domingo, fevereiro 10, 2008

GANDA LATA

Antigos & Amigos

Antunes Ferreira

Os amigos são como as melancias: só depois de se abrirem se sabe se são bons, ou não prestam. Pare tudo! Ninguém está aqui a fazer a defesa da dissecação deles. Nunca. E muito menos de um qualquer atentado ao pudor. Obviamente, ainda subsiste a autópsia, mas, com tal ocorrência, já não se desfazem quaisquer dúvidas que ainda subsistissem. Estão mortas, absoluta e definitivamente falecidas.

Há muitas formas de um sujeito avaliar a qualidade e, até, a quantidade, de um amigo. Peça-se-lhe um mísero milhão de euros e a resposta propicia, claramente, resultado que indicia o que lhe vai na mente (dele). Se um responde que vai ver o que se pode arranjar, anote-se, porque o fabiano apenas quis protelar a asserção vai lamber sabão. Ou, mesmo, abaixo de Braga, enfim, à merda.

Existem mais casos. Aquele que retorque - porquê a mim? Eu que sou um gajo com pouca sorte encartada? Olha, pá, o Euromilhões
só sai aos outros. Descodifique-se: o mânfio apenas quis protelar a asserção vai lamber sabão. Ou, mesmo, abaixo de Braga, enfim, à merda. Atente-se no outro que comenta – olha lá, tu até pareces o Monsiu de lapalice: o teu pedido é mesmo uma palermice. Dito por outras palavras: o camarada apenas quis protelar a asserção vai lamber sabão. Ou mesmo, abaixo de Braga, enfim, à merda.

Quanto mais um cidadão caminha para a velhice, mais descortina o quilate dos amigos. Alguns deixaram de o ser, que se lixem. Vários deixaram de fumar, o problema foi deles. Diversos recorreram ao forno crematório. Todos se afastaram, por vontade própria, por já estarem fora do prazo de validade, ou por mor do fatal é a única coisa que temos certa.

Porém, existem casos de amizade fiel, até ao levantamento das ossadas, antes era ao quinto ano, agora, por falta de espaço (vital? Que estupidez: mortal) já é ao terceiro. Um dia destes passa a ser como a pescada ou o vestido, que antes de o serem, já o eram. Com as reformas verdadeiramente luxuosas que existem (tirando alguns exemplos de quase mendicidade, como o do senhor Teixeira Pinto, por incapacidade física, é certo), é nessas alturas que a amizade vem ao de cima, tal como o azeite na água.

É, frequentemente, a entrada nos chamados lares da terceira idade que origina essa tentativa de descoberta da sinceridade fraternal. Antigos amigos que já nem sabem se o são. Se um fica fora e o outro ali se instala – na maioria das vezes é instalado – os encontros vão-se desvanecendo, obnubilando, desaparecendo. Se os dois entram, ou as quezílias são constantes, ou tudo corre sobre esferas. Tudo bué fixe. Pelos vistos caiu o de anteriormente usado. Os jovens são volúveis, já se sabe.

Francisco Macedo e Demóstenes da Purificação ficaram depositados no Lar do Santo Márcio Discípulo, quem havia de dizer, bem-aventurado de altar tem cada nome. Macedo, reformadíssimo da Função Pública, como auxiliar já nem sabia de quê, antes era contínuo, agora com as modernices estava tudo mudado, até parecia o tempo.

No Verão fazia calor, ia-se à praia, bebiam-se umas cervejolas, usavam-se óculos de sol. Inverno era Inverno. Com todos, como o bacalhau. Chuva à discrição, trovoadas q.b., frios que davam em neve nas terras altas, granizos à mistura, sobretudos e cachecóis. Nos interstícios, a Primavera e o Outono cumpriam com os seus deveres, tal qual o bom marido, como manda a Santa Madre Igreja. Flores e frutos, repartidos pelos meses para o efeito. Era monótono, mas seguro. De tiro e queda.

Demóstenes fora aviador, cuidado, sem aeronave, aviador de balcão, em loja de roupa para casa, ali à Rua dos Fanqueiros, à direita de quem vai para o Terreiro do Paço e, singularmente, à esquerda de quem vem para a Praça da Figueira. Lençóis das melhores proveniências, algodão do Egipto, para cama de solteiro, de casal e de tudo ao molho e fé em deus. Fronhas, cobertores, mantas e edredões, até mesmo panos para a louça e para o chão, incluindo esfregões, toalhas de mesa e de casa de banho e outros.

Por uma tarde de calor e sol radioso, está bem de ver, em Fevereiro, sentados no jardim do lar, em banco duplo, conversam. «Ó Macedo, como sabes, já cheguei aos oitenta e três. E, também como é do teu conhecimento, estou cheio de dores por tudo o que é sítio e de problemas cada vez mais lixados. Ora tu deves ter mais ou menos a mesma idade, andámos na escola primária juntos, como é que te sentes?»


«Demóstenes, não estou a gozar contigo. Nunca me ri de ti, nem mesmo quando a dona Engrácia que Deus tenha te apanhou na retrete a esgalhar uma solitária e te baixou os calções para te dar um par de nalgadas em frente de toda a malta. Tenho de te dizer a verdade, nua e crua. Sinto-me como um recém-nascido». Francisco Macedo escancara a boca, de espanto. «Como um recém-nascido???... Que merda é essa??? E dizes tu que não estás a mangar comigo. Explica-te e explica-me, homem! Não me deixes nesta indecisão, neste tubi or notubi, porra!»

E o Demóstenes, espreguiçando-se de mansinho, não fora soltar-se um cúbito, uma tíbia ou um perónio, quiçá mesmo um rádio, para não falar das falanges, falanginhas, falangetas & afins: «Sim. Como um recém-nascido. Sem cabelo, sem dentes e acho que acabei de me mijar nas calças….»

Esta invencionice é o aproveitamento de uma curta anedota que o Maia Figueiredo me mandou. É um dos meus maiores abastecedores de mails de todas as qualidades e feitios – todos, mesmo todos, incluindo os «muito especiais» que a Santa Igreja considera pecaminosos. Esta piada tem muita piada, como dizem os brasucas. O mérito inteirinho é dela, e dele, eu limitei-me a vestir-lhe uma farpela pelintra.

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