terça-feira, outubro 30, 2007




HISTÓRIAS DA PJ

Coincidências ...

José Augusto Garcia Marques
Costumo dizer que não acredito em coincidências. No entanto, a vida profissional, designadamente, o tempo passado na PJ, proporcionou-me, por vezes, a demonstração de que as “coincidências” existem. Uma noite, a minha Mulher recebeu, em nossa casa, um telefonema do padre N .... Tratava-se de um Sacerdote, antigo colega dela da Faculdade de Letras, que, tendo conhecimento de que eu trabalhava na Polícia Judiciária, lhe expôs o caso que passo a relatar em resumo.

Uma senhora, de seu nome Isabel, amiga e paroquiana do referido sacerdote, travara, há alguns meses, conhecimento com um indivíduo que se encontrava em cumprimento de pena no estabelecimento prisional de Paços de Ferreira. Na tentativa de lhe prestar algum acompanhamento espiritual, começara a corresponder-se com ele. Depois da troca de algumas cartas, e a pedido insistente do preso, chegaram ao conhecimento pessoal. O detido começou então a pedir-lhe pequenas quantias em dinheiro, para fins diversos – normalmente, segundo dizia, para gastar em saídas precárias, tendo em vista a preparação de condições para uma reintegração na sociedade, como elemento útil e sério que se propunha vir a ser.

Aproveitando algumas dessas saídas precárias, marcaram encontros e passeios, continuando a Senhora a prestar ajuda económica ao seu protegido, que não deixava de lha solicitar, com os mais variados pretextos. A relação entre ambos foi-se estreitando, tendo passado a tratar-se com maior intimidade à medida que o afecto recíproco parecia ir crescendo.



Um belo dia, já em liberdade, o referido indivíduo teria mesmo proposto casamento à Isabel, a qual, algo desconfiada da fartura, tratou de recolher elementos mais detalhados acerca do passado prisional do pretendente. Constatou, então, que se tratava de um burlão com casos semelhantes no currículo. Era um sedutor encartado, especialista em “promessas de casamento”. A minha Mulher pediu ao seu interlocutor, como normalmente fazia, as “coordenadas” do “cavalheiro” – designadamente, o nome, idade aproximada, aspecto físico ou sinais característicos, dados que o sacerdote lhe transmitiu.

Acabada a conversa telefónica, veio então para o escritório, onde eu estava a trabalhar, e contou-me o que se tinha passado. Disse-me que se tratava de um indivíduo com idade compreendida entre os trinta e cinco e os quarenta anos, com bom aspecto, chamado Valentim Gregório Moreira. Nessa altura, interrompi-a, dizendo-lhe que esse era o nome de um funcionário da PJ, mais concretamente, do Laboratório de Polícia Científica (LPC), onde era tido como uma unidade exemplar.


A minha Mulher retorquiu-me que não podia ser, uma vez que o burlão referenciado tinha estado em cumprimento de pena até há pouco tempo. E que, além disso, era portador de um sinal característico: tinha um defeito numa perna, que o fazia coxear. Ao que, cada vez mais surpreendido, lhe disse que também o Valentim Gregório Moreira do LPC coxeava, aliás, de forma notória. Como é natural, pensei na possibilidade de usurpação de identidade por parte do burlão, o qual, eventualmente, pretenderia fazer-se passar por um homem de bem, portador de uma deficiência física semelhante à sua, de mais a mais, funcionário da PJ.

No dia seguinte de manhã contei o sucedido ao meu saudoso Colega e Amigo Dr. Eduardo Baptista, que logo me disse que já tinha ouvido falar num indivíduo com cadastro, de nome Valentim Gregório Moreira, facto que, tanto quanto sabia, era já do conhecimento do “nosso” Valentim Gregório Moreira. Manifestei a minha estranheza pela circunstância de poder dar-se a coincidência de existirem duas pessoas com o mesmo nome, sendo que não se tratava de um nome comum ou frequente. Na verdade, temos de convir que, designadamente, “Valentim” e “Gregório” não são nomes muito correntes. Então, a combinação dos três nomes é muito invulgar. Acrescendo a circunstância de ambos coxearem.

