terça-feira, fevereiro 26, 2008





GANDA LATA

A esperança

da Esperança


Antunes Ferreira

Será que realmente a esperança é a última coisa a morrer? Pergunta ontológica esta, que encerra uma concepção essencial do ser. Boa. Heidegger diria ôntico. Ser ou não ser, eis a questão, de acordo com o Shakespeare. A cultura é muito bonita. A terminologia, idem. A conceptologia, aspas. Mau. Por que bulas isto está a ir por tal caminho? Que razão para tantas interrogações? Deixe-se o autor de modos amaneirados, salvo seja, e vamos ao que interessa.

A esperança é sentimento que não se deve deitar fora – quanto mais morrer. Bem vistas as coisas, esperar é confiar. Mas nem sempre a esperança é o que parece. Por exemplo, uma tia do escriba tinha o que então se chamava uma criada, de nome Esperança. A senhora Esperança. Mulher de força, apta para todo o serviço, simpaticíssima, uma mãos-de-fada em tudo o que bulia, da cozinha à costura.

Era casada com o senhor Alberto, pessoa de bem, um tudo nada atreito aos copos, mas nada que causasse grande preocupação, mesmo entornado continuava a ser bem educado, atenciosos e prestável. Trabalhava de electricista
em obras diversas, dava sempre um jeitinho no que fosse necessário, desde uns pingos de solda nos fundos das panelas, até ao uso da almotolia em dobradiças menos colaborantes. Um habilidoso. Nato, ainda que por aquelas alturas não se tratasse da OTAN.

Nascera, tal como se disse, para o desenrascanço. O que só lhe ficava bem e o tornava um digno representante da raça portuga, desenrascada como ela, só... ela. Tinham três filhas e cinco filhos. Outros tempos, outras práticas, televisão nem vê-la e rádio, ouvi-la de noite era incómodo, o pessoal deitava-se cedo, com as galinhas, ainda que esta qualificação deixe sempre uns certos engulhos, pois que as referidas aves de capoeira não se pronunciaram – ainda – sobre o tema.

A senhora Esperança, um dia, chegou-se à patroa e segredou-lhe que a Julinha, a mais velha do rancho, uma rapariga muito atinada, com os seus 19 aninhos, estava de esperanças. Ó mulher, retorquira-lhe a Dona Mafalda, muitos parabéns. Já não era sem tempo; um casal perfeito como é o vosso caso, mais dia menos dia teriam a benção dos netos. Deus Nosso Senhor, na sua infinita bondade, decidiu que assim fosse. Graças lhe sejam dadas.

Nada, nada, minha Senhora. A galdéria - atente-se na evolução semântica, antes fora donzela exemplar – nem sequer me tinha dito ter conversado, quanto mais pensar em casamento. É a vergonha que se abate sobre os Santos. Homessa, Esperança. Os santos não são para aqui metidos e, tal como o Pai do Céu, os nomes deles não devem ser invocados em vão. Além disso, que tem a ver a gravidez da sua filha Júlia com a corte celestial?

Saiba a minha Senhora, com mil perdões da minha parte, que está a fazer uma grande confusão. Quem, eu? Veja lá como fala, ó Esperança. Espero que se explique convenientemente e não diga asneiradas. Confusão? Eu? Desculpe-me Senhora Dona Mafalda, eu referia-me aos Santos que somos nós. Nós? Está taralhouca. O caso deu-lhe volta à cabeça.

Nós, os Santos, porra! O nosso apelido é Santos, e mil desculpas por ter dito o que não devia ter dito. Estava, assim, instalada a confusão mais enviesada. Santos de casa, é bem sabido, não fazem milagres, estes Santos muito menos, e a desgraçada da Julinha bem se podia ter dedicado a actividades mais meritórias, sabe-se lá, à Pia Conferência de São Vicente de Paula, ou a aprofundar os conhecimentos que tinha da História de Portugal, até fizera a admissão. Vinha, assim, à mente da boa Esperança o Cabo homónimo do Bartolomeu. Há dias – ou Dias – em que não se pode sair de casa, nem de caravela, quanto mais de nau.

Acalmados os ânimos da Senhora Dona, olhe Esperança, há que saber o nome do pai da criança, trata-se da boda, o Senhor Doutor e eu seremos os padrinhos da rapariga e a Leninha será a madrinha do rebento. Tudo se pode curar e resolver, menos a morte, livre-nos Deus, Nosso Senhor. Muito obrigada, minha Senhora, eu sabia que podia contar consigo, mas. Aqui não há lugar para mases, logo acrescentou dona Mafalda. Para a frente é que é o caminho.

Esperança, (para com os seus botões, naturalmente, já bastava de alarvices e não fosse o diabo tecê-las) e para trás mija a burra. Adiante. E o que vai dizer – agora, sim, em voz alta – o meu Alberto desta desgraça? Tão bom pai e igual como marido, nem quero pensar no que fará! Até pode pôr a desavergonhada fora de casa, expulsá-la, que é o que ela merece. E se lhe dá para lhe arraiar uma sova? Que ele, mesmo com uns copitos, não é para esses preparos, mas, vistas as coisas... E os irmãos?...

Tudo se havia de resolver pelo melhor. A Esperança não conta diz nada e diz-lhe que eu ela própria, quiçá mesmo o Senhor Doutor, lhe daremos uma palavrinha. Renasceu a esperança à Esperança. No entanto - mas a propósito de quê, minha Senhora? Pois, diga-lhe que se trata de assunto do vosso interesse e que crê ser uma surpresa. Será, minha Senhora, será, pode estar certa. E, agora, despegue as mãos do avental e vá-se ao arroz de pato. Com certeza, minha Senhora, no forno. Como? No forno? O arroz de pato, está bem de ver.

Resolveu-se o imbróglio à boa maneira lusitana. A Julinha ainda levou um par de lambadas, o Leonardo veio às boas (que filho da puta de nome de genro que lhe havia caído na rifa, Leôncio seria pior), o casamento decorreu nos Jerónimos, linda celebração, até o coro cantou coisas lindíssimas, a noiva de vestido de, branco, com cauda não muito alambazada, grinalda e ramo. Tudo nos conformes.

Mãe Esperança não disfarçou a felicidade. Era toda ela um sorriso. Da dentadura resplandecente, branco mais branco não havia, incluindo o do traje nupcial. E foi no decurso do copo-de-água, que o Guedes enfermeiro-chefe, padrinho do nubente, já tocadote tal como o amigo Alberto, se dirigiu aos padrinhos da Júlia, para lhes contar, perdoem-me Vocências o que se segue, uma estória de esperanças. Dona Mafalda olhou-o de lado. Mais esperanças?

A Esperança no singular bem tentou afastar o aspirante a contador. Nada feito. O homem tinha adquirido uma embalagem de tintos, brancos, uisques e correlativos que nem um aviso de radar o faria abrandar, quanto mais parar. O Senhor Doutor fingiu que não era nada com ele – mas era. E o Guedes, em aceleração constante, já longe da pole position, contou.

Uma solteirona moradora em monte alentejano descobriu que uma amiga ficara grávida só com uma oração que rezara na igreja de uma aldeia próxima. Ficou em ânsias. Se a Felismina engravidara apenas com a ajuda da reza, pois então ela faria o mesmo, na esperança do tiro e queda.

Dias depois, a que ficara para tia foi a essa igreja e disse ao sacerdote que ali exercia o seu munus eclesiástico: «Bom dia, senhor prior». «Bom dia, minha filha. Em que posso ajudá-la»? «Sabe, senhor padre, soube que uma amiga minha veio aqui e ficou grávida só com uma avé-maria». «Não, minha filha, foi com um padre nosso, mas, pelo sim, pelo não, já foi transferido»...




