo a reunir muitas opiniões encomiástica a significar o sucesso da obra) tem destas coisas.

Já o convidei por diversas vezes para colabora aqui, no Travessa. Mas, o «malandro» tem-se furtado, continuamente, alegando que sim, mas que também e etcoetera. Por isso, sempre que posso, aproveito algum do material com que me mimoseia - e publico-o, como hoje é o caso.

Engenheiro, homem da Cultura e de muitas facetas e correspondentes qualidades, é suficientemente conhecido não só neste País, mas a nível internacional. Adepto ferrenho da Europa e, por conseguinte, da UE, já foi - e muito bem - o Representante Permanente da Comissão Europeia aqui em Portugal. Isto bastaria para lhe conferir a dimensão política e profissional que tem.

Porém, é na qualidade humana, de Amigo, que lhe presto, aqui, a minha homenagem. O Ricardo é, realmente, Amigo do seu Amigo, não enjeita arrogantemente (quando no desempenho de funções muito altas é figura pública) os da sua criação. E quantos foram. Permito-me aqui lembrar, sentida e comovidamente os Câmaras Oliveira, também Charters, seus primos, que para mim foram, todos, mais do que irmãos: Amigos.

Penso que já vai longo este texto. O verdadeiro mimo que publico acima (respeitando, obviamente, a ortografia e a construção sintáctica da época) , de 1838, é, direi, perfeitamente aplicável na actualidade, obviamente com as devidas adaptações... Não lhe faço mais comentários. Deixo aos leitores essa oportunidade, arrisco-me até a dizer, esse dever... No entanto, mal ficaria comigo próprio, se não terminasse como faço no parágrafo seguinte.

Em Portugal, onde se cultiva a memória curta (e disso há muitos políticos que servem de exemplo), é bom recordar escritos como estes, trazê-los à superfície e, consequentemente, publicá-los. Esta é a minha opinião, que poderá ser contestada, considerada mal, criticada - mas é a minha. Pior do que uma péssima opinião é, tão só, não ter nenhuma.

Com um obrigado, mais um, ao meu Amigo Ricardo Charters d'Azevedo
Antunes Ferreira

2 comentários:

Anónimo disse...

Henrique,
Tu és um "malandro", mas um bom "malandro", e um bom amigo.
Efectivamente tenho pouco tempo para "estas cousas" e principalmente agora que estou reformado. Mas a história interessa-me (efeitos da nossa formação no Liceu Camões) e tenho vindo a debater o tema "como viviam os nossos antepassados" no site chamado Geneall (http://www.geneall.net/P/forum_msg.php?id=194112).
Vivia-se mal...com dificuldades, mas, já nos esquecemos.

Um abração, Henrique


Ricardo

Leonor disse...

Confesso que ao príncipio pensei que agora lhe tinha dado para escrever à antiga... mas realmente estava a achar estranho...

Gostei imenso deste post, obrigada pela informação

um beijinhos