terça-feira, maio 29, 2007




HISTÓRIAS DA PJ


What happned to Mr. Hood?

(2ª Parte)

José Augusto Garcia Marques
“Eu é que sou o Hernâni”. O tom era tranquilo, a voz suave, o rosto não denunciava inquietação. Ficámos decepcionados com o perfil do sujeito. Ao contrário do que chegámos a admitir, não se vislumbravam nele sinais de um carácter violento ou agressivo. Era um jovem claramente efeminado, de estatura mediana e compleição frágil.

Trocámos impressões com a dona da casa, que mandou o empregado esperar no seu quarto. A Senhora disse-nos que fora o próprio Hernâni que se lhe dirigira, nessa manhã, dizendo que, “se calhar, o “Ernani” de que os jornais falavam era ele”. Mais lhe relatara que conhecia o Senhor Roy Hood, com quem se encontrava há já algum tempo. Em termos de personalidade, disse-nos tratar-se de um ser inofensivo, paciente e com bons modos, de um criado disciplinado e com vontade de aprender, embora algo limitado intelectualmente. Na sua opinião era um “pobre diabo” impotente, destinado a ser usado e abusado por marginais sem escrúpulos.

No entanto, reconhecia nele, nos últimos dias, uma ansiedade e uma angústia que não eram habituais. Apesar de saber que se chamava Hernâni, a dona da casa não o associara ao “Ernani” a que a comunicação social se referia, uma vez que nunca lhe passara pela cabeça que pudesse ter um envolvimento com um velho pederasta de “sociedade”, como era o caso do Roy Hood, o qual, na sua opinião, deveria andar metido com “companhias de outro quilate”.

Fomos falar em seguida com o Hernâni, o que fizemos no seu próprio quarto. A mesa de cabeceira tinha uma imagem vulgar de Nossa Senhora de Fátima e, na gaveta, havia recortes dos jornais que noticiavam o aparecimento do corpo na praia de Carcavelos. Logo nos deu a sua versão dos factos. Tinha, de facto, um encontro marcado com o Roy Hood, pelas 20 horas, perto de um cartaz publicitário, colocado em frente das arcadas do Estoril. Tratava-se do local de encontro habitualmente escolhido por ambos. Todavia, tendo esperado cerca de uma hora sem que o pintor aparecesse, e porque estivesse muito frio, o Hernâni ter-se-ia cansado e decidido voltar para casa. Pareceu-nos conveniente, no regresso a Lisboa, passar pelos locais por ele indicados.

Das arcadas ao Tamariz

Dirigimo-nos às arcadas, tendo estado junto do referido cartaz. O Hernâni deu-nos conta do seu ressentimento relativamente a Mr. Hood pelo facto de este não o deixar ir ter directamente a casa dele. Segundo ele, era um sinal de falta de confiança, revelador de que o estrangeiro não gostava de ser visto com ele. Pedimos-lhe depois que nos guiasse pelo percurso que costumava fazer com o Roy Hood desde aquele ponto de encontro até ao local de destino, a casa do pintor australiano. A tarde ia a meio, mas não havia tempo a perder, uma vez que, no Inverno, os dias são pequenos.

O encontro dos dois costumava ocorrer cerca das oito horas da noite. Atravessavam então a marginal, entravam na praia do Tamariz e dirigiam-se para a muralha que percorriam, lado a lado, junto à respectiva berma, até ao local adequado para cortarem em direcção à Rua onde estava situado o Palácio em cuja dependência Mr. Hood vivia. Segundo explicou, a muralha, a essa hora, era frequentada por diversos homossexuais, sendo frequente encontrarem caras conhecidas no “engate”. Com o Hernâni fizemos o percurso até ao portão exterior do edifício onde vivia o pintor, tendo seguido depois para a sede, na Gomes Freire.

O Hernâni era uma personalidade fraca, tendo uma natural tendência para ser agradável para aqueles com quem conversava, incluindo para quem o interrogava. Havia, assim, que ter o cuidado de evitar obter versões dos factos que não correspondessem à verdade, sendo importante tratá-lo sem agressividade ou sinal de violência. Para a Polícia, deve ser tão importante chegar aos responsáveis pela prática do crime, como concluir que um determinado suspeito está, na realidade, inocente. Mas, como diz o povo, quem vê caras, não vê corações ...

Interrogado na Brigada, foi mantendo a sua versão originária. No entanto, havia, no seu discurso, algumas contradições manifestas e ressumava das suas palavras um claro azedume para com o pintor australiano, que não era muito conforme com a sua maneira de ser suave e pacífica. Naquele tempo – já lá vão quase quarenta anos - a prisão sem culpa formada não obedecia aos requisitos – processuais e de prazo – a que obedece hoje a prisão preventiva.

Assim, a título de exemplo, não era obrigatoriamente ordenada por um juiz, podendo sê-lo pelos responsáveis hierárquicos da própria PJ – que, por acaso, eram, na generalidade, juízes de carreira, mas que, obviamente, não exerciam a magistratura judicial durante o tempo da comissão de serviço. Em face das suspeitas existentes, foi, assim, determinado que o Hernâni recolhesse aos calabouços da PJ.

O "culpado" confessa

No dia seguinte, de manhã, pediu para falar comigo. E foi a mim que confessou ter sido o “culpado” pela morte do Roy Hood. A sua versão foi, no essencial, a seguinte. Na verdade, estivera cerca de uma hora à espera de que o pintor australiano chegasse. E, quando já se propunha ir para casa, viu-o aparecer. Estava cheio de frio, impaciente, embora muito vaidoso com umas roupas novas que comprara com algum dinheiro que o Roy Hood lhe dera.

Era um canadiana azul escura, com capuz, boa para o frio, e uma camisola grossa, de lã escura com uns motivos claros, que também trazia vestida debaixo da canadiana. Esperara com ansiedade o momento de mostrar ao “velho” a boa aplicação que tinha dado ao dinheiro recebido, aguardando uma palavra de elogio pelo bom gosto revelado na escolha das roupas. A longa espera tinha-lhe tirado, porém, a alegria da expectativa, substituindo-a por um má vontade crescente contra o companheiro. O Roy Hood vinha também de má catadura.

Depois de algumas palavras frias e amargas, dirigiram-se para a muralha, como era costume, e uma vez que o pintor não fazia qualquer referência à roupa nova que ele trazia vestida, o jovem chamou-lhe a atenção para o facto. Ficou desiludido e magoado com a resposta: “Vocês gastam o dinheiro todo em trapos”.

A conversa azedou. Queixou-se do frio que tinha passado durante a longa espera, de mais a mais exposto ao olhar trocista de outros conhecidos que ali o viam especado, esperando por uma companhia que não havia meio de chegar, e lamentou o facto de o pintor não lhe dar a chave de casa e de não o deixar ir lá ter directamente. A isso, o Roy Hood teria respondido: “Eu não dou a chave da minha casa a quem anda ao “badejo”!

A gota de água

Teria sido essa a gota de água que fez transbordar o copo. O Hernâni já tinha referido que o Roy Hood, “certamente por uma questão de respeito”, lhe dava sempre a esquerda, pelo que era o estrangeiro que seguia na borda da muralha. Irritado com as observações do outro, o português, sem se aperceber da proximidade da extremidade da muralha, deu-lhe um empurrão com o ombro, fazendo-o desequilibrar.

Na sua versão, teria dado ainda um passo em frente, mas, alertado por uma exclamação surda, olhou para trás, tendo ainda visto Mr. Hood a fazer uma tentativa desesperada de equilíbrio na berma da muralha. Não se conseguindo equilibrar, caiu e terá batido com a cabeça nas pedras que se espalham à beira-mar. A maré estava a encher e o Hernâni, cheio de medo, desatou a correr no sentido de onde vinham, tendo parado só depois de atravessar novamente a marginal. Recuperado o fôlego, voltou a correr até à casa onde vivia.

Perguntei-lhe se alguém o tinha visto nessa correria e, depois de pensar, indicou um nome. Tratava-se de um “arrebenta” que “engatava” turistas, de preferência americanos, nas arcadas do Estoril. Que ainda lhe dirigiu uma pergunta, tendo o Hernâni dito qualquer coisa a despachar.
Concluída a confissão oral, no meu gabinete, passou depois à Brigada onde desenvolveu a seu relato dos factos, que foram reduzida a escrito.

Imagine-se a minha surpresa quando, no dia seguinte, encontrando-nos no gabinete do Chefe de Brigada, o Hernâni me dirigiu a seguinte pergunta: “O que é que o Senhor Dr. dizia se eu lhe dissesse que não matei o Roy Hood?”

(continua)

sexta-feira, maio 25, 2007



Segundo a OCDE no tocante a Portugal
Consolidação orçamental
e revisão do crescimento


A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) reviu ontem em alta as previsões de crescimento para a economia portuguesa alinhando-as com as do Governo e da Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional. A OCDE, nas perspectivas económicas acabadas de divulgar, espera que Portugal cresça 1,8% em 2007, mais 0,3 pontos do que a previsão de Novembro.

A instituição, que agrega as trinta economias mais desenvolvidas, dá também sinais positivos na frente orçamental: espera que o Governo consiga um défice orçamental de 3,3% do PIB, valor que compara com os 3,7% divulgados no final do ano passado. Para isso, estima que o consumo público recue 1%, três vezes o valor estimado há seis meses.

Apesar do aumento de desemprego no início do ano, a OCDE acredita que o ano irá fechar com uma taxa média de desemprego de 7,6%, o mesmo que a estimativa oficial do Governo.

Apesar de um abrandamento face ao ano passado, o bom momento das exportações deverá continuar, ao que se deverá juntar um abrandamento das importações. O resultado será uma contribuição líquida do comércio externo de 0,9 pontos percentuais. No ano passado a contribuição foi de 1 pp.


Inocência ajuramentada

O autor deste texto, publicado no Semanário Económico, é o jornalista Rui Peres Jorge dos quadros do jornal. Não fui eu quem foi à tigela da marmelada, juro. Muito menos inventei os números da OCDE.

Conheço relativamente bem a Organização, já estive por várias vezes na sua sede em Paris, participei ali, até em discussões de trabalho. O que não me foi difícil, muito menos representa mérito próprio. O cargo de Assessor do falecido Sousa Franco, então Ministro das Finanças, foi justificativo natural para tais cometimentos.

Pelos vistos, já há mais de ano o escrevi neste blogue, a OCDE faz parte da cabala internacional que, sem se perceber muito bem porquê, apoia descaradamente o Governo Sócrates. Quem o diria? Aparentemente insuspeita, supostamente independente (quem o é hoje?), vai-se a ver e é um dos tentáculos da máfia que anda por este Mundo a espalhar que as coisas vão melhorando em Portugal. Não com a velocidade desejada, mas Roma e Pavia…

Suponho, assim, que São Bento (não se trata do excelente técnico leonino) anda a treinar mais uns quantos suspeitos para que se apresentem mais favoráveis à conjuntura lusa. Instituições de pouca monta - tais como a CE e o FMI – são outros dos pecadores que batem na mesma tecla. Brada aos céus não haver quem ponha cobro a estes dislates mundiais. Nem mesmo o Executivo português, imagine-se.




Com estas e outras, começo a pensar que tinha alguma razão, pequenina embora, quando aqui escrevi, juntamente com a Eva Gaspar e outros, que a economia de Portugal já não estava em coma, embora ainda não tivesse saído dos cuidados intensivos. Mas, mesmo aí, tudo indicava que passara à condição de convalescença - o que já não é mau. Os outros cresceram mais do que nós, é um facto. Mas, grão a grão…

Dos enganos vivem os escrivães, diz o ditado. Se calhar não terá sido totalmente o caso. Tal como dei a mão à palmatória, também aqui reivindico o direito à correcção – ainda que diminuta. O que, em termos processuais, poderia ser uma inocência ajuramentada. Que não existe – mas fica bem. O futebolista João Pinto, o do FCP, ora treinador, fez uma afirmação que já entrou na panóplia do calino: Prognósticos, só no fim do jogo.
A.F.

quinta-feira, maio 24, 2007




À RODA DOS DIAS

Maio





Maria Lúcia Garcia Marques
M
ês de Maio, mês de Maria. Era assim na minha infância. Minha Mãe rezava o terço todas as noites do mês com quem quisesse acompanhá-la. Eu sentava-me numa cadeirinha baixa, lá no quartinho dos fundos onde minha Mãe armara um pequeno oratório, e ficava a vê-la, na obscuridade recolhida, desfiando o seu terço de contas de vidro que balançavam suavemente ao movimento dos seus dedos lindos. A luz mansa duma lamparina de azeite punha reflexos ondulantes no rosto duma imagem de Nossa Senhora das Graças. Duas jarrinhas minúsculas com raminhos de gipsofila, dois candelabros de prata com suas velinhas de chama simétrica.

Não era um acto de adoração. Era um gesto simples de filial devoção, de piedade familiar, no verdadeiro e ancestral sentido que os romanos davam ao termo pietas e à celebração dos deuses lares. Rezava-se pela paz – minha Mãe vivera as duas guerras mundiais – pela saúde da família, pelos estudos dos meninos, por alguma outra intenção mais particular (lembro-me de termos rezado pela vitória da equipa de que meu irmão era fã ...).

Terminava-se com a recitação da ladainha em louvor da Virgem Maria e ainda lembro o encantamento que algumas invocações deixaram no meu espírito infantil: mãe amável ..., virgem prudentíssima ..., rosa mística ..., torre de marfim ..., estrela da manhã ..., rainha da paz ...

No embalo da longa enumeração, éramos mulheres zelosas pelo bom fim de seus cuidados. Mulheres de trabalho nos seus diversos estatutos e idades. Na mesma cadência de deveres e de desejos que, bastante mais tarde, viria a encontrar nas palavras sofridas de Maria Velho da Costa, em Revolução e Mulheres (1976):
Elas são quatro milhões, o dia nasce, elas acendem o lume ...
Elas cantam baixinho a meio da noite a niná-los para que o homem não acorde ...
Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra ...

Elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado. São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.

Elas, sempre Elas na frente da luta, subindo e descendo a(s) “Calçada(s) de Carriche” deste mundo, nesse barómetro da vida d´Elas que António Gedeão tão bem soube graduar.
Ela(s) – Maria(s). O nome de mulher mais usado em Portugal. Que a História fixa: Marias – rainhas, Maria(s) da Fonte, Maria(s) Madalena(s). Ou que a linguagem popular aproveita: maria-rapaz, maria-cachucha, maria-mijona, maria-vai-com-as-outras, mariazinha-pé-de-salsa ...

E, a propósito desta última, uma historinha alegre que guardo no coração: era eu adolescente, magricela e “acneica”, vivendo no sobressalto de crescer e ser mulher (fundamentalmente apenas à espera de que dessem por mim ...), estreei umas meias novas, no “grito da moda”. Altas. Verdes-bandeira. Perna fina e pé ligeiro, livros abraçados ao peito, saia rodada apertadinha na cintura (verdadeiramente “de vespa” ...), lá ia eu rumo à lição de francês. Num passo corridinho – mai-las minhas meias verdes – pela borda do passeio. Foi quando cruzei um rapazola, “boina maruja ao lado/louca madeixa ao vento” (cito de cor Pedro Homem de Mello), que, de riso largo e olho aceso, me atirou: Olá, Mariazinha pé-de-salsa!

Ele vira as minhas meias de eleição! Indiferente se estava a gozar. Ele vira-me! ... Ainda hoje me rio de consolação! Mês de Maio, mês de Maria, mês das Marias, e, já agora - porque não? - das mariazinhas-pé-de-salsa, que também são gente!

quarta-feira, maio 23, 2007





Nome de gente

Antunes Ferreira
Podia ter sido completamente diferente se o sacana do padre não estivesse perdido de bêbado durante o meu baptizado. Diz quem assistiu que até ia caindo na pia baptismal, por mor de um bordo que levou o sacristão Josué de cangalhas. Se este não se tivesse encostado à parede e deitado a mão à batina do missionário teria sido o bom e o bonito.

Eu te baptizooo, soluço, em nome do Pppai, do Filho e do ‘Sprito, soluço, Santoooo. Com muitos arranques à mistura, língua entaramelada, arrotos repetidos. Os assistentes cochichavam aiué, o gajo está mesmo enrolado, manos, talvez bangasumo (1), talvez vinho de capacete, talvez uísque SBELL, quem sabe se não uma 1920, uma Mosca ou um Constantino, a fama que vem de longe. Houve até patrício que falou em cadingolo (2) ou quissângue (3), mas mandaram lhe calar. Aka!

O certo é que o oficiante, independentemente da dimensão da carraspana, decidiu que me havia de chamar Luís Miguel. Era um aficionado pelos touros e adorava, como mais tarde vim a saber porque me explicaram, o espanhol Luís Miguel Dominguín, toureiro de raça que casaria com a actriz italiana Lúcia Bosé. Vá lá, só fiquei com os dois primeiros nomes aos quais acrescentou de Carvalho, apelido dele, padre.

Os presentes pensaram que a coisa estava completa, até a Nha Júlia comentou em voz alta, nome bonito esse, nome de branco que fica bem também no preto. Mas o cura, entre gargolejos e em risco de adornar, não foi nisso. Toma. Juntou-lhe Hulatamba, do padrinho, vindo do quimbo para assistir na cerimónia.


Por causa do filho das putas fiquei sendo Luís Miguel de Carvalho Hulatamba. Nome esquisito, mais parece de mulato, porque mistura branco e preto. Quando fui na tropa, no RIL, pedi para que me mudassem o nome no cartão militar. Que nada, resmungou o Capitão Mascarenhas, goês de Pondá. Que no bilhete civil estava assim, assim ficava.

Hulatamba Perneta

No mato me chamavam só de Hulatamba. E eu que queria ser apenas Luís Miguel de Carvalho, sem sombra de matador – nem na mata, nem na arena - , nunca me habituei naquela coisa. Estúpido sacerdote, esse branco, além de burro e matumbo (4), gago e malcriado. Fui ferido na Pedra do Feitiço, me retiraram no Hospital Militar de Luanda, fiquei com a perna esquerda mais curta do que a direita, pela operação. E logo, Hulatamba Perneta. Para o que um homem está guardado.

Então, passaram anos, chegou a independência, esperança nova, a ver no que dava. Guerra. Acordos do Alvor e outros…Tudo se envolveu na porrada mais dura. Eu tentei passar ao lado, mas não dava, Outros andavam no capiango (5). Eu não era pra isso. Coisas da pessoa é mesmo da pessoa, não dá nem pra roubar. Na base do esquema, me desenrascava. Solteiro era, solteiro fiquei, umas meninas, namoradinhas, casar? Vai no tuje (6)!

Uma tarde, na rampa do liceu, me encontrou o Francisco Kalungo, meu colega na escola da dona Mariquinhas, ali junto ao Prenda, miúdo então do Quibaxe, não ia na tropa, lhe faltava um braço, desastre de motorizada na ilha, quimbanda (7) não presta. Você sabes que está a se organizar um grupo de amigos lá no Casa Branca. Grupo? Amigos? Para quê? Se eu lhe diz não contas nada a ninguém, me prometes? Lhe prometi.

Apoiar a UNITA. Já tem muita gente. Tem cabeça de pungo (8), tem chicoronho (9), tem cabinda (10), tem calcinha (11), tem bailundo (12), tem cabeça de peixe (13), tem essa gente toda. Até tem camanguista (14) de Malange. Você devias vir, mano. O Presidente Jonas lhe vai agradecer a sua ajuda. Eu anda nas lonas , espero ter melhor vida depois de ganharmos. Lhe assegurei que ia. No dia de São Nunca, à tarde.

Pópilas! (15) ‘Tava tudo estragado. Ia acabar toda a gente na porrada, nem pirão teria para comer. Muito menos moamba de capota (16) com quiabos, muito gindungo e funje de bombó (17). Jamais ia lhe ver de novo. U uekute, olongaiaua viossi viavola, diz em umbundo o provérbio: para quem traz a barriga cheia, toda goiaba tem bicho. Tudo estragado.

Meter em política, não. Política é coisa de rico ou de ambicioso de poder. Eu queria só viver em paz, ganhar para comer nem que fosse meia dúzia de bananas, ginguba (18) seca, eu sei lá o quê. Não queria puxar pelo Galo Negro, como não queria pelo Holden, nem pelo José Eduardo. Esses sim, andavam na concorrência, o Savimbi seria morto na mata. Tudo estragado.

Democracia – no Puto

Hoje vivo na Falagueira, bazei de Luanda, muita maka, muito tiro, muita confusão. Falam agora de democracia, o povo lhe aplaude, mas não sabe mesmo o que é. Democracia só aqui no Puto. Angola tem muito que aprender. Eu vivia no bicanjo (19), lá para os lados de Catete, arredor assim mais calmo que a cidade. Quando começaram na zaragata, peguei nas bicuatas (20) e comprei o bilhete do avião, só ida, volta não, e alem disso era mais barato.

No aeroporto de Luanda foi tudo complicação, só na base do esquema me safei, paguei no polícia uma grade de Cuca inteirinha. Já em Lisboa as coisas foram mais fáceis, tinha o meu BI renovado na Embaixada portuguesa, era cidadão nacional, vinha conhecer a minha terra e, se possível, ficar por cá. Não era estrangeiro, me deixaram passar, nenhum impedimento.

Mais. Fui no Distrito de Recrutamento central, tirei uma certidão do tempo de serviço em Angola (naquele tempo era nossa, do Salazar, do Portugal) três anos, quatro meses e dois dias, as horas não fixei. Com ela fui procurar emprego. Um senhor me disse para ir na obra dele, esta a construir um prédio de dez andares na Reboleira, com licença da Câmara para oito, alvará e tudo. Lhe disse que não era trolha. Ele insistiu, fui.

Comecei de transportar areia e tijolo num cangulo que aqui chamam carrinho de mão. Depois trepei no andaime, na ajuda aos pedreiros e me fui habituando a pegar na colher e a usar ela. O mestre que se chama Fernandes me disse que eu tinha habilidade para esticar a massa e levantar paredes. E assim foi.

Daí a estucador foi um pulo. Outro fez-me chegar a apontador de obra. E mais outro a encarregado. Poucos meses depois, o Senhor Álvaro Fernandes me convidou para mestre-de-obras e me deu sociedade, o que aceitei. Entretanto ia catrapiscando uma menina cafusa (21) de maminhas empinadas, bicos castanhos, carapinha em cima, carapinha em baixo e bunda pequena, o que não sendo normal em africana, ainda que clara, me atraiu definitivamente. Casámos de papel e tudo. Na igreja e no registo. Em dois anos e meio, dois filhos. Hoje são seis, um morreu no parto, escapou a mãe. E oito netos. Suku onene. Deus é grande.

A minha princesinha

Tenho a minha casa, uma vivenda boa, eu lhe construí com as minhas mãos e a ajuda dos amigos.



Vou nos sessenta e poucos. A carapinha salpicada de pimenta e sal. O bigode também está embranquecer. Os filhos e as famílias estão muito bem. Os netos são uma perdição, principalmente a Carla, com sete anos, avô vamos ao futebol? Vamos. Como essa menina, Deus a cubra de bênçãos, sabe do Estrela da Amadora – e dos outros!

O pai dela, o meu filho Arnaldo jogou no Belenenses, era ainda um puto, ponta-de-lança, cada vez há menos, mas uma lesão no menisco lhe impediu de continuar uma carreira que se antevia muito boa. A minha princesinha não jogou, mas sabe muuuiiiito. Uakuata kessindê kandi lovava, também se diz em umbundo. Mas tem igual em português: filho de peixe sabe nadar.

Ludovina, a Vina, minha mulher, já nascida cá no Puto, natural da Cova da Piedade, disse-me que gostava de ir em Luanda, conhecer Angola, os pais eram de lá, está com cinquenta e picos, mais picos que cinquenta, queria lhe dar essa alegria. Euros, tenho. Mas não tenho vontade, não tenho desejo. Um dia será, quem sabe quando…

Uma informação, só: agora continuo a me chamar Luís Miguel de Carvalho Hulatamba. Na Conservatória dos Registos Centrais me disseram, ainda ontem, quando lá fui pela vez trinta ou mais, que para mudar o nome tem de ter novos padrinhos, certidões muitas, declarações ainda mais. Reparem só. A minha Carla é só de Carvalho. E os outros também. Hulatamba não tem. Só eu.

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(1) «Vinho» de abacaxi
(2) Aguardente de palma
(3) Aguardente de milho
(4) Provinciano, saloio
(5) Roubo, andar a roubar
(6) Vai à merda
(7) Feiticeiro, curandeiro
(8) Natural da Gabela
(9) Natural da Huila (Sá da Bandeira)
(10) Natural de Cabinda
(11) Natural de Luanda, emproado
(12) Natural do Sul
(13) Natural de Moçâmedes
(14) Traficante de diamantes (camango), especialmente de Malange
(15) Porra! Chiça!
(16) Galinha do mato
(17) Mandioca
(18) Amendoim
(19) Biscates
(20) Bagagens
(21) Preta muito clara

terça-feira, maio 22, 2007




Campanha pelo direito à vida…

... dos que morrem na Palestina, no Iraque, na América Latina, em África, na maioria dos países asiáticos. Que morrem e morreram vítimas da destruição das suas economias pelo capitalismo galopante, esclavagista e agora globalizante nos seus tentáculos. Pelas crianças que nasceram condenadas à subnutrição, pelas pessoas vítimas dos bombardeamentos e das guerras porque o fabrico e venda de armamento é um negócio para dar dinheiro aos grandes accionistas. Pelas vítimas do desemprego, da negação do direito ao trabalho e à felicidade. Pelas vítimas dos embargos económicos, hoje decretados pelos EUA, ou dos embargos da poderosa indústria farmacêutica. Pelas vítimas das perseguições religiosas pretensamente feitas hoje pelos muçulmanos, outrora tolerantes, e ontem e hoje pelas igrejas cristãs e as guerras em seu nome, incluindo a intolerante e misógena igreja católica apostólica românica, com os seus autos de fé e menosprezo pelas mulheres, durante séculos consideradas seres sem alma. Pelo direito à vida de todos nós, mesmo daqueles que não questionam nem fazem por mudar um sistema de organização da sociedade baseado em princípios egoístas e predadores, conducente à destruição da vida neste planeta, paulatinamente levada a cabo nos seus poucos séculos de existência face aos milhões de anos de existência de vida na Terra.

Porque o direito à vida não é apenas o direito a nascer. É o direito a viver em harmonia com a natureza e com os restantes seres vivos, com dignidade, com saúde, com inteligência, sem subordinação a senhoritos/as e seus capatazes e homens/mulheres de mão, bem ou mal cheirosos e vestidos com maior ou menor elegância, por cima da mentira e da miséria de milhões de seres subjugados e alienados. O direito à vida não é o direito a vegetar!

Victor Nogueira (no seu blogue Kantoximpi.blogspot.com)

NE - O Victor Nogueira é um homem fixe. Temos opiniões políticas diferentes - mas que é isso? Nada nos impede de sermos amigos, trocarmos opiniões e por aí adiante. Vai mandando umas novas que sempre registo com muito agrado. Este texto que hoje aqui publico está inserido, tal como acima digo, no seu blogue o Kantoximpi. Gostei muito dele. Por isso ele aqui está. A.F.


HISTÓRIAS DA PJ

Os casos de crime e mistério acordam sempre o mais vivo interesse e servem de alimento à voracidade do público e à veia de detectives que, todos nós, com maior ou menor sentido crítico, acreditamos possuir.
Diria mesmo que, de detectives, para além de médicos e de loucos, todos temos um pouco. E há momento em que isso se torna particularmente evidente, como aquele que vivemos, com o trágico desaparecimento da pequena Maddie McCann.
O facto trouxe-me à memória um caso que, enquanto Inspector da PJ, responsável por uma Secção de Investigação de Homicídios, me coube em sorte investigar já lá vão mais de 37 anos.
Também se tratou do misterioso desaparecimento de um cidadão anglo-saxónico, ocorrido no Estoril, a zona mais turística e cosmopolita do Portugal de então. As investigações desenvolveram-se num microcosmos constituído por estrangeiros de várias nacionalidades, residentes na Costa do Sol, com hábitos, costumes, culturas e sensibilidades distintas e nem sempre fáceis de entender. Também teve uma assinalável repercussão mediática, obviamente, à medida e nas circunstâncias próprias do tempo.
No entanto, as semelhanças entre os dois desaparecimentos ficaram por aqui. A criminalidade, nos começos da década de setenta, era muito diferente da que actualmente existe – menos organizada, sem recurso às actuais tecnologias e sem a intervenção de redes internacionais, a criminalidade violenta era, ao tempo, fruto essencialmente da acção de delinquentes primários, isto é, sem antecedentes criminais, com motivações muitas vezes passionais.
Vale a pena contar.
JAGM


What happened to Mr. Hood?

(1ª parte)

José Augusto Garcia Marques
R
oy Hood (nome fictício, bem como todos os restantes) era um cidadão australiano, de cerca de 65 anos, pintor, homossexual. Vivia numa dependência nos jardins de um casa apalaçada do Estoril. Ali instalara com bom gosto e conforto a residência e o “atelier”.

Pode dizer-se que Mr Hood tinha uma vida dupla: por um lado, tinha a sua convivência social normal, própria de um homem educado e culto, nomeadamente, com casais estrangeiros residentes no Estoril ou em Cascais, ou com outros indivíduos solteiros, mais ou menos de idade próxima da sua, ligados a negócios de antiguidades, à literatura ou às artes. Por outro, tinha a sua vida sexual, vivida com discrição, com rapazes da zona.

O desaparecimento ocorreu num dos primeiros dias de Fevereiro de 1970. Entretanto, quatro ou cinco dias depois, apareceu, na praia de Carcavelos, o corpo nu de um homem careca, apenas com uns sapatos de camurça calçados. Fora avistado por um pescador que o arrastou para a praia, tendo-lhe atado uma corda aos tornozelos e colocado uma pedra pesada sobre a corda, a fim de evitar que o mar, com a forte ondulação de Inverno, o arrastasse de novo para dentro.

Tratava-se de uma prática corrente. Só que os jornalistas que acorreram ao local, desconhecedores da “técnica” utilizada pelo pescador, deram a notícia do aparecimento de um corpo despido, com uma pedra atada aos pés por uma corda. Mais descreveram o corpo, tal como o viram, como de um indivíduo calvo, com um abdómen volumoso, de idade difícil de definir, atento o estado do rosto, em parte comido pelos peixes. Ora, a verdade é que Roy Hood tinha uma farta cabeleira branca e mantinha uma invejável forma física para a sua idade, não tendo particulares adiposidades.

Chamados a identificar o corpo, o jardineiro do Palácio e a empregada de limpeza da casa de Mr. Hood, não o reconheceram como o do pintor australiano. Não era, porém, essa a convicção da Polícia Judiciária. Com a contribuição preciosa da Medicina Legal, concluiu-se, sem margem para dúvidas, de que se tratava efectivamente do desaparecido. Para isso, começaram por se recolher impressões digitais em objectos pessoais colocados sobre o toucador do quarto do Roy Hood. Em seguida, cortou-se um dedo ao cadáver, tendo-se-lhe retirado a pele, a qual, em face do estado em que se encontrava em virtude da longa permanência no mar, foi tratada em laboratório da forma mais conveniente. Comparadas as impressões digitais recolhidas nos objectos e as impressões digitais da pele do dedo, verificou-se haver uma coincidência absoluta.

Todavia, ainda assim, sempre, em teoria, se poderia dizer que não ficava excluída a hipótese de se tratar de uma visita da casa do pintor australiano, com acesso aos frascos de perfume e aos demais objectos encontrados no toucador. As dúvidas que pudessem subsistir foram dissipadas, quando, numa caixa guardada na mesinha de cabeceira se encontrou uma prótese dentária. De início, o médico legista ficou surpreendido com o achado, uma vez que, na autópsia não dera pela falta de dentes na boca do cadáver. Voltou-se, por isso, ao necrotério do cemitério de Cascais, onde o corpo ainda permanecia e rapidamente se constatou que, na boca, havia uma prótese exactamente igual à que fora encontrada em casa. Tratava-se, afinal, de um duplicado da prótese dentária.

Perante a conclusão indiscutível de que se tratava do corpo do Roy Hood, qual a explicação para as alterações encontradas no corpo? A resposta era simples: tratava-se de consequências resultantes da imersão durante alguns dias no mar e da acção dos peixes. Daí a perda do cabelo em grande parte da cabeça e o volume do ventre, inchado em virtude dessa permanência na água.

Importava, assim, apurar as circunstâncias em que ocorrera a morte do pintor.
Iniciou-se um árduo trabalho de investigação. Em casa da vítima foi encontrada uma agenda de bolso, na qual ele ia anotando, na data respectiva, e ad memoriam, algum compromisso para o dia em referência, bem como, a título de diário elementar, acrescentava algum breve comentário, depois da ocorrência do evento ou no fim do dia. Ora, na data correspondente ao dia do seu desaparecimento, tinha apenas escrito, na agenda, o nome “Ernani”. Assim mesmo, sem H.

Por outro lado, analisada a agenda, havia nomes muitas vezes repetidos, entre os quais o de um tal “James Wallace”. Muito raramente, aparecia também a referência a um outro James – “James Taylor”. O certo é que, quando apenas falava em “James”, Mr. Hood queria referir-se ao “James Wallace”. Tratava-se de um dramaturgo de nacionalidade britânica, também residente na Costa do Sol, sensivelmente da mesma idade do Roy Hood e também homossexual. A última vez em que o nome “James” era mencionado na agenda era muitos poucos dias antes do desaparecimento do pintor, num jantar em casa de um casal suiço, residente no Estoril. Da agenda constava, mais ou menos, o seguinte: “Jantar em casa de (nome do casal). Estará presente o James”.

Na impossibilidade de se identificar, desde logo, o “Ernani”, localizámos e fomos buscar o “James Wallace”, para ser interrogado na PJ. Isto aconteceu numa terça feira de Carnaval: as instalações estavam mais sossegadas e podíamos dedicar-nos com total tranquilidade ao tratamento do caso.

Perguntado acerca do último dia em que tinha estado com o Roy Hood, o “James Wallace” disse que isso acontecera há quase um mês, antes de ele ter ido a Sevilha de onde acabava de regressar. Ficámos naturalmente surpreendidos. Seguro das informações da agenda, disse-lhe que ele estava a mentir. O interrogado, homem fino e intelectualmente dotado, corou e respondeu-me que estava a dizer a verdade. Insisti uma ou duas vezes, com alguma veemência. A reacção foi sempre a mesma. Sem se alterar, o Senhor “James Wallace” parecia perplexo com a minha insistência e ia respondendo que estava certo de que não mais vira o Roy Hood desde há quase um mês.

Tomei, logo ali, a decisão de tentar localizar a residência onde tinha decorrido o jantar a que o Mr. Hood se referia. A tarefa não foi difícil. Resolvi ser eu próprio a falar com a dona da casa, que preferiu falar em inglês, quando soube que era da PJ. Perguntei-lhe se, na data em causa, Mr. Hood tinha sido seu convidado num jantar que oferecera em sua casa. Tendo-me respondido afirmativamente, perguntei-lhe se, nesse jantar, não tinha estado também presente o “James”. Mais uma vez me respondeu afirmativamente.

- “James” quê?, perguntei eu, de novo.
- Do outro lado do fio, ouço então: “James Taylor”.
- “Então não era o James Wallace?”
- “Não, o James Wallace nem sequer estava no País, penso que estava em Espanha”.
Agradeci e desliguei.

Voltei à sala onde decorria o interrogatório. O inglês, sempre dominado, estava, no entanto, visivelmente ansioso. Pedi-lhe desculpa e expliquei-lhe o sucedido, bem como a razão da minha teimosa insistência. Disse-me então, aliviado, que não era de admirar que, quando falasse apenas em “James”, o Roy Hood se referisse a ele e não ao “Taylor”, com quem tinha uma convivência muito menos assídua.

Mas estamos sempre a aprender. E é bem verdade que não há regra sem excepção. E, na agenda do pintor morto, a excepção – a única excepção, como constatámos depois – era aquela. Em todos os restantes casos, sempre que falava (apenas) em “James”, referia-se (sempre) ao “James Wallace”. Aproveitámos para lhe perguntar se conhecia algum “Ernani”. Respondeu-nos que não e que desconhecia as actuais companhias íntimas do Roy Hood.

Mas aquela terça feira gorda era definitivamente o nosso dia da sorte. Não passaram muitos minutos sem que me chamassem de novo ao telefone. Era uma outra senhora estrangeira residente em Cascais. Confirmou a minha identidade – ao tempo muito divulgada pela Imprensa – e disse-me que pensava que o “Ernani” de que os jornais falavam era criado lá em casa. Obtido o endereço, partimos para lá, num único carro, eu, o Chefe de Brigada e dois agentes, um dos quais motorista. Depois de batermos à porta, veio abrir um jovem que logo se anunciou:
- “Eu é que sou o Hernâni”.

(continua)

sexta-feira, maio 18, 2007







O INE e o desemprego

Taxa do primeiro trimestre
é a mais alta em nove anos



Antunes Ferreira
No melhor pano cai a nódoa, diz o Povo que, como quase sempre, tem razão quando enuncia ditados com este. Na verdade, é cada vez mais difícil contestar a sabedoria popular, plasmada em palavras simples mas solidamente alicerçadas em milhares de anos. No âmbito do Direito chama-se consuetudinário. Numa dimensão mais global, pois estamos na época, diz-se tradição. As mais das vezes – correcta.

Socorro-me, de novo, da agência noticiosa nacional e de órgãos da CS diversos. A taxa de desemprego de 8,4% estimada para o primeiro trimestre deste ano é a mais alta registada desde o início de 1998, quando o Instituto Nacional de Estatísticas (INE) começou a actual série.Segundo o INE, os dados do emprego estão sistematizados desde 1974, mas em quatro séries distintas, não sendo possível fazer uma comparação directa entre as diversas séries, devido a «diferenças metodológicas significativas».


Na actual série, iniciada no primeiro trimestre de 1998, a taxa de desemprego só atingiu os 8% por uma vez, no último trimestre de 2005, e claro, no último trimestre do ano passado e no primeiro deste ano. O INE divulgou agora que a taxa de desemprego subiu 0,7 pontos percentuais no primeiro trimestre deste ano, face a igual período de 2006, atingindo os 8,4%, e registou uma evolução trimestral (em cadeia) de 0,2 pontos percentuais.

Como se pode ver imediatamente abaixo, escrevi uma nota, a partir de dados do Eurostat, e socorrendo-me de um texto sintético e informativo da autoria da jornalista Eva Gaspar. Anexei-lhe uma outra notícia, a partir do serviço da Lusa e permiti-me tirar umas quantas ilações. Tudo parecia indicar que se entrara no caminho da recuperação da economia portuguesa, ainda débil, mas a cair no sustentado.

Dou a mão à palmatória

Venha a palmada. Tanta é a vontade de ver o nosso País sair do marasmo em que vinha vivendo; tanta a confiança nos números e percentagens que eram fornecidos por entidades de reconhecida fiabilidade; tanta a intenção de apontar o caminho deste Governo, que tudo tem feito para inverter o derrotismo tipicamente português, ainda que à custa do cinto dos cidadãos, muito apertado, que alinhei nos convencidos. E com muito prazer.

Não era um sonho, mas também não era um desejo, no bom sentido da palavra. Era, tão só, a constatação de que a crise (que ainda existe) começava a ser ultrapassada, princípio de vitória que nos satisfaria e nos permitiria inspirar fundo, a haustos largos, para descomprimir a pressão que temos sobre nós, ainda que aligeirada. Bato no peito. Mea culpa.


Veio então à ribalta o ministro do Trabalho, o qual, em declarações à agência Lusa, disse que há dados que contrariam a tendência de aumento do desemprego mostrada pelo INE e considerou que, mantendo-se a aceleração do crescimento económico, Portugal está em condições de conter e começar a reduzir o desemprego.

No entanto, Vieira da Silva afirmou que a taxa de desemprego continua elevada, segundo esses dados do INE, mas que há outros dados recentes que mostram um sentido contrário, de recuperação no mercado de trabalho. E acrescentou que se trata de «uma preocupação da sociedade e do Governo». Pormenorizou que há «dados recentemente divulgados que mostram um sentido contrário» aos fornecidos pelo INE, e que aqueles apontam para «alguma recuperação».

Os dados de que fala o ministro são, em primeiro lugar, os do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), que apontam para uma tendência consistente de redução homóloga do desemprego registado. Os últimos, divulgados a 15 deste mês, mostram que o número de desempregados inscritos nos centros de emprego diminuiu 10,4% em Abril, face ao mesmo mês do ano anterior, pelo 14º mês consecutivo.

Números dados pelo ministro

No final de Abril, estavam inscritos nos centros de emprego do Continente e Regiões Autónomas 420.685 indivíduos, menos 48.568 desempregados que no período homólogo, dados que contrariam os do INE, que estimou hoje a população desempregada em 469,9 mil indivíduos, o que traduz um acréscimo homólogo de 9,4% (40,2 mil indivíduos).

Vieira da Silva referiu, também, à Lusa, que o número de desempregados - que recebem pela primeira vez o subsídio - caiu 13,5% no primeiro trimestre, em termos homólogos, enquanto o total de beneficiários do subsídio de desemprego caiu 8,1%, no mesmo período. «Estes dados podem ter a ver com a situação de mudança que a economia portuguesa está a atravessar», afirmou o ministro do Trabalho e da Solidariedade Social.

Disse ainda que tem uma «expectativa favorável» sobre a «evolução positiva» do desemprego, especialmente depois dos dados sobre o andamento da economia portuguesa no primeiro trimestre. A 15 deste mês, o INE anunciou, na sua primeira estimativa rápida, que o crescimento da economia portuguesa acelerou no primeiro trimestre, com um aumento homólogo (face ao mesmo período do ano anterior) de 2,1%. A isso me referia no texto já citado.

O governante observou que «é sempre difícil prever uma tendência», mas considerou que Portugal estava «em condições de iniciar a contenção e a redução, ainda que ligeira, da taxa de desemprego». Poderão estas afirmações significar que o Executivo chefiado por José Sócrates embandeirou em arco desnecessária e imprudentemente?

Reconhecer que me enganei é difícil. Mas estou certo de que é o único caminho a seguir em certas ocasiões. Nestas coisas de previsões e estatísticas há sempre anedotas calinas para explicar o desfasamento entre dados e há também sempre quem aproveite essa discrepância para berrar «nós é que tínhamos razão! O Governo é, uma vez mais, mentiroso!»

Fizeram-no, eu digo, como lhes competia, as centrais sindicais, ou seja, a CGTP e a UGT, e os partidos da Oposição. O primeiro-ministro – estou quase certo (pelo sim, pelo não, adverbei com o quase) – irá comentar estes dados do INE na mesma linha adoptada por José António Vieira da Silva. Espero que, desta vez, seja suficientemente claro para que não se sujeite a mais dichotes e ataques acirrados.

Se não for assim, o chefe do Governo tem aqui um bico-de-obra. Tem, por isso, de despachar-se, de intervir neste imbróglio estatístico, de explicar cabalmente onde está o busílis. Se não o conseguir – os Portugueses talvez já não correspondam aos números e percentagens das últimas sondagens. Aqui, sem grande margem de erro – ou de dúvidas.

terça-feira, maio 15, 2007

REGISTO




O bom momento
da nossa economia

Eva Gaspar
Dados ontem divulgados pelo Eurostat confirmam que a economia europeia continua em boa forma, ainda que tenha sofrido uma ligeira da desaceleração, e que, no quadro da Zona Euro apenas a economia espanhola cresceu mais do que a portuguesa no primeiro trimestre.

A economia europeia sofreu uma ligeira desaceleração no primeiro trimestre deste ano, tendo no entanto crescido mais do que era antecipado, em larga medida devido ao desempenho da Alemanha que continua a surpreender os analistas pela positiva.




De acordo com dados, ainda provisórios, do Eurostat, a economia da Zona Euro cresceu 0,6% no primeiro trimestre do ano, menos do que os 0,9% registados no fim de 2006, mas mais do que o antecipado pelos analistas. Em termos homólogos, ou seja comparando o primeiro trimestre deste ano com o mesmo período do ano passado, o crescimento foi de 3,2%, também menos que os 3,3% observados no trimestre anterior.

Por detrás do relativo bom desempenho da área da moeda única, está a Alemanha que cresceu 0,5% no primeiro trimestre – metade do observado nos últimos quatro meses de 2006, mas acima dos 0,3% que eram esperados pelos economistas consultados pela agência Bloomberg que antecipavam uma desaceleração mais acentuada em virtude do aumento da taxa do IVA, de 16% para 19%, que entrou em vigor em Janeiro.




O início do fim da divergência?

Os números do Eurostat traduzem, porém, uma notícia especialmente positiva para Portugal. Após seis anos de divergência, a economia portuguesa parece estar a começar a corrigir a trajectória, tendo neste primeiro trimestre do ano crescido 0,8% face ao trimestre anterior, ultrapassando pela primeira vez em largos meses a média da Zona Euro (0,6%) e o andamento nos Estados Unidos (0,3%).

O bom momento da economia portuguesa pode ainda ser confirmado pelo facto de apenas a Espanha (1%) ter crescido mais do que Portugal, cujo desempenho é igualado pela Áustria.
Os dados provisórios, com base em valores apurados em oito dos treze países da Zona Euro, revelam ainda que a economia portuguesa foi a que mais acelerou entre o fim de 2006 e o início deste ano, ao dar um "salto" equivalente a meio ponto percentual.



Querida Eva
Palavra de honra que esta notícia não fui eu quem a inventou, muito menos quem a escreveu. É da autoria da jornalista Eva Gaspar, uma excelente profissional e minha boa Amiga. Há quanto tempo não tinha a oportunidade de lhe enviar um milhão de queijinhos – e agora aqui estão.
Querida Amiga: como vais tu e a descendência? Oxalá bem. Continuo a ler-te regularmente e admirar-te pelo que escreves e como escreves. Tantas vezes me tem vindo à memória os momentos interessantíssimos que vivemos em Bruxelas, nos intervalos dos Ecofin e nos finais dos trabalhos, quando o falecido Sousa Franco respondia aos jornalistas portugueses acreditados junto da União Europeia.
Então, eu era apenas um adjunto do ministro das Finanças e seu assessor para a Comunicação Social, como te deves recordar. Depois, bem, depois, muita água passou por baixo das pontes, e nem vale a pena recordar tudo o que aconteceu estupidamente. Prefiro relembrar os bons bocados que vivemos no Justus Lipsius. Esses, sim, esses deixaram, pelo menos a mim a gratidão que os Amigos me merecem.
Graças a vocês – e em especial a ti, querida Eva – me fui desengomando de tarefa que me era difícil por me sentir sempre (ou quase sempre) muito mais jornalista, que tinha sido e que voltei a ser, acabado esse período longo e tormentoso, do qual resultaria uma situação doentia que não desejo nem aos meus piores inimigos. Que tenho.
Hoje, neste meu blogue, transcrevo o teu texto publicado no Jornal de Negócios – sem te ter pedido licença para o fazer, nem autorização ao diário dirigido por Pedro S. Guerreiro. Mas sei de certeza feito que ambos me relevarão a ousadia e o correspondente procedimento.
Por isso, o texto curto e perfeito, como é teu uso, com a minha homenagem a ti – que a mereces por inteiro – e o desejo de nos reencontrarmos logo que nos seja possível, porque, podes crer, tenho muitas saudades de ti. E muito obrigado pelo que me ofereces em matéria de Jornalismo. Nos ofereces.
A.F.




Portugal acelera

Por outro lado e de acordo com diversas instituições nacionais, a começar pelo Instituto Nacional de Estatística o crescimento da economia portuguesa acelerou no primeiro trimestre, com um aumento homólogo (face ao mesmo período do ano anterior) de 2,1 por cento, segundo as estimativas rápidas do PIB, que o INE divulgou ontem pela primeira vez. Em cadeia (face ao trimestre anterior), o produto interno bruto (PIB) cresceu 0,8 por cento no primeiro trimestre de 2007, após 0,5 por cento nos últimos três meses de 2006.

O INE anunciou que as estimativas rápidas que divulgou colocam Portugal em linha com os principais países da União Europeia e serão publicada preferencialmente 45 dias após o final do trimestre de referência, podendo ser a data ajustada em função do dia de divulgação das estimativas rápidas da União Europeia pelo Eurostat.

Falando aos jornalistas no final de uma visita a uma fábrica de componentes para automóveis, a M C Graça, no Carregado, o primeiro-ministro referiu que Portugal registou agora "o maior crescimento trimestral dos últimos cinco anos". E acrescentou que "Pela primeira vez, ao fim de cinco anos, o crescimento económico ultrapassa os dois por cento, o que representa um factor de confiança e um número que espelha com clareza a recuperação da nossa economia".

Tendo ao seu lado os secretários de Estado do Comércio, Fernando Serrasqueiro, e da Indústria, Castro Guerra, Sócrates manifestou a convicção de que, perante os últimos dados do INE, "Portugal está a crescer a e a recuperar cada vez mais". "Quando este Governo tomou posse, o crescimento registado no primeiro trimestre de 2005 foi de 0,1 por cento negativo. Depois, em igual período de 2006 foi de um por cento positivo e agora de 2,1 por cento, o que dá bem a ideia da progressão do crescimento e da sustentação da recuperação em curso", advogou o chefe do Governo.

Na opinião de José Sócrates, o dado mais significativo é que Portugal cresceu agora mais 0,8 por cento do que no trimestre anterior. "Ou seja, o crescimento em cadeia é de 0,8 por cento. Trata-se de uma aceleração da nossa economia que é inclusivamente superior à da média europeia - o que representa um factor que dá mais confiança, mais sustentação e constitui um excelente indicador para os consumidores e para os agentes económicos", disse.

Interrogado sobre o baixo nível do consumo privado em Portugal, o primeiro-ministro contrapôs que esse dado "significa que o crescimento económico nacional é virtuoso". "O nosso crescimento é sustentado pelo sector exportador. Um crescimento com problemas é quando se baseia na procura interna, o que não é o caso de Portugal", defendeu o chefe do Governo. De acordo com o primeiro-ministro, em 2006, o sector exportador nacional "pela primeira vez ganhou quota de mercado, cresceu 8,8 por cento e continua ainda a crescer".

Sobre a expectativa do Governo em relação à estimativa que fará o INE sobre os primeiros 70 dias do ano, Sócrates mostrou-se de novo optimista. "Estou convencido que a variação será positiva entre a estimativa rápida dos primeiros 40 dias e a dos 70 dias, por parte do INE. Estou convencido que a variação será para mais", reforçou, antes de aludir aos principais organismos internacionais em termos de análise à economia portuguesa. "Todos os mais recentes dados divulgados têm reforçado a confiança na economia portuguesa, dizendo que cresce mais do que se esperava", acrescentou.
(Texto publicado pela CS e elaborado com base na Lusa)

ADENDA - Continuo a afirmar convictamente que mais não faço do que registar no Travessa do Ferreira estas informações. Com muito agrado e satisfação pessoal, porque são um lenitivo para o nosso País, onde ainda há gente que persiste em dizer que a crise está a anos luz de melhorar. Para que conste. A.F.





VOLTAR À GUERRA

Vermelha, não; encarnada

Antunes Ferreira
Pingolejava. Escorrendo pelas ramas, pelas folhas, pelas lagartas, a água, findos os apoios, caía em gotas grossas no emaranhado verde que cobria um chão escorregadio e putrefacto. Se fosse na aldeia da Sobraleda, aquele húmus seria de erguer as mãos aos céus pela benesse que representava para os favais sem linfa e sem estrume.

Ali, pois, ali, as coisas eram diferentes. O verde, melhor, os verdes dos quais se evolavam vapores sulfurosos (seriam?) rescendiam a esterco recheado de miasmas. O carreiro aberto pelas botifarras dos militares desenhava-se apenas à passagem, e voltava a desaparecer na espuma esverdeada que, de tão densa, impedia de ver o chão. Cuidado com as cobras, alertou o sargento Simões.

O pessoal redobrou de cuidados. Já não bastavam os inimigos, as emboscadas, as minas, os fogachos de toda a ordem, já não sobrava nada para que o medo se instilasse pelo camuflado, pelos polainitos, pela derme suja a precisar de banho com muito sabão azul e branco (ou seria macaco? Ou seria sabonete lux, aquele que cada nove estrelas de cinema, em dez, usava, para a beleza realçar?) e basta esfregadela, já não contavam as saudades, e agora as cobras.

Puta de vida, esta de dar corda às botas e andar em busca dos gajos que faziam maka, no dizer dos pisteiros e dos tropas da Província, que realmente era colónia mas que não se podia dizer, proibidíssimo. À volta, os cortinados, eles também multi esverdeados, eram paredes opacas e densas que impediam que eles vissem a mais de uns escassos palmos das trombas.

Do outro lado dos reposteiros vegetais podiam estar os gajos, especialistas em planar sobre o terreno, por mais que pisassem caules não se ouvia um estalido, estavam em casa, na casa deles, a mata era sua cúmplice, os pássaros continuavam a cantar com eles por baixo, eram todos primos, nós é que as assustávamos, as aves que engoliam os gorjeios à nossa passagem.

E nós estava mesmo lá, kalashnikoves nas mãos, pisa aqui, pisa acolá, sem ruído, sombras de uma floresta amiga, camarada, mãe, amante. Eles bem podiam desconfiar – e desconfiavam mesmo, jura mesmo sangui di kristo – que nós estávamos lá, porque estávamos. Na primeira oportunidade eles ia saber, nós lhes saltava, lhes apertava o pescoço, lhes derrubava com uma bassula a preceito.

Eu foi no mercado de Quinaxixe como carregador de um portuga que vendia mangas do Mussulo numas quitandeiras que ali tinha banca. Vinha no cocuruto do camião, uma White de escape acima, ao lado da cabina. Era o Senhor Jorge, beata na boca, palavrão na boca, sempre armando maka. Ele tinha mais sete camionetas, até uma japonesa, o negócio era roubo, dava dinheiro. Me batia até com pau. Lhe estava a querer mal até demais. Pensava lhe podia matar. Um dia, o meu primo Adão me disse que os amigos estavam a lutar na mata pela independência e ele ia para lá. Eu também foi.

Guerra é coisa má, mesmo

G
uerra é coisa muito má, mesmo. Se você podes resolver o assunto sem ter de ir na guerra, então resolve. Sangue demais, mortos demais, ferido demais, merda demais. Só que tem coisas que não se pode arranjar sem guerra. Libertar os nossos dos colono é muito importante. Por isso andamos por aqui, lhes impedindo de ter descanso, lhes metendo medo. Até das cobras.

Nós também tem medo das cobras. Tem cobra pequenininha que é venenosa, tem cobra grande-grande que engole um boi inteiro, tem cobra de terra, tem cobra de água. Diz que até tem cobra de mar, mas nunca ninguém disse que lhe viu. Os camuflados vêm aqui, deixam no puto as famílias, as namorada, os propriedade, essas coisas todas que fazem o homem ir no destino que lhe marcaram. Que não é a nossa terra, porque não é a deles.


Assim seguem, de um lado e do outro da manta pesada de verde tecida, mais suave ou mais pesadamente, soldados do exército portuga e guerrilheiros da libertação, a que os primeiros chamam turras. Como irmãos separados, como gémeos a quem o bisturi deu vida própria, correndo muitos riscos e passando muitas fezes. De cada lado pensando que no outro estão os inimigos prontos a eliminar os nossos.

Os nossos que igualmente seguem a passo, cada um considerando-se mais nosso e mais vivo, até que a ceifeira negra os reduza a carne queimada, retorcida, esburacada, a caminho da cova. Os uns e os outros, nossos à vez e ao mesmo tempo, destes e daqueles, olha lá ó Rodas, achas que os cabrões andam por aqui a tentar caçar-nos?

Camarada, os nossos está no ir, não faz barulho, que os outros estão à coca, esses não são maçaricos, já tem experiência da mata, já comeram o pão que o diabo amassou, como eles dizem e nós aprendemos deles. Escapam, não pisam no fio da armadilha, e os patrícios que lhes guiam também lhes ensinam como sobreviver aqui.

Se se encontrarem vai ser uma porra. Mesmo que não entendam exactamente porquê, só lhes restará apontar, carregar no gatilho, tirar o anel de segurança, lançar a pinha metálica em arco, agachar-se para não dar alvo, ou para apontar o morteiro. Borrar-se e vomitar do cagaço que os invade, conquista fácil, quem tem cu tem medo, a vida são dois dias e a morte é coisa certa, a única que a vida tem. Ou não tem.

Sei lá se chego ao Natal…

Tomara que desta vez sigam trilhos separados e divergentes. Ó Sousa, abre-me bem os olhos, incluindo o traseiro, o sacana do tempo não anda, fodam-se os relógios, andou uma mãe a criar um filho prá desgraça. Vem-lhe à cabeça uma frase que viu gravada na porta desconjuntada da latrina, no quartel: Quanto tempo demora um minuto a passar depende muito de que lado da porta da cagadeira um gajo se encontra.

O Lemos, pasteleiro na vida civil, que quer passar à peluda em Luanda, Angola é que é, do outro lado já deu o que tinha a dar, diz muito em surdina, os filhos da mãe têm ouvidos de tísico, agora o que caía bem era um bolo-rei. Está parvo, ou quê? Estamos em Junho, o bolo é do Natal, como as filhós, o presépio e o pinheiro. E o Pai da época. Sei lá se chego à consoada…

O negro Julião Kitombe é o mano da RPG a que os brancos chamam lança granadas foguete, ou bazuca. Ele a trata com carinho, lhe afaga o cano como quem acaricia mama de mulher de bico esticado e duro pelo cio. José Oliveira é mulato, filho de um frequentador de sanzala da Huila e de menina de ventre liso e aconchegador. Tem uma mauser de telescópica ou assim, lhe deu o pai pra caçar elefante, ela caça branco na picada.

Ao longe ouve-se a trovoada, faíscas ziguezagueiam no céu, abrem-se as comportas lá de cima, despejam águas quais quedas do duque, em bátegas que chicoteiam a noite entretanto caída. Caralho, aqui nem se dá por que o dia acabou. O sol põe-se sem a gente se aperceber, a não ser pelo vermelho dele. Alto lá; vermelho não, encarnado que, para o caso é mais alaranjado. E a tropa prossegue, encharcada até aos ossos, a chuva e a lama entra-lhe pelo pescoço e aninha-se nas botas cardadas.

Vamos embora, compadres, eles já não chegam no nosso caminho, outra vez será, hoje não tem guerra, não estava marcada, nem tem livro de ponto como a Diamang tem. Nós voltamos no quimbo, é mais acampamento, aiué, tem lavra no lado, não se preocupa, eles não vai lhe obrir, está bem escondido.

Salazar e Neto

Salazar e Agostinho Neto tornam a divergir nas ideias e nos percursos, aqui mergulhados nesse magma verde-verde que assentou praça no definido das mafumeiras. Interrogam-se as duas partes: mas que cagada de guerra é esta, feita de ludíbrios, de truques, de cartas na manga e muito viciadas? Nenhum sabe responder.

Os soldados nem sabem o que é essa trampa do colonialismo, meteram-nos no ventre ajoujado dum navio a abarrotar, depois de os terem treinado em escasso tempo para matar e morrer. Em nome de quê? A maioria deles nem se apercebe de que não percebe. Falem-lhes no Estado Novo - em que já nasceram – ou na Oposição e não sabem nada. Uns poucos, talvez, os que mais sabiam já desertaram a salto para a estranja.

Essas coisas não são com eles. O Benfica do Eusébio, a Amália Rodrigues, a Senhora de Fátima, até mesmo o Sporting do Seminário, o Juan, não o dos padres, o Porto do Pedroto, a Madalena Iglésias, o António Calvário, esses, sim dizem-lhes coisas, têm-nos nas cabeças e mesmo nos corações. Reuniões secretas? Onde? Pelos cartazes apenas sabem que o boato é crime e fere como uma lâmina.

E os nacionalistas? Talvez saibam – quiçá porque lho disseram – que estão a combater pela terra deles, o que, de qualquer forma, é muito mais importante, até mesmo empolgante, do que a pergunta que os tugas se fazem: porque raio estamos nós aqui? Muitos guerrilheiros (para os brancos são terroristas) vieram para a floresta por escolha. Mas outros também estão em comissão de serviço, como os seus adversários.

Não fosse a estupidez de Lisboa e a sua intransigência alvar, a ganância das famílias milionárias, a demência da clique salazarenta - e outro galo cantaria. Não fora o desejo de libertação, à mistura com interesses rebuscados e recônditos, a aspiração de tomar o destino nas próprias mãos – e o mesmo galo cantaria, claro, de forma diferente.

Assim, restam as rajadas, as explosões, a pólvora, os amuletos, as pagelas do Santo Padre Cruz, as G3, as facas de mato, os canhangulos, as catanas. O que é quase nada, porém suficiente para que os homens se chacinem as mais das vezes sem descortinarem porquê. O ideal seria que os donos das tropas, de uma e da outra parte se sentassem, conversassem, discutissem e evitassem a sangria. De sangue, não de vinho. Mas, infelizmente…

Dos dois lados da fronteira entaipada a verdes ambos se afastam. Os nossos e os nossos. O sangue tem de esperar nova oportunidade. A metralha ficou esquecida no canto da gaveta de terra vermelha. Vermelha, não; encarnada...

domingo, maio 13, 2007

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UM RECADO URGENTE
Para o Alentejano em Timor

Caro Amigo

Não sei mais nada a seu respeito, a não ser o que teve a gentileza de postar neste Travessa do Ferreira. E como «ameaçou» por aqui voltar a passar, para alem de lhe agradecer as suas palavras, peço-lhe que, querendo-o, faça o favor de me enviar os seus dados, para que possamos corresponder-nos com maior facilidade e Amizade. Adoro fazer Amigos – o melhor que temos na vida. E tenho costeletas alentejanas (a minha falecida Mãe era portalegrense. E outras…), além de uma nora de Estremoz. Não me safo… Fico à espera de novas novas suas. Um abração

Antunes Ferreira
Se algum dos leitores amáveis souber dar-me dados deste Senhor, agradeço-lho. Bem haja
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sábado, maio 12, 2007



O 1º desmaio

Hélder Fernando
Correspondente na RAEM

Vários sectores da governação, nestes anos de sete e meio, já sofreram alguns abalos. O sismo “mãos longas” fez tremer, mas não deitou a casa abaixo, pelo menos, por enquanto. Até que, no Dia do Trabalhador, apareceu o 1º desmaio. Uma mão cheia de tolices e orgulhos de caserna e camarata deitaram muita coisa a perder.

Se meia dúzia de desordeiros, aproveitando o desfile, fizeram disparates (a cena lastimável junto à casa mortuária foi um deles), os organizadores da manifestação deviam, imediatamente, tê-los expulsado da concentração.

Se entre as associações que organizaram o protesto há gente manifestamente impreparada para dialogar com as autoridades constituídas – gente porventura inútil para qualquer género de diálogo em sociedade – da próxima vez não metam tal gente nestas coisas, vale mais passarem-lhe guia de marcha para seguirem o conselho de Florinda Chan e rezarem pelos manifestantes.

Do outro lado das barricadas, se existe alguém sem cultura policial ao serviço de uma sociedade civilizada, sem percepção sobre comportamentos de grupo, sem preparação humana para impor a calma e não o pânico, exactamente no momento em que isso é mais necessário, devem esses elementos mudar de profissão, serem destinados a outras tarefas ou terem formação adequada.


Tal como não deve um policial desatar aos tiros no meio de pessoas desarmadas, porque alguém perdeu um chinelo, também um comandante policial, mesmo substituto, deve evitar o exercício de carregada ironia, ao afirmar que a força policial só usa balas verdadeiras. Descontrolo, arrogância evitável e ainda por cima afirmação não verdadeira. Qualquer polícia do mundo, incluindo Macau, mesmo em situações de dimensão e grau de violência muitíssimo superiores, utiliza outros processos e outras munições não reais.

Os truques utilizados pelas forças policiais no sentido de dividir os manifestantes, resultaram em actos de grosseria. Qualquer polícia para ser respeitada, tem de dar-se ao respeito, respeitando as atitudes do cidadão desde que sejam legais. A manifestação estava autorizada. Independentemente das discussões sobre alguns locais de passagem – que resultaram no tal nítido défice de diálogo entre as partes – é altamente provocatório deterem-se organizadores do protesto e, também à força, separarem-se os manifestantes com gradeamentos e cordões policiais. Imagine-se o que seria com cidadãos extremistas, violentos e em muito maior número.

Os manifestantes não empunhavam armas de fogo nem coqueteiles molotov nem facas nem canivetes nem varapaus nem fisgas. E havia mulheres que empunhavam flores. Somente as vozes gritavam, legalmente, sobre a vida que não corre bem a boa parte do povo de Macau. Circunstância que não é novidade, apesar de ouvir falar das fabulosas fortunas arrecadadas na região por privados e, consequentemente, pelo orçamento oficial. Se a força policial, por algum instante, sentiu necessidade de fazer actuar um plano de emergência, esse plano terá sido mal escolhido ou então mal interpretado no terreno.

Já foi condenado, ao mais alto nível da administração da RAEM, o acto, de aparência esquizofrénica e afirmadamente não autorizado, de um agente disparar meia dúzia de tiros reais para o ar, com o perigo de serem atingidas pessoas debruçadas imediatamente por cima, numa passadeira aérea para peões. Como contraponto inevitável, lá vieram afirmações oficiais (que toda a gente compreende) louvando o comportamento policial durante a manifestação. Macau gosta mesmo de dar a imagem de terra de equilíbrios. Mais do que terra harmoniosa, pelos vistos.

Os policiais são seres humanos e muitas vezes a vida também não lhes correrá lá muito bem. Devem eles saber, tal como devem saber os governantes, que, mesmo circunstancialmente, existe uma coisa que se chama desespero humano. Desespero que vem da esperança que passou a dúvida que passou a desilusão. Mais tarde ou mais cedo as pessoas podem ter motivos de descrença. Então irritam-se, desesperam e manifestam-se. Sejam 6, 600 ou 6000. E a RAEM não precisa deste tipo de manifestações para provar ao mundo que, como prometido, vive, a prazo, no tal “2º Sistema”. Estes protestos, em Macau, provam nada. Como se sabe, na China continental registam-se manifestações muito maiores e muito mais violentas.

No 1º de Maio deste ano – que foi o 1º desmaio oficial (felizmente socorrido a tempo pelo próprio chefe do executivo, pessoa que desejará tudo menos atitudes destas), os manifestantes não protestaram contra o regime legal instituído. Protestaram contra a falta de se realizarem, em todos os sectores, políticas efectivamente a favor do equilíbrio social.
(In Hoje Macau)



O correspondente em Macau

Isto cresce. Hoje, um outro colaborador. Não digo novo, porque o Hélder Fernando já não é propriamente um júnior. Também ainda não chegou a velhadas como eu. É um sénior, diga-se, moçambicano que aterrou em Macau já lá vão uns largos anos, depois de passagem abreviada por esta nesga de terra banhada pelo Atlântico.

Chegou e ficou. Nesta altura, já tem os olhos mais em bico do que muitos amarelos. Ninguém o tira de lá. É jornalista, já fez de tudo, jornais, revistas, televisão, rádio. É, porem. Nesta última que diz sentir-se mais à vontade. Não creio que o novo elemento, desde já correspondente da Travessa na RAEM, precise de o dizer. A sua voz já encantava as gentes da antiga colónia portuguesa na costa oriental de África. Por onde passou, assim aconteceu. E pronto.

Aqui neste blogue faltar-lhe-á o microfone. Pelo menos, por enquanto. Mas as suas prosas, essas, começam hoje, ainda que, para já, em transcrição do jornal Hoje Macau a quem agradeço a autorização que me teria dado – se eu lha tivesse pedido. O que devia obrigatoriamente ter feito – mas não fiz. Sou, continuo a ser, um iconoclasta.

O Hélder vai mesmo – ele o prometeu – passar a ter nesta casa que também é dele textos originais. Num blogue onde Macau tem sido objecto de bastantes e diversas abordagens, as suas prosas são muito bem vindas. Pelo conhecimento de décadas que tem daquela Região, pelo pendor orientalista que possui, pelo simples facto de, para alem de Amigo, ser um Jornalista com caixa alta. Cá estamos, ó Hélder Fernando.
A.F.