Tanto quanto consta, a anedota do enfermeiro-chefe teve um êxito assinalável. Até a Senhora Dona Mafalda se riu da graçola. O digníssimo esposo, também. Quem não apreciou por aí alem o episódio foi a Julinha. Isto de padre nossos e de espíritos santos tem que se lhe diga. Para ela, ao Leonardo ninguém levava a palma.



NE – Ora muito bem. Da Alice Vieira chegou-me mais uma estorinha curta mas escangalhante, aliás – tanto quanto me apercebi pela mensagem – originária sabe-se lá donde, mas proveniente directamente de um tal Ribeiro Cardoso, figura sinistra da nossa praça. Continuo no fio do plágio. Mas, penso que ainda não caí nele. Reincido: roupagem nova. Obrigado alicev. Obrigado Rc. Mandem mais, sil us plau (sff) em vernáculo català.

sábado, fevereiro 23, 2008


HISTÓRIAS DA PJ




Aconteceu

na Primavera marcelista

(1ª parte)


José Augusto Garcia Marques


***

Por vezes, nas “histórias da PJ” (de há quase 40 anos) que tenho vindo a contar, o mais importante pode não ser o esclarecimento do “mistério”, mas sim o conhecimento e a reflexão acerca de alguns episódios da história recente do País. Penso ser este o caso da narrativa que agora começo a apresentar.


***

Regressado a Portugal, depois de concluída a minha comissão de serviço no Comando Naval de Angola e de gozar alguns dias de férias, fui desmobilizado da Armada, tendo iniciado as minhas funções como Inspector da PJ, na então Subdirectoria de Lisboa, mais concretamente numa Secção competente para a investigação de homicídios e de ofensas corporais voluntárias.

Era Maio de 1969 e estava-se em plena “primavera marcelista”, designação dada ao período de abertura política e de aparente tentativa de democratização do regime, iniciado com a tomada de posse de Marcelo Caetano como Presidente do Conselho de Ministros, em 27 de Setembro de 1968, e que se prolongou até algum tempo depois das eleições de Novembro de 1969. A promessa de eleições livres, era, de resto, um objectivo essencial do novo Presidente do Conselho, sendo um sinal de liberalização política revelador de uma “ideologia” de modernização, ao mesmo tempo que se pretendia que os seus resultados pudessem constituir uma fonte de acrescida legitimidade de um poder que havia sido “negociado e conquistado na chancelaria”.


A população estava expectante e, em muitos sectores, reinava a esperança. A própria oposição moderada entendeu que devia dar ao governante recém-investido, que foi recebido com entusiasmo inesperado na visita que fez às possessões de África, o benefício da dúvida.

O novo governo ensaiava reformas e adoptava medidas que pudessem proporcionar um novo dinamismo e descomprimir o regime, ainda que sem provocar com isso mudanças de fundo. Estas foram, em muitos casos, de carácter essencialmente cosmético. A Censura foi substituída pelo Exame Prévio;
a PIDE seria substituída pela DGS (Direcção-Geral de Segurança); a UN (União Nacional) pela ANP (Acção Nacional Popular). Algumas medidas inesperadas, mas de natureza fundamentalmente simbólica, foram adoptadas por Marcelo Caetano nos primeiros meses do seu consulado. Foi o caso dos actos pacificadores em que se traduziram as autorizações que permitiram que Mário Soares e o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, regressassem do exílio.

Com estes gestos, Marcelo Caetano, um notável jurisconsulto e Professor de Direito, pretendia dar um sinal de conciliação à oposição moderada que, na sua perspectiva, poderia dar um contributo importante para a liberalização. Além disso, tentava mostrar, no interior e no estrangeiro, a sinceridade do regime em avançar com reformas de abertura e democratização. Por fim, visava tranquilizar as “oposições” que se preparavam para as eleições de 1969. Como já se disse, era fundamental, na óptica do regime marcelista, que “as diferentes oposições” se apresentassem – como efectivamente se apresentaram – às eleições.

Compreende-se que os sectores mais preocupados com a evolução de abertura política então em curso, fossem os grupos e figuras de extrema direita, os “duros” do salazarismo, receosos de que Marcelo Caetano pudesse, no limite, pôr em causa a própria “integridade do Ultramar”. Entre os “falcões” contava-se a Legião Portuguesa, instituição criada em Setembro de 1936, que, até Abril de 1974, quando foi finalmente dissolvida, constituiu a milícia oficial do Estado Novo.

A intenção do Governo consistia na realização de eleições livres – e o acto eleitoral de Novembro de 1969 foi, por certo, o mais livre da história do Estado Novo. Todavia, os cadernos eleitorais estavam longe de traduzir a verdade do eleitorado nacional. Afinal, apenas 10% da população constava dos cadernos eleitorais e, destes, segundo os resultados oficiais, 38,5% não terão ido às urnas.

Além da União Nacional – o partido político único do Estado Novo, mais tarde substituída pela Acção Nacional Popular -, apresentaram-se também às eleições, em Lisboa, no Porto e em Braga, a CEUD e a CDE, ambas de oposição ao regime. A primeira era tida como mais próxima do que veio a ser o Partido Socialista, ao passo que a segunda era considerada como tendo uma feição frentista, com elementos do Partido Comunista em posições de relevo, além de outras figuras de esquerda independente. Tal como os resultados eleitorais vieram a revelar, a CDE tinha, na altura, uma implantação superior à da CEUD.

Apesar das boas palavras (e, admito, das boas intenções do Presidente do Conselho de Ministros), o certo é que, no período pré-eleitoral, incidentes vários de natureza violenta começaram a multiplicar-se. Tratou-se de episódios de cariz criminal, uns mais espectaculares, outros, porém, de maior gravidade penal.


O mais falado foi o que ficou conhecido como o “assalto à sede da CDE”, situada ao Campo Pequeno. Tratava-se de um pequeno edifício na esquina da Avenida da República com o Campo Pequeno, entretanto demolido, onde hoje está instalado o Banco do Fomento Nacional.

Numa noite, um grupo de indivíduos, apoiantes radicais do regime, arrombou a porta do edifício, vencendo a resistência oferecida a partir do interior. Invadiram as instalações, que vandalizaram; injuriaram e agrediram alguns dos militantes que se encontravam na sede, arrancaram cartazes das paredes, rasgaram suportes de propaganda; embeberam em cola uma brocha de colar cartazes e, com ela, humilharam alguns dos presentes, besuntando os seus rostos e vestuário. Ao mesmo tempo, um outro grupo escalou o edifício, tendo, para o efeito, lançado uma escada até à varanda do primeiro andar.

Em face da gravidade política dos factos, praticados num momento em que, como se disse, era intenção visível do Governo dar uma imagem de normalização a caminho de uma via democrática, foram dadas instruções à PJ para investigar rapidamente o ocorrido, identificando os autores do assalto, afim de serem julgados.

O processo foi-me distribuído pessoalmente.

Rapidamente se apurou que os meliantes e rufias que se introduziram na sede da CDE pertenciam à Legião Portuguesa, instituição de extrema-direita, de apoio aos “ultras “afectos ao regime.

Dentro do edifício estavam pessoas conhecidas no panorama intelectual e cultural do País, a par de militantes anónimos. Lembro-me, entre outros, do Advogado Vítor Wengorovius e dos Professores Luís Filipe Lindley Cintra e Francisco Pereira de Moura. Deixou-me particularmente bem impressionado o depoimento do Prof. Cintra, pela objectividade da descrição dos factos e pelo rigor da própria linguagem, muito mais sereno e ponderado do que os de outros, que, pela sua exaltação ou evidente exagero, não mereciam o mesmo crédito.

Quase ao mesmo tempo, ocorreu um outro facto de graves contornos criminais. Um médico, o Dr. Rui Oliveira, que estava encarregado de distribuir material de propaganda política da CDE, foi sequestrado e levado à força para o quartel da Legião Portuguesa, no Largo do Rato, e aí mantido em cárcere privado e barbaramente agredido por legionários ali presentes. A sua libertação, ao fim de algumas horas, terá ficado a dever-se a diligências desenvolvidas por familiares, um dos quais Professor de Medicina, que terão informado as autoridades que, dentro do carro do médico, detido, estavam soros, em risco de se deteriorarem.

Feita a queixa-crime, foi-me a mesma também distribuída, dadas as conexões com o assalto à sede da CDE.

(continua)


























quinta-feira, fevereiro 21, 2008




GANDA LATA


Da bebida e da vida

Antunes Ferreira

Há-os de todas as qualidades e feitios, raças e cor da pele, idades as mais diversas. O que os une é o álcool. Diz-se até que bêbados unidos jamais serão vencidos, mas trata-se de aproveitamento ignóbil de palavra de ordem para um outro fim e com dimensão diferente. No entanto, há que o dizer, os ébrios também fazem parte do Povo. É tal a amplitude dos grupos em que se subdividem, que parece que está a caminho uma central sindical que os representará; agrupamentos são muitos, o reconhecimento em Diário da República é que é o busilis.


Esta croniqueta tem origem em anedota curta que o autor recebeu. Daí a advertência primária: a história vem do meu cunhadíssimo excelso Raul Palhau, grande remetente de mensagens, todas engraçadas, algumas íssimas... O culpado, ou seja, o gajo que a assina, apenas a embrulhou em papel multicor para tornar o rebuçado mais comestível. Não podia deixar de aqui colocar o prolegómenos, de outra sorte, quem sabe, cairia o anátema do plágio. E seria muito bem feito. Por isso, e de acordo com regra consuetudinária, o escriba jura pelo que quer que seja, que é a verdade, só a verdade e aos costumes diz nada.

Cautelosamente, não é em vão que se regista que, na dúvida, quer o arguido quer as testemunhas devem ser sempre ajuramentadas. E até os simples declarantes não escapam à determinação.
Salvaguardada deste modo a correcção dos factos, siga a banda em andamento de procissão, com anjinhos e andores, o Senhor Bispo sob o pálio e os dignatários de opas vermelhas, como é uso e costume.

Dito (escrito) isto, volte-se aos embriagados. Uns quantos profissionais dos copos, os mais calinos, consideram que bebem para esquecer. É afirmação cabotina que, quando questionada, tem igualmente resposta consentânea: esquecer de quê? Não me lembro. O esquecimento é a mãe de muitas batalhas cerebrais. Não de todas, sublinhe-se. Por este caminho ínvio não se vai a nenhuma parte. É rua sem saída, com o T sinalético bem visível.

Uma anotação. É esta a altura para se exarar que, também neste particular, os homens e as mulheres têm os mesmos direitos e os mesmíssimos deveres. Se calhar, poderiam os hipotéticos leitores estar pensando que só os sujeitos masculinos se podiam embebedar. Pensamento espúrio, há que dizê-lo. Há notícias de grandes borrachas,
e até fotos das consequências que por vezes resultam. Agradáveis, algumas, diga-se em abono da verdade e sem sombra de machismo.

Os militantes da bebida não usam cartão identificador, nem clubístico, nem partidário, nem de organização mais ou menos secreta. É óbvio que são portadores de BI, de Cartão das Finanças com o Número Fiscal do Contribuinte, de documentos similares no que respeita à Segurança Social, às Eleições e por aí adiante. Um bebedor praticante que se preze não é um indocumentado. Longe disso. Chega a ter carta de condução. Apesar da recomendação que o alerta: se beber, não conduza; se conduzir, não beba. O tanas!

Os especialista consomem produtos os mais diversos e devidamente seleccionados. Desde a bagaceira devidamente engarrafada e fora do frigorífico, que a ASAE é vigilante atenta e cuidadosa, até ao Veuve Clicot, há uma infinidade de rótulos, de design de garrafas, de materiais continentes – vidro, plástico, tetra pak - de tipos de álcool, de rolhas de cortiça e, até, de plástico, de tampas de enroscar, sabe-se lá de mais o quê.

As regiões demarcadas são, igualmente, terrenos para os que se sabem (ou julgam que sabem) embriagar. Nestas coisas, o saber não ocupa lugar, diz o Povo, carregadinho de razão. Apanhar uma narça alentejana é bem diferente de apanhar uma cadela do Douro. Engorgitar JW rótulo vermelho é absolutamente distinto de engolir Four Roses. Ter maneiras, neste particular, é cartão de visita que identifica quem atesta o seu próprio depósito.

Claro que existem os generalistas e outrossim os básicos, entre eles os que ainda pedem nas tabernas que resistem denodadamente às directivas comunitárias o clássico copo de três, escorrido de torneira de barril, um tanto à socapa. Entre eles, avultam os que, questionados sobre se preferem tinto ou branco, sempre respondem convictamente – muito! Calino, mas verdadeiro, e ponto.

Por vezes, bastas vezes, são os titulares da carraspana global, quer dizer, álcool das mais diversas proveniências, melhores ou piores, mas sem pedigri, até sem rótulo, que se confessa ser o melhor.
É o modelo do tudo-ao-molho-e-fé-em-Baco. A grande mistura é quem mais ordena. Bagaço, verde, geropiga, brande, carrascão, medronho, ginjinha, agua-pé, uma infinidade de sabores, de cheiros e de cores, em coqueteis de ocasião – seguem garganta abaixo.

Seria quiçá agora o momento de alardear conhecimentos, falar de escanções, de pesa-sais, de taninos, de decantação, de pesa-espíritos, numa panóplia cuja amplitude é desmesurada. No entanto, não passaria de alarvidade fazê-lo. Arrotar postas de pescada – para quê? Para tanto existem os manuais vinícolas, as revistas especializadas, as provas de bochecho. Ala, que se faz tarde.

Serafim Carrapato era o que se pode chamar um bom copo. Ou, melhor, um não, muitos. Visitante voluntário e obrigatório de todas as capelinhas locais, estendia as incursões a outras latitudes, ainda que próximas. De uma visita transfronteiriça a Mérida, a Badajoz já fora por via dos caramelos, trouxera um azulejo a que achara muita piada e que tinha agora pendurado na sala de jantar. Os amigos das bóbidas compraziam-se em admirar o exemplar que ele dizia ser único. Mentia com quantos dentes tinha na boca.

Rezava assim o exemplar: ESCALA DE LA BORRACHERA – Facilidad de palabra; Exaltación de la amistad; Cantos regionales; Tuteo a la autoridad; Insultos al clero e, a finalizar, Delirium tremens. Carrapato, quando entornava púcaros em número industrial, parava sempre que se sentia avizinhar do tremens. Nos restantes estágios navegava à bolina, sem sobressaltos nem enjôos.

Não tinha mau vinho, bem pelo contrário. Afirmava com orgulho que era bêbado mas educado, bem comportado em procedimento. Virava-se para o lado, e ressonava como um justo, que, de resto, era. Brigas, palavrões, ameaças não eram com ele. Tinha um lema um tanto sebastiânico, mas seu: beber, sim; mas de vagar. Um bacano.

Já o Sol se pusera quando – convenientemente enfrascado – Serafim passou em frente de uma porta aberta em edifício claro. A curiosidade alcoólica levou-o a entrar. Havia gente em pé, outra sentada e muitos cochichavam numa surdina de poucos decibéis. Sentou-se, sem pedir autorização, aliás não saberia a quem, tudo e todos lhe eram estranhos.


N
isto, começou uma música. Levantou-se, cambaleando, e dirigiu-se a uma senhora de preto a quem pediu: «Hic... a Madama, dá-me o prazer desta, hic..., dança»? E ouviu a seguinte resposta: «Não, e por quatro motivos». «Homessa, hic..., poderá a Madama dizer-me por obstáculo, hic..., obséquio, quais são eles»? E a voz que lhe começara a responder prosseguiu: «Primeiro, o senhor está bêbado; Segundo, isto não é um baile, é um velório; Terceiro, mesmo que o fosse, não se dança o Pai Nosso. E quarto, porque 'Madame' é a puta que o pariu! Eu sou o padre»!!!

segunda-feira, fevereiro 11, 2008



Rosa Mota entusiasmou Goa

+ O Estado pretende organizar os Jogos da Lusofonia em 2013



A campeã olímpica portuguesa Rosa Mota esteve em destaque num encontro com cerca de dois mil alunos do Don Bosco College, de Goa, onde foi recebida entusiasticamente e respondeu, em inglês, a dezenas de perguntas do auditório. Dias depois, Rosinha participou numa corrida popular com centenas de pessoas, incluindo muitos jovens, com ampla cobertura de televisões e outros meios de comunicação da Índia.
Os Serviços de Comunicação do Comité Olímpico de Portugal, COP, divulgaram informações sobre o verdadeiro acontecimento que naquele Estado se verificou. Registo aqui, em súmula, passos dos textos produzidos.


A comitiva portuguesa liderada pelo Presidente do COP, Vicente Moura, de que faziam também parte o Presidente e o Vice-reitor da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, Jorge Olímpio Bento e Jorge Manuel Gonçalves, teve uma recepção emocionante por parte do responsável pela província da Ordem em Goa, Padre Loddy Pires, e pela Directora de Desportos do Estado, Susana de Sousa.
Vicente Moura, na altura, confessou-se «emocionado pela forma como Rosa Mota representou o Desporto nacional» no encontro com a juventude goesa. «Ela foi recebida em Goa com muito carinho, que chega a emocioná-la, mas é com orgulho que testemunho que tem estado mais uma vez à altura de uma grande campeã olímpica», comentou.



Antes de um jantar oferecido pelo líder parlamentar do Estado de Goa, Pratapsing Raoji Rane (*), a comitiva portuguesa foi recebida oficialmente pelo Ministro Chefe de Goa, autoridade máxima do território, na presença do secretário de Estado do Desporto e de dirigentes da Associação Olímpica de Goa e pelo Centro Internacional de Desportos. Na ocasião, o Chefe do Executivo, Digambar Kamat, anunciou a intenção de Goa se candidatar à terceira edição dos Jogos da Lusofonia, em 2013.


A delegação portuguesa assinou um protocolo conjunto de cooperação com o Don Bosco College of Physical Education, de Panjim, Goa. Esta faculdade, pertencente à Sociedade Salesiana local, dirige, por atribuição da Universidade de Goa, o único curso superior de Educação Física no estado, tendo graduado 115 formandos desde a criação em 2004, mas pretendeu com o protocolo desenvolver e melhorar as competências do curso.


Não se quedaria por aí a intervenção da grande campeã portuguesa. Rosa Mota viveu mais uma experiência inesquecível em Goa, ao participar numa corrida popular com centenas de pessoas, incluindo muitos jovens, e com ampla cobertura de televisões e outros meios de comunicação da Índia. Muitos portugueses residentes ou ali em turismo também presenciaram a «Corrida Rosa Mota», cujo tiro de partida foi dado pelo Ministro da área do Desporto do Estado de Goa.

Ainda de acordo com os S.I do COP, a meta estava instalada junto às instalações da Direcção do Desporto, onde decorreu uma homenagem pública a Rosa Mota e aos restantes membros da comitiva portuguesa, A corrida foi organizada pela Directora dos Desportos e da Juventude, no âmbito do protocolo entre o Don Bosco e a Universidade do Porto, e apoiado pelo COP. Ao englobar esta Missão, a campeã olímpica Rosa Mota deu um grande contributo para a promoção da Lusofonia em Goa e para a divulgação dos segundos Jogos a realizar em Lisboa em 2009.


Este texto foi-me dado a conhecer pelo meu bom Amigo Nuno Cabrita, com quem tive o verdadeiro prazer de trabalhar na Comissão Euro, aquando da preparação do nosso País para a entrada na moeda única.


Maratona do coração


Na minha qualidade de «mais goês do que os goeses», posso imaginar o que terá sido a permanência da nossa Rosinha em Goa. Com a dor de alma de quem não pôde estar lá, é certo. Mas, não se pode ter tudo. Não me consolo com a asserção, mas é o que se pode arranjar…
Sou da opinião de que as relações entre Portugal e a Índia serão sempre muito mais amplas quando ambos os países utilizarem os meios e as vias de que dispõem. E a capital do subcontinente é Nova Deli, não é Panjim. No entanto, esta proximidade de alma, de cultura e de convivência multissecular entre os dois povos pode ser, é, forçosamente, uma componente que não se deve ignorar, sequer subestimar.
Ainda há escassos dias, a comunicação social se fez eco de um acordo entre a Efacec e um grupo industrial indiano muitíssimo importante. As consequências que daí advenham serão, por certo, muito significativas. As visitas recíprocas de responsáveis políticos aos dois países têm sido alavancas para incrementar uma colaboração que se deseja cada vez mais intensa. E o facto de muitos empresários de peso integrarem as respectivas comitivas é a parte mais substancial disso.
No entanto, seria estulto pensar que Goa não ficou nos corações de muitos e muitos Portugueses que por ela passaram, nela viveram, ali constituíram família, ali se radicaram ao longo de cinco séculos. Ficou. Ficou, sem lamechas, sem saudosismos espúrios, muito menos neocolonialismos impensáveis. E igualmente nos dos que hoje a conhecem como viajantes, turistas de máquina digital em punho, e que se maravilham quando ainda gente da terra se lhes dirige em… Português.

Nas estradas de Goa, uma multinacional cervejeira a implantar-se ali, usou o desporto na sua publicidade e plantou cartazes publicitários em que a figura primeira e destacada é o luso Cristiano Ronaldo. Tirei fotos para recordar o facto, já que não é necessário justificar nada. O nosso Ronaldo é ele em qualquer sítio do Mundo. Em Goa, também. Os ganapos adoram-no e as jovens também... Mas vê-lo ali, no meio das várzeas de arroz, tendo por pano de fundo a lindíssima floresta goesa, dá uma alegria inquantificável. A mim, pelo menos, deu.
Já compreendem que me tenha entusiasmado tanto com a Rosa Mota a representar Portugal por aquelas bandas. Foi mais uma maratona conquistada pela nossa campeã. E por Portugal.
A.F.

(*) Entrevistei-o para o Diário de Notícias, nos anos 80, era então Chief Minister.

domingo, fevereiro 10, 2008

GANDA LATA

Antigos & Amigos

Antunes Ferreira

Os amigos são como as melancias: só depois de se abrirem se sabe se são bons, ou não prestam. Pare tudo! Ninguém está aqui a fazer a defesa da dissecação deles. Nunca. E muito menos de um qualquer atentado ao pudor. Obviamente, ainda subsiste a autópsia, mas, com tal ocorrência, já não se desfazem quaisquer dúvidas que ainda subsistissem. Estão mortas, absoluta e definitivamente falecidas.

Há muitas formas de um sujeito avaliar a qualidade e, até, a quantidade, de um amigo. Peça-se-lhe um mísero milhão de euros e a resposta propicia, claramente, resultado que indicia o que lhe vai na mente (dele). Se um responde que vai ver o que se pode arranjar, anote-se, porque o fabiano apenas quis protelar a asserção vai lamber sabão. Ou, mesmo, abaixo de Braga, enfim, à merda.

Existem mais casos. Aquele que retorque - porquê a mim? Eu que sou um gajo com pouca sorte encartada? Olha, pá, o Euromilhões
só sai aos outros. Descodifique-se: o mânfio apenas quis protelar a asserção vai lamber sabão. Ou, mesmo, abaixo de Braga, enfim, à merda. Atente-se no outro que comenta – olha lá, tu até pareces o Monsiu de lapalice: o teu pedido é mesmo uma palermice. Dito por outras palavras: o camarada apenas quis protelar a asserção vai lamber sabão. Ou mesmo, abaixo de Braga, enfim, à merda.

Quanto mais um cidadão caminha para a velhice, mais descortina o quilate dos amigos. Alguns deixaram de o ser, que se lixem. Vários deixaram de fumar, o problema foi deles. Diversos recorreram ao forno crematório. Todos se afastaram, por vontade própria, por já estarem fora do prazo de validade, ou por mor do fatal é a única coisa que temos certa.

Porém, existem casos de amizade fiel, até ao levantamento das ossadas, antes era ao quinto ano, agora, por falta de espaço (vital? Que estupidez: mortal) já é ao terceiro. Um dia destes passa a ser como a pescada ou o vestido, que antes de o serem, já o eram. Com as reformas verdadeiramente luxuosas que existem (tirando alguns exemplos de quase mendicidade, como o do senhor Teixeira Pinto, por incapacidade física, é certo), é nessas alturas que a amizade vem ao de cima, tal como o azeite na água.

É, frequentemente, a entrada nos chamados lares da terceira idade que origina essa tentativa de descoberta da sinceridade fraternal. Antigos amigos que já nem sabem se o são. Se um fica fora e o outro ali se instala – na maioria das vezes é instalado – os encontros vão-se desvanecendo, obnubilando, desaparecendo. Se os dois entram, ou as quezílias são constantes, ou tudo corre sobre esferas. Tudo bué fixe. Pelos vistos caiu o de anteriormente usado. Os jovens são volúveis, já se sabe.

Francisco Macedo e Demóstenes da Purificação ficaram depositados no Lar do Santo Márcio Discípulo, quem havia de dizer, bem-aventurado de altar tem cada nome. Macedo, reformadíssimo da Função Pública, como auxiliar já nem sabia de quê, antes era contínuo, agora com as modernices estava tudo mudado, até parecia o tempo.

No Verão fazia calor, ia-se à praia, bebiam-se umas cervejolas, usavam-se óculos de sol. Inverno era Inverno. Com todos, como o bacalhau. Chuva à discrição, trovoadas q.b., frios que davam em neve nas terras altas, granizos à mistura, sobretudos e cachecóis. Nos interstícios, a Primavera e o Outono cumpriam com os seus deveres, tal qual o bom marido, como manda a Santa Madre Igreja. Flores e frutos, repartidos pelos meses para o efeito. Era monótono, mas seguro. De tiro e queda.

Demóstenes fora aviador, cuidado, sem aeronave, aviador de balcão, em loja de roupa para casa, ali à Rua dos Fanqueiros, à direita de quem vai para o Terreiro do Paço e, singularmente, à esquerda de quem vem para a Praça da Figueira. Lençóis das melhores proveniências, algodão do Egipto, para cama de solteiro, de casal e de tudo ao molho e fé em deus. Fronhas, cobertores, mantas e edredões, até mesmo panos para a louça e para o chão, incluindo esfregões, toalhas de mesa e de casa de banho e outros.

Por uma tarde de calor e sol radioso, está bem de ver, em Fevereiro, sentados no jardim do lar, em banco duplo, conversam. «Ó Macedo, como sabes, já cheguei aos oitenta e três. E, também como é do teu conhecimento, estou cheio de dores por tudo o que é sítio e de problemas cada vez mais lixados. Ora tu deves ter mais ou menos a mesma idade, andámos na escola primária juntos, como é que te sentes?»


«Demóstenes, não estou a gozar contigo. Nunca me ri de ti, nem mesmo quando a dona Engrácia que Deus tenha te apanhou na retrete a esgalhar uma solitária e te baixou os calções para te dar um par de nalgadas em frente de toda a malta. Tenho de te dizer a verdade, nua e crua. Sinto-me como um recém-nascido». Francisco Macedo escancara a boca, de espanto. «Como um recém-nascido???... Que merda é essa??? E dizes tu que não estás a mangar comigo. Explica-te e explica-me, homem! Não me deixes nesta indecisão, neste tubi or notubi, porra!»

E o Demóstenes, espreguiçando-se de mansinho, não fora soltar-se um cúbito, uma tíbia ou um perónio, quiçá mesmo um rádio, para não falar das falanges, falanginhas, falangetas & afins: «Sim. Como um recém-nascido. Sem cabelo, sem dentes e acho que acabei de me mijar nas calças….»

Esta invencionice é o aproveitamento de uma curta anedota que o Maia Figueiredo me mandou. É um dos meus maiores abastecedores de mails de todas as qualidades e feitios – todos, mesmo todos, incluindo os «muito especiais» que a Santa Igreja considera pecaminosos. Esta piada tem muita piada, como dizem os brasucas. O mérito inteirinho é dela, e dele, eu limitei-me a vestir-lhe uma farpela pelintra.

sexta-feira, fevereiro 08, 2008




A ROTA DO CALENDÁRIO

Um de Fevereiro

Maria Lúcia Garcia Marques
S
ou republicana, mas reconheço que resisto mal ao “charme discreto (nem sempre, mas enfim...) da monarquia”. Se bem que – convenhamos – ela já não seja o que era, é, pelo menos, um estado de afecto. Tem algo de securitário na perenidade dos seus titulares; é uma espécie de “líquido amniótico” que, na transitoriedade histórica, parece dar coesão à geografia sentimental da Nação. A transmissão dinástica garante tempo histórico “com assinatura” e, quando funciona bem, dá um certo ar de família, em que a “paternidade” do Rei serve de ressalva e garante.


E depois há o espectáculo! E aí, a monarquia é exclusiva e supera em glamour qualquer República. Quando se mostram, nas suas glórias e nas suas misérias, Reis, Rainhas, Príncipes e afins, são ilustrações vivas de um mundo em escaparate, escolhidos e escrutinados, pelo coração, por aqueles que, não partilhando da mesma estrela, de certo modo se revêm neles, ou melhor, se projectam neles como num conto de fadas, lugar de todos os brilhos e de todos os faustos. E, com a graciosa magnanimidade de parecerem não atender aos custos. Até que ...


Tem toda esta prosa a ver com as minhas ligações ao primeiro de Fevereiro de 1908. Honni soit...!
É que, além de ter na minha posse, luxuosamente guardada numa pastinha de calfe, uma carta autógrafa da Rainha D. Amélia, datada de 1 de Fevereiro de 1933, a agradecer a homenagem prestada ao Rei D. Carlos na passagem do 25º aniversário da sua morte, lembro, estreitamente ligadas com esta efeméride, duas histórias da minha infância e família.

Foi assim. Deslocando-me com frequência, no início da década de cinquenta, com meus Pais, a Elvas, era paragem obrigatória do nosso clã familiar Vila Viçosa, para visitar o Palácio Ducal. Pelo menos duas vezes por ano percorríamos a mansão senhorial que, à época, por falta de meios financeiros e até humanos, não possuía o actual apuro de instalações e recheio, fruto de felizes intervenções que de então para cá foi sofrendo e lhe restituíram o antigo brilho.
Nessa época, era eu menina, o Palácio era devotadamente cuidado por um reduzido número de funcionários e os visitantes não eram muito numerosos. Chegou a acontecer, quando lá íamos pelo Natal, sermos só nós a percorrer os aposentos então abertos ao público, acompanhados por um guarda/guia, que, num tom quase familiar, nos ia mostrando um pouco de tudo, ilustrando a visita com algumas historietas ou curiosas anedotas relacionadas com os espaços e os seus régios habitantes.

Havia um ponto alto na visita: era quando, no quarto de cama da Rainha D. Amélia, evocando o regicídio, o guarda abria com solenidade um gavetão da cómoda e retirava a camisa que o “Senhor D. Carlos” vestia na tarde do atentado. Mostrava um orifício no cós do colarinho, atrás, na nuca. E apontava: “Estão a ver aqui o buraco da bala? E o sangue aqui todo à volta? Não voltou a ser lavada...” E, de uma vez, até acrescentou: “E afinal não é azul...” E riu-se mansamente. Eu era muito pequena e não percebi aquela do azul.

O que eu via eram umas manchas empastadas cor de chocolate à volta de um buraco que até não era assim tão grande! A mim parecia-me que deveria ser muito maior. Coisa que se visse... Para matar uma pessoa assim tão importante como era um Rei...! Mas que me impressionava, impressionava. E um dia, muito furtivamente, estendi o dedo, e toquei de fugida e ao de leve na dobra da camisa. Logo o guarda admoestou: “Isto não é para mexer, menina! É só para ver!” E guardou-a ciosamente, de novo, na gaveta da cómoda de onde a tirara.

Não muito tempo depois deixaram de a mostrar e creio que não mais voltaram a fazê-lo. No entanto, ainda hoje me parece sentir nos dedos aquele choque de curiosidade e susto de uma tão bárbara visão de morte. Afortunadamente no mesmo quarto, instalado num desvão à cabeceira da cama da Rainha, brilhava (literalmente, porque era de latão amarelo com colchoaria e enfeites em seda e veludo azul claro) o berço dos principezinhos ... E a vida falava mais alto!

***************

A segunda história tem a ver com meu Avô. Meu Avô era republicano. Confesso, reconhecido e louvado a seu tempo. Mas era um homem de coração grande, aberto por natureza e profissão – era médico – aos outros, a todos os outros. Era compassivo e compreensivo. Só convivia mal com a hipocrisia e a estupidez. No resto, militava ardentemente pela tolerância e pela concórdia.
Foi nesse espírito que falou aos manifestantes que o foram vitoriar a sua casa aquando da implantação da República, pedindo que não se cometessem excessos nem retaliações. Diz-se que teria sido por isso que, na sua cidade, onde avultavam das maiores carências sociais e económicas do País e uma classe operária das mais numerosas e reivindicativas, não tenha havido distúrbios, perseguições e outros atropelos de monta tal como aconteceu pelo País fora.

Mas meu Avô tinha os seus gostos e os seus padrões estéticos. E tinha um hábito sagrado: quando havia festa em sua casa ou razão de especial alegria ou comemoração, mandava hastear a bandeira nacional no varandim da sua residência. Só que, com a República, a bandeira mudou. E meu Avô passou a ter um problema: apesar de todo o feliz simbolismo que lhe reconhecia, não conseguia aceitar a solução estética da bandeira verde rubra. O seu coração ficara com a bandeira azul e branca. Era mais “distinta”, dizia ele.

Foi republicano até à morte, festejou sempre, portas a dentro, o 5 de Outubro e outros aniversários. Só a bandeira deixou de aparecer na fachada de sua casa.

terça-feira, fevereiro 05, 2008



Terra mística dos faraós

Braz Ferreira
Mais uma vez por motivos profissionais me desloquei ao Egipto, a terra dos faraós. A minha viagem de negócios me levava do Cairo até BeniSuef uma cidade a mais ou menos 150 km a sul da capital. Sendo a segunda vez que me deslocava pelas terras das pirâmides, já sabia ou por outra sabia mais ou menos o que me iria acontecer durante a minha viagem rodoviária. Por tal razão não comi muito ao pequeno-almoço com medo de vomitar durante o percurso. E às 7:30 em ponto lá estava o meu motorista preparado para esta aventura do volante.

Logo no inicio após me ter instalado no veículo, o proposto a manejar o volante me disse num inglês quase, quase impecável. «Inchallah (isto não é inglês) we arrive safe» (isto é inglês). E se Allah não quiser? quase perguntei ao motorista. Porém, baseado na minha experiência da última viajem, de imediato fiquei de acordo com ele e pensei com os meus botões, que por acaso estavam brancos talvez de medo: Que Deus nos ajude, a nós e sobretudo aos outros motoristas que encontraremos na estrada. E lá nos lançámos pela estrada em direcção a Al Minya.

Ao sair da cidade, passando em frente do Demersdash Hospital, consegui verificar a eficiência dos polícias de trânsito do país. São verdadeiramente, como o nome do hospital, uns merdas. Com uma calma faraónica (o que não é de admirar) um polícia de trânsito estava encostado ao poste de um semáforo. Encostado é um pouco de exagero, pois estava quase abraçado ao tal poste, como a Marilyn Monroe ao John Kenedy, que de raiva passou ao vermelho.

E como ele, o poste, quase todos os motorista passavam no vermelho sem se importarem nada, ou quase nada, com o agente da autoridade rodoviária. Alguns deles abrandavam para depois virar à direita numa rua de sentido proibido. O portador do quepi, simplesmente pestanejava, olhando os carros passarem a velocidades próximas da fórmula 1.

Os veículos cruzam, à (boa) vontade dos proprietários, a rodovia - em sentido normal e contrário - utilizando a buzina como autorizante do desrespeito às leis de trânsito. Aqui até acredito que a buzina é mais importante que o motor do carro. Carros na mão, na contra mão e até no contra pé obrigam os outros a manobras que além de perigosas, estão no limite do espectacular. Por vezes, tais as acções são tão incríveis, que podemos pensar estar em episódios dos apanhados.
Pelo contrário, os pisca-piscas são inoperantes, há muito devem ter decidido aposentar-se. Ainda se devem lembrar do tempo dos faraós onde deveriam ter tido necessidade de horas extraordinárias para virar nas curvas do deserto e alcançar as caravanas de camelos vindas do Oriente.

Mais adiante, na nossa frente, um táxi preto e branco, um Fiat dos anos 90, executava uma dança do ventre de deixar com inveja qualquer eximia dançarina árabe. O passeio serviu-lhe de apoio, umas três ou quatro vezes, obrigando alguns transeuntes a abandonar o local de forma repentina. Os táxis pretos e brancos, já com idade de frequentarem um lar da terceira idade, com os porta malas metálicos soldados no tecto, tal como a coroa do Ramsés II, ainda conseguem transitar sem muletas.


O desrespeito pelas leis de trânsito é tanto que até hoje não consegui entender porque gastam dinheiro a instalar sinais. Onde se diz que é proibido ultrapassar, se ultrapassa em terceira mão; onde é proibido parar, existem praças de táxis e parkings. Estes com pagamento. E onde é proibido exceder a velocidade de 60 km, é raro e o veículo que transita a menos de 110… Na verdade, só as carroças puxadas por burros famélicos conseguem burricar e respeitar a velocidade regulamentada. Os carros passam tão perto uns dos outros que, se deixássemos cair uma nota de dez libras egípcias, ela com certeza não conseguiria cair no chão.

Deixamos o Cairo no meio deste pandemónio rodoviário (um amigo meu inglês disse-me que na realidade isto era uma Organised complete mess (uma verdadeira cagada organizada). Com carradas de razão. Já na estrada nacional, na nossa frente, seguia uma camioneta carregadíssima de melancias. Devido ao excesso de velocidade e aos solavancos, estas deviam estar bastante enjoadas e algumas delas decidiram suicidar-se atirando-se para o asfalto. E este, que normalmente era adepto da Académica, tornou-se, em escassos segundos, torcedor da equipa nacional. Talvez outras companheiras das suicidas tivessem tido a mesma intenção, mas uma cobertura de lona as impedia de o fazer.


Logo em seguida duas vacas viajavam numa camioneta, onde os solavancos eram tantos que de certeza ao chegarem ao destino, produziriam manteiga pasteurizada. E este dois ruminantes passavam largamente o corpo da balaustrada do veículo e mostravam de maneira ameaçadora a vontade de evacuar a erva comida antes do embarque. Pois não aconteceu que na altura que ultrapassávamos a camioneta uma delas resolveu liberar os intestinos. E eu - que tinha tido vontade de abrir o vidro segundos antes. Allah estava comigo.

O carro ficou como se imagina. Parámos para uma lavagem completa e lá estávamos nós de novo na estrada. Durante a lavagem pude observar um camião de uma marca alemã pintada com carinho e amor pelo seu proprietário num dos taipais laterais: MER CEE DES BENZE. Pois é, é preciso benzer-se mesmo, para poder conduzir nas estradas egípcias. E além diss, estava também mencionado que esta marca era fabricada na falecida Comunidade Económica Europeia.

Mais adiante, a polícia tinha dividido a estrada em duas para poder controlar melhor o trânsito rodoviário. Para tal utilizara duas barricas de óleo, dois bidons de plástico para transportar azeitonas, algumas latas de tinta, umas caixas de madeira para transportar tomates e até um carrinho de mão.

E numa curva na auto-estrada o nosso motorista foi obrigado a travar de maneira radical. Um autocarro tinha parado numa curva e no meio da rodovia para permitir a um dos clientes que esvaziasse a bexiga. E na volta de Beni Suef para o Cairo me destinaram um outro veículo, um Daewoo. Mas ,visto o estado do carro, pois assim, o primeiro era uma verdadeira espada, decidi que nele não vinha, não. E não vim mesmo.
GOA, AMOR MEU

Uma noção, nunca uma nação

Antunes Ferreira
Encontro Mário Cabral e Sá na Fundação Orienteali nas Fontainhas, bairro tipicamente em estilo colonial português que hoje aparenta querer ultrapassar a decadência em que estava. Casas antigas renovadas, outras a serem reformadas, com mais comodidades, ainda que mantendo a traça antiga.
Como acontece com a casa onde viveu minha mulher, na Rua do Natal, que o novo proprietário, da família Botelho me disse que estava a assim fazer.

A vivenda onde Paulo Varela Gomes dirige a delegação da Fundação presidida por Carlos Monjardino é airosa e bonita. O seu interior, cuidado, é funcional. Diz-me o responsável que se aproximam obras para ainda a melhorar, a serem feitas antes da monção, de outra forma seria impensável dadas as condições meteorológicas desse período do ano.
Se calhar até já começaram, pois a nossa conversa decorre em finais de Novembro. De 2007, claro.

É ali que, muito gostosamente, conheço pessoalmente o jornalista goês, que escreve para diversos órgãos de comunicação indianos, e também é correspondente da Lusa. Do que ele se lamenta, por receber pouco, esparsas vezes e, mesmo assim, com atrasos. Mas não é esse o tema da nossa conversa, ainda que registe o desabafo. Por diversas vezes - nas andanças que tenho feito pelos lugares a que os Portugueses chegaram e, mesmo, se fixaram – me tenho confrontado com uma constante que não resisto a registar neste blogue.

Noutra altura esmiuçarei a questão. Não deixo, porém, de a enunciar agora. Será que nós estamos a deitar pela borda fora (ou, o que é pior, já quase deitámos), esse tesouro da cultura miscigenada e da convivência com as gentes locais? Por agora, devo sublinhar que Mário Cabral e Sá é um profundo conhecedor de Goa e da sua História. Investigador de gabarito, senhor de uma cultura enorme (apenas de conversar com ele disso me apercebo), escreve em Inglês, Português e Konkanim. Quanto às duas primeiras, fá-lo excelentemente. No que toca à terceira, passo. Santa ignorância a minha na língua de Goa.

Assuntos os mais diversos vieram à baila. Esta salutar prática da oralidade dialogante é típica da terra. Já o escrevi muitas vezes, mas não me canso de o repetir. Varela Gomes é, igualmente, um interlocutor muito interessante, os anos que leva por ali, em mais de uma permanência, conferiram-lhe a habilidade de saber coloquiar. O que faz na maravilha.

Eu, é o que se nota logo à primeira vez. Perco-me pela cavaqueira, bastas vezes me excedo, depois penso, tarde piaste, que quase monopolizo a palra. Esta confissão e a correspondente contrição pouco adiantam. Já cometi o pecado, resta-me esperar pela hipotética e quimérica absolvição. Mas, na manhã ensolarada de Panjim, creio não ter ultrapassado os limites.

Veio à baila a Índia e o seu percurso, naturalmente decorrendo o tema do que anterior fora igualmente leitmotiv de Goa. Ultrapassada estava a lição que Mário Cabral e Sá me proporcionara sobre Gomantak, o nome por que foi chamada no período védico tardio. O jornalista acrescenta que tal época decorreu entre os anos 100 e 500 a. C. e em sânscrito significava «terra semelhante ao paraíso, fértil e com boas águas». Razão tinham - acrescento eu em voz off - em tempo de antes de Cristo. E pasmo.

Já no concernente à Índia, chega-se, fatalmente, à luta pela independência, a Gandhi, a Nehru, a Jinah, a Tagore. Explica Mário. A Índia, separada do Paquistão, contrariando o sonho do Mahatma, foi, alcançada a libertação, de imediato considerada União Indiana. Era difícil que assim não fosse; ela foi sempre uma noção, jamais uma nação. Espanto.

Quando me retiro, Varela Gomes e Cabral e Sá têm assuntos para tratar, já bastou de paleio, penso para mim mesmo, não se me afasta do bestunto essa afirmação. E vou andando em direcção ao Palácio do Hidalcão e cada vez convertido ao que o jornalista goês afirmou. Nestas coisas, apenas tenho de recordar o que o Povo diz: aprender até morrer. Que, juntamente com o pagar, quanto mais longe, melhor.

Fotos, de cima para baixo:
Antiga casa de minha mulher, em reconstrução
Fontaínhas - Fundação Oriente
Fontaínhas - Casa já recuperada
Fontaínhas - Pormenor
Independência da Índia - Gandhi e a roda de fiar

segunda-feira, fevereiro 04, 2008




Subsidio pela hora da morte

Antunes Ferreira

Somos um País de marinheiros – subsidiados. Dizem que desde o Dom Fuas Roupinho.
Será? Pelo menos, Henrique o Navegador sabia da poda. Afirmam os entendidos nestas coisas que a subsidio-dependência é um factor que enforma o quotidiano dos Portugueses que, de tão habituados, já consideram o acto de subsidiar como uma obrigação. O subsídio tornou-se, assim, obrigatório e faz parte de nós. E, alem de enriquecer o bolso, também enriquece o ego. Um destes dias, quando entrar em funcionamento o tão falado e prometido documento único, no respectivo chip deverá existir uma alínea para especificar o subsídio de cada cidadão.

Tornou-se um émulo do padre-nosso, se não mesmo, vencedor na comparação ou na compita. Ou não é já santificado? Santificado, o subsidio. Ou não se deseja que nos seja dado o nosso de cada dia? Nosso, o subsídio. Ou não estará já santificado? Santificado, o subsidio. Sem passar, sequer, pela beatice, isto é um intermédio de andamento, para o caso verdadeiramente despiciendo. Ou não se aspira a que venha o nós o reino dele? Dele, do subsidio. E não se deseja que seja feita a sua vontade? Vontade, dele, subsídio. Obviamente.

Alem do mais, os candidatos a subsidiados não pedem, exigem. Trata-se de um direito adquirido, expressão que me causa sempre uns certos engulhos, porque não sei bem como se processa tal aquisição. Por compra? Por doação? Por herança? Por outorga? Mas, é também um direito humano, coisa inultrapassável, ainda que um tanto repetitiva de tão citada. Nada de mão estendida, pois; nada de requerimento em papel selado, que, aliás, já nem há; nada de abaixo-assinado, de tantos, já nem se lhes liga, não se os lê, quanto mais assiná-los.

Há-os de todas as qualidades, para todas as cores, e em quantidades – é o que se sabe. Para arrancar vinhas; para plantar novas vinhas, o néctar está a dar, nunca houve tantos rótulos, que nascem como cogumelos, naturalmente não espontâneos. Para construir uma fábrica; para não a encerrar, a deslocalização é tramada, há que manter a unidade industrial dita produtiva. Para um pavilhão desportivo; para patrocinar os desportos que nele se praticam, até no futebol eles acontecem, veja-se o que se passa na Madeira do Senhor Jardim.

Na passada semana, o Jornal do Fundão, símbolo e bandeira desde há muitos anos da imprensa regional (António Paulouro o deu à luz em 1946), publicou uma curiosa reportagem sobre o negócio das agências funerárias. Que tem de ser bom, tal o número que existe entre nós. É, na realidade, mais do que bom: é óptimo. De acordo com o texto, movimenta qualquer coisa como 400 milhões de euros por ano.



Diz o Povo, na sua infinita sabedoria, que a morte é a única coisa certa que um homem tem na vida. Não era preciso que o fizesse, porque é mesmo assim. Parece que essa inevitabilidade é, por muitíssima gente e por muitíssimas vezes, conservada em verdadeira obnubilação. Não vale a pena pensar nela, há também imensos cidadãos que o referem – mas tal como o São Tomás, fazei o que eles dizem, não o que ele faz.

Já pensaram alguma vez, uma que fosse, na imensidão de pessoal que sateliteliza o óbito? Não são apenas os gatos-pingados e, sobretudo os respectivos patrões. Despiciendo seria enumerar aqui a quase multidão, desde os agentes hospitalares que dão conhecimento imediato às funerárias, sempre em cima do falecimento, até aos periódicos que, nas páginas de publicidade, plantam anúncios encimados pela clássica cruz negra, algumas vezes valorizados pela fotografia do de cujus. Para já não referir as floristas – que ganham coroas com as coroas – finerárias. Disse bem, finerárias, ou não é a morte o fim?

Essa verdadeira instituição que são os velórios é exemplo acabado dos que acabaram, mas, principalmente, dos que ficam. Até aí se podem quantificar os gastos mais diversos. Antigamente, e volta não volta era a cera das velas; hoje é a voltagem fornecida pela EDP. Mas, para da energia do Senhor Mexia, há tudo o resto, uma panóplia complexa e cara.

Ora, perguntarão – mas que têm a ver os subsídios com os passamentos? O cu nada tem a ver com as calças, também refere o Povo supracitado. No caso vertente, que me desculpe a arraia-miúda, não é verdade. Não se refere o subsídio por morte, a quem resta sempre calham bem, são diminutos, mas a cavalo dado…, Será bom que o Senhor Vieira da Silva não se aperceba disto.

Aqui, trata-se de uma outra pergunta e, quiçá mesmo, de uma sugestão (leia-se como se quiser). Que não se me afigura de todo impertinente. Seria um subsídio para morrer. Um sujeito receberia, atempadamente, um subsídio para se finar. Si non era vero, era bene trovato. Quem o disse não foi o Senhor Berlusconi, vem mais de trás.

PUBLICADO TAMBÉM NO BLOGUE O SORUMBÁTICO

domingo, fevereiro 03, 2008




A ROTA DO CALENDÁRIO

Luar de Janeiro


Maria Lúcia Garcia Marques
Em Janeiro, a lua levanta-se cedo. Quando a noite se fecha já ela lá está, de sentinela. Não deleitosa e deliquescente, em cenários de amor, subindo enorme e lenta, sorvendo as estrelas e a Via Láctea – isso é lá mais para Agosto – mas fria e altaneira, régio espelho do Sol no seu manto negro orvalhado de astros. Uma Senhora!

Mas com fases. Ou faces ... Cada noite sua cara: uma vez mais um bocadinho, outras menos um bocadinho, outras ainda coisa nenhuma e, de quando em vez, eclipsa-se! Artifícios de mulher bonita! E poderosa. Regula o mundo, comanda o tempo, pauta até as vidas das mulheres regendo-lhes os ciclos férteis. Vinte e oito dias – de lua a lua, de cheia a vaza com os quartos pelo meio. Nasce, cresce, diminui, desaparece... Renasce e recomeça, num eterno retorno, marcando numa periodicidade sem fim os ciclos da vida. Símbolo dos ritmos biológicos controla todos os planos cósmicos regidos pela lei do devir, é a rainha dos três ceptros: o da fertilidade, o do tempo que passa, o do saber teórico, conceptual, racional, espécie de conhecimento por reflexo tal como ela própria é reflexo do Sol.

Foi aliás esta dualidade universal que Sophia de Mello Breyner condensou no “Poema de Amor de António e Cleópatra”:

Pelas tuas mãos medi o mundo
E na balança pura dos teus ombros
Pesei o ouro do Sol e a palidez da Lua


Ela, Sophia, a mais solar das vozes, toda poesia, toda mulher, celebra ainda em verso as felizes núpcias da sua condição:

De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua
(Poesia 1, 1944)

E há algo de feminil e trágico, entre véu e sudário, que se desprende do halo da esfera lunar, algo que nos lembra os versos dos poetas excessivos:

Vai alta a lua na mansão da Morte
Já meia noite com vagar soou
(...), Soares de Passos (Noivado do Sepulcro, 1856)
ou dos poetas doloridos:

A lua sobe no horizonte
E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima em mim
(...), Fernando Pessoa/Álvaro de Campos (Ode Marítima, 1915).


Mas tal como há quem diga que o que faz bonitos os olhos é o olhar, também o que faz da lua o seu encanto é o... luar, em que a magia lhe vem daquela pureza envolvente, daquela superior distância que tudo perece desculpar, acendendo uma liberdade transgressora feita de todas as ingenuidades do mundo Foi assim que na singeleza da sua pena de poeta popular, Augusto Gil tão bem o retratou no seu poema “O Passeio de Santo António” que incluiu na obra a que chamou precisamente “Luar de Janeiro”:

(...) O luar, um luar claríssimo nasceu.
Num raio dessa linda claridade,
O Menino Jesus baixou do céu,
Pôs-se a brincar com o capuz do frade.

Perto, uma bica de água murmurante
Juntava o seu murmúrio ao dos pinhais ...
Os rouxinóis ouviam-se distantes.
O luar, mais alto, iluminava mais.

De braço dado, para a fonte, vinha
Um par de noivos todo satisfeito
(...)



Sem suspeitarem de que alguém os visse
Trocaram beijos ao luar tranquilo.
O Menino, porém, ouviu e disse:
- Oh, Frei António, o que foi aquilo?

O santo, erguendo a manga de burel
Para tapar o noivo e a namorada,
Mentiu numa voz doce como o mel:
- Não sei que fosse. Eu cá não ouvi nada
(...)

Gracioso e comovente o quadro, a reconciliar-nos com o gosto e o prazer das coisas simples e a entrar de concerto com o velho adágio:

Lua, a de Janeiro
Amor, o primeiro!