Chamei o Senhor Valentim Gregório Moreira que me confirmou ter já conhecimento da existência daquele tão inconveniente “homónimo”, que, no entanto, não conhecia pessoalmente. Sabia, porém, que era um delinquente cujo modus operandi preferido consistia na burla mediante “promessas de casamento”. Mais se constatou que o nome era, efectivamente, autêntico. Tivemos oportunidade de o confirmar, ao compulsar o registo existente no ACRI, que nos deu uma panorâmica do passado do indivíduo em matéria de delinquência.

Tratava-se de uma coincidência mais, a comprovar que, no trabalho de investigação criminal, não se pode recusar a priori qualquer pista, por mais disparatada, improvável ou, até, inverosímil que possa parecer. Lembrei-me do caso “Roy Hood” e da confusão dos “James”, que já relatei neste blogue. O mais curioso é que a história teve desenvolvimentos a breve trecho.

Numa noite, encontrando-se o Eduardo Baptista de passagem pelo Piquete - o que era prática frequente -, o telefone tocou. Do outro lado da linha, uma Senhora queixava-se de ter sido burlada pelo método da “promessa de casamento”. Esclareceu que tinha um encontro marcado, no Príncipe Real, para dali a uma hora, com o indivíduo que a defraudara e pretendia que a Polícia actuasse. Algo displicentemente – o trabalho de piquete era muito intenso e árduo e podia ocorrer a participação de crimes de maior gravidade a suscitarem necessidade de intervenção imediata -, o agente de serviço pediu os elementos de identificação do suspeito.

Ouviu o nome, que repetiu em voz alta: Valentim Gregório Moreira. O Eduardo Baptista, que ouvia a conversa um tanto distraído, deu ordens imediatas para que dois funcionários do piquete se deslocassem ao sítio do encontro e o conduzissem, sob detenção, à Polícia. E logo se organizou o esquema para a acção. Com a colaboração da queixosa, o Valentim foi detido em flagrante, no exacto momento em que recebia das mãos da vítima mais uma vultosa quantia em dinheiro.

Quando, dali a algum tempo, pretendendo ostentar o ar mais inocente do mundo, bem vestido e bem falante, a coxear levemente, entrou nas instalações do Piquete, exibindo o aspecto de cidadão exemplar, vítima de um lamentável engano policial, foi confrontado pelo Eduardo Baptista com dados detalhados e precisos acerca da sua pessoa e da sua actividade criminosa passada. O homem ficou siderado. A sua postura simpática de burlão caiu por terra. Nunca pela cabeça lhe passara que a PJ soubesse tanto acerca da sua vida de delinquente.
A coincidência do nome – se alguma vez lhe pôde ser útil -, foi-lhe, naquele caso, negativa e prejudicial, levando-o de novo ao cumprimento de pena num estabelecimento prisional.

NOTA: Como é de regra, nestas histórias reais da PJ, é fictício o nome dado ao autor dos delitos. Posso, porém, afiançar que o nome autêntico – dele e do funcionário do LPC – era, pelo menos, tão invulgar como o que foi utilizado.

segunda-feira, outubro 29, 2007




A casa da sogra não se quer tão perto que ela possa vir de chinelos, nem tão longe que ela queira vir de malas.

(Mais uma colaboração do Luis Melo Torres, Amigão e sportinguista, malgré tout)



À RODA DOS DIAS

Outubro

Maria Lúcia Garcia Marques
Outubro sempre foi, e ainda é, para mim, o começo de um outro calendário pelo qual regi a minha vida desde tamaninha, por anos a fio: o calendário escolar. Encastrado no calendário “civil”, estoutro começava inapelavelmente a 1 de Outubro e seguia, ao sabor das exigências do estudo e dos apertos da sorte, até fins de Julho, entrecortado por Natáis, Páscoas e Entrudos até ao bonançoso interregno das Férias Grandes – na verdade tão grandes que chegavam a cansar. Outubro era/é assim, na minha cabeça, um mês de arranque de olhos postos num futuro de projectos e compromissos: os estudos, uma carreira, uma vida – e, por décadas, definitivamente, o mês da ESCOLA.

“Ler, escrever e contar”, tal qual o ideário republicano que, não sei se por acaso ou destino se implantou em Portugal precisamente em... Outubro (a cinco de mil nove e dez). Pessoalmente a minha queda foi para o ler e escrever e ainda hoje a língua me fascina. Porque ela engendra e simultaneamente dá expressão a uma visão do mundo, diz e escreve a cada momento uma fatia da história de todos e cada um, porque é matéria e material nobre do pensamento e da arte.

A vida veste-se de palavras e tem uma “gramática” para se entender. Mas a Gramática parece ser uma coisa malquista e malvista, maugrado se lhe reconheça a importância matricial. Lá dizia Camilo Castelo Branco num dos seus romances: “Cachoavam-lhe as ideias no cérebro mas sentia-se sem gramática”. Saber usá-la é um bom cartão de visita e quem, por exemplo, ler o “Longe de Manaus” do Francisco José Viegas lá verá o que se diz dela como mais valia e préstimo diferenciador: “E (o Senhor Furtado) tinha uma coisa rara, Inspector: tinha boa gramática. Isso espanta-me muito hoje em dia. Aparecer alguém que diga uma frase com sujeito, predicado e complemento directo já é uma sorte, mas o Senhor Furtado tinha mais do que isso. Era um homem com advérbios. Era sorte demais!”.

No entanto, nem sempre a gramática é sisuda, pode até ser engraçada nas partidas que nos prega. Ora oiçam estas: Um amigo juiz vinha sendo insistentemente solicitado pelo seu encarregado de negócios para que permitisse a substituição da velha porta de entrada da sua casa de família, lá para as Beiras. Meu amigo, temendo eventuais liberalidades do seu encarregado, recomendou-lhe em carta: “Pode tratar da porta nova mas olhe que não seja coisa de luxo nem capricho”. Na volta do correio, recebeu a seguinte informação: “Saiba o Senhor Dr. Juiz que já tratei da porta nova que não foi de luxo nem capricho mas sim de alumínio”. (Se eu quisesse tirar a graça à história diria que ela reside na incompatibilidade criada na classe dos substantivos ...!).


E outra que se passou comigo: Ia eu com um amigo de infância, rua fora, quando nos cruzámos com uma daquelas “brasas” que põem sempre os homens a olhar em U: saia sugestivamente mini, bota alta de salto fino e arrojado. Notando o indisfarçável interesse com que o meu amigo a seguira com o olhar, desdenhei: “Bah! É só bota!”. Ao que ele retorquiu: “Nah! ... É mas é coxa!”. Aí, na crueldade que as mulheres, sempre que podem, têm para quem as supera neste campo, rejubilei interiormente: “Bem feito, é coxa!”. Só então reparei que pelo tom em que fora dito o “coxa” na fala do meu amigo, não se tratava de um adjectivo mas de um substantivo e um substantivo cheio de sugestões ...

Na verdade, a língua portuguesa é mesmo muito traiçoeira! Mas a nossa língua é a nossa casa, é a nossa prova de vida. Com ela praguejamos, com ela rezamos, com ela pomos o coração ao pé da boca. Ela é apropriação e câmbio; é uso e fruto feitos de amor e estudo. E estudo tem tudo a ver com este mês vestibular que é Outubro e que a cada ano se abre como um livro novo em que estão escritas as páginas do Futuro que re-começamos a ler.

domingo, outubro 28, 2007

REGISTO

Eça agora



Antunes Ferreira
F
inalmente – os bons malandros, que me perdoe o Mário Zambujal, são sete, incluindo ele. Que é uma espécie, rara aliás, de clone, autor e conversador, sem par, melhor, um par que é um verdadeiro pague um e leve dois. Mas, esqueçam-se os paradoxos, os óbices, as excrescências e as dialécticas, mesmo os obnubilados e entre-se no âmago mais recôndito da ocorrência. Nota: não sei bem o que quis dizer e, pior, escrever, mas lá que é bonito, é. Narcisismo à parte.

Escritores de todos os Mundos: aos abrigos! Veja-se o que estes sete fizeram ao Eça, ao Ramalho, ao Dan Brown e agravada e novamente ao Senhor do monóculo e bigodaça encerada. Trata-se, se assim o quisermos entender, de uma cabala, assim mesmo com b e sem lata, contra os autores citados. Está-se perante uma associação sabe-se lá de quê, malfeitores é demais, querubins de pouco.

Já o escrevi e aqui recaio, miserável e desavergonhadamente: Alice Vieira, João Aguiar, José Fanha, José Jorge Letria, Luísa Beltrão, o já citado Mário Zambujal e Rosa Lobato de Faria, vindos de Sintra e de Avintes, voltaram a atacar. Eça agora! Pois, assim mesmo, Eça agora. Diz Rosa Lobato de Faria que «o título também deu mil voltas e, um repente de Mário Zambujal, surgiu como uma evidência….». Pudera, não, nos head lines o Mário é um alho! Eu que o diga, dos tempos do DN.

Ora pronto. A Oficina do Livro, também reincidente, deu à estampa este Eça agora em que os herdeiros doa Maias usam telemóvel, computador e outras modernices, mas repetem os comportamentos queirosianos, num tempo que é o nosso. Mais um deslumbramento, mais uma noite de vela sem, porque a electricidade já foi inventada. Ou será confirmada?

Primoroso. Poderia utilizar mais adjectivos (creio que ainda posso dizer assim, mas com essas coisas do tlebs nunca se sabe) mas não seriam mais do que paupérrimos despiciendos. E os sete malandros, dos quais cinco meus bons amigos e quatro meus companheiros do Notícias, não merecem que assim os trate. Porque, meus amigos, para além de serem sete os dias da semana, outros sete há que já atingiram o santo dos santos.

É a menorah, o candelabro judaico de sete braços, que Jeová mostrou a Moisés no Sinai e ficou no Tabernáculo como símbolo dos Judeus. São os sete castelos dourados que se encontram na bandeira nacional, implantados no escudo grande e que representam as sete cidades que D. Afonso III conquistou aos mouros. Mas, há mais.

Sete são os símbolos que, invocados, representam o poder: a Espada, a Verga, o Cálice, a Balança, o Candelabro, a Esfera e o Raio Paterno da Cruz. Sete ainda são os deuses nipónicos da sorte, do Xintoísmo. Rentena, Beshamon, Daikoku, Ebsiu, Fukrokuju, Hotei e Jurojin. Que me perdoem os Japoneses se por acaso ou ignorância não os escrevi correctamente.

Porem, os Sete do Eça agora são muito, mas mesmo muito, melhores. Na escrita, nas ideias, na loucura. Muito obrigado por me terem proporcionado esta obra. Diria até, plagiando os meus netos - são bué de fixes.

sexta-feira, outubro 26, 2007

Amor aos noventa anos



Sebastião Reineta tinha 95 anos quando faleceu. Coisa triste, velório concorrido, o Chefe de Repartição de Finanças - evidentemente aposentado – era muito conhecido, estimado, considerado e mesmo querido em Travanca de Baixo, onde vivia com a companheira de toda a vida, a Dona Quitéria, que já atingira as 90 primaveras. Uma casita para o pequenino, com um mini-jardim na frente e uma hipótese de quintal nas traseiras.

Todas as manhãs era vê-lo, desempenado e bem disposto, arrancando os dentes de leão que invadiam os canteiros minúsculos e sugavam as rosas, os malmequeres, as ervilhas de cheiro, as dálias que eles davam – mas que não davam por obra da danada erva daninha. Reineta, apesar da sua provecta idade, de sachola e bomba manual de zinco para o DDT, arremetia contra o infame que dentava as suas flores.

Dona Quitéria encarregava-se do quintaleco. Plantava couves tronchudas, umas batatas, uns grelos, feijão verde, um rego de nabiças e hortelã. Também cuidava desveladamente de manjericos que habitavam em vasos de barro. Nada de modernices plásticas a que o neto Camilo chamava ersatezes, o que ela não entendia, pronto.

Cinco filhos, duas filhas, vinte e nove netos e seis bisnetos. Uma das raparigas fora para freira, donde apenas seis, com a colaboração prestimosa, veneradora e obrigada, dos respectivos cônjuges, tinham produzido essa filharada. Camilo era o neto mais velho, licenciado em Direito, com escritório na sede do concelho, coisa fina, boa freguesia e melhores rendimentos.

Muito chorado foi o Senhor Chefe de Repartição de Finanças, toda a gente o conhecia independentemente das diferenças geografias e de humores entre a Travanca de Cima e a de Baixo. Localidades a preceito, até se dizia que apareciam na televisão, naquele anúncio do detergente melhor do Mundo, carregado de frigideiras para fazer arroz à valenciana, e que, afinal, como quase tudo neste País, era feito em Espanha. O que não abonava os que juravam a pés juntos que era travancano.

Funeral devidamente concluído, a urna estava um brinquinho, os lençóis bordados, a almofada de cetim, os círios, as coroas e os ramos de flores, tudo nos conformes. De toda a parafernália avultou a missa e a encomendação do fiel defunto, a cargo do Padre Conchinhas, que raio de nome haviam posto ao sacerdote na pia baptismal.

Dias depois, Camilo foi fazer uma visita de pêsames à sua avó. Na salinha de estar, Dona Quitéria continua lavada em lágrimas e enxameada de suspiros. Não quisera ir para casa de nenhum dos descendentes, recolhera-se ao lar de uma vida, a vizinha Ermelinda sempre dava uma ajuda desinteressada e uns caldinhos de galinha com massinha de cotovelos.

O advogado deitou unhas à tarefa de consolar, na medida do possível, a avó. Bem necessário era, tinha de lhe enxugar as lágrimas, de lhe afagar as mãos frias e ossudas. Estava no estrangeiro, não chegava a tempo das exéquias, não veio. Daí que, apenas desembarcado do avião, avisasse os seus e rumasse à casinha dela.

Passaram muitos minutos, os suficientes para Dona Quitéria ir acalmando os soluços e os nervos, com a presença do neto e a ajuda das contas do rosário que ele lhe tinha trazido, dois anos atrás, de Roma. Benzido pelo Papa. Ou, pelo menos, era o que o dono da loja de lembranças dissera e constava de atestado com o selo de lacre da Santa Sé.

Assim, quando a viu mais calma, Camilo avançou com a pergunta que trazia engatilhada, pois lhe tinham dito que o Senhor Reineta se passar de forma um tanto esquisita. «A avó desculpe esta minha pergunta, não quero fazê-la sofrer mais, mas, de que morreu o avô?»

«Olha meu filho, não digas a ninguém, mas o meu Sebastião que Deus tenha na sua glória e esplendor, morreu quando estávamos a fazer amor», confessou em surdina a pobre Senhora com o ar mais desanimado possível e imaginável. O jurista, espantado, podia lá ser, a avó treslia, estava taralhouca, ficara absolutamente xexé com a perda do seu homem de uma vida.

«Mas, avó, as pessoas de 90 anos ou mais, não deviam fazer amor porque é muito perigoso». Dúvidas houvesse e visse-se o caso vertente. Ao que a avó lhe respondeu que já só o faziam ao domingo, de há cinco anos a essa parte, e com muita calma, ao compasso das badaladas do sino da Igreja que era próxima. E continuou: «Simples. Era ding para o meter e dong para o tirar»... E, num repente: « Se não fosse o filho da puta do homem dos gelados com o seu sininho... o teu avô ainda estaria vivo!»

(Estória que me foi passada por mail e que enroupei. Mania esta de escrever. Pensando bem, talvez tivesse ficado melhor na versão original, despida de arrebiques. Mas, agora, já está).
Antunes Ferreira

quinta-feira, outubro 25, 2007

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Mãe sem braços


Enviei aos meus caros (e numerosos) Amigos e correspondentes um documento impressionante. É um vídeo sobre uma jovem Mãe sem braços cuidando do seu filho. Eu não tenho pejo em confessar que me chegaram lágrimas aos olhos quando o vi. E é a segunda vez que o recebi – e é a segunda vez que o enviei. Aquela Mãe é um monumento à força de vontade. Digam-me aqui, depois de o verem, naturalmente, o que pensam deste espantoso e maravilhoso e deslumbrante registo.
Muito obrigado.
Antunes Ferreira

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terça-feira, outubro 23, 2007

Castanhas da índia




Marina Dinis
Há mais de vinte cinco anos que conheço ambas. Somos colegas de profissão e estudámos na mesma faculdade, todavia durante uns anos perdi-lhes o rasto, tendo vindo a encontrá-las mais tarde quando, por circunstancias do acaso e na sequência dos diversos concursos inerentes à nossa profissão, voltamos a trabalhar juntos nos edifícios deste parque.

Trata-se de um caso muito especial e a meu ver, algo inédito: duas mulheres adultas com uma amizade sólida desde, segundo as próprias se orgulham de afirmar, há mais de vinte anos. Não quero ser mal interpretado mas desde há alguns anos que me dá imenso prazer observá-las. Divertem-se com as coisas mais simples e falam entre si, incessantemente. Para quem como eu as observa com cuidado, não se pode deixar de ter alguma inveja no gozo quase infantil que colocam nas situações do quotidiano.

Por vezes surpreendo-me desejando que se zanguem pois a sua alegria é tão efusiva que me enraivece. Lamento ter passado já mais de metade da minha vida e ter gorado manter com alguém uma amizade assim. Ambas muito diferentes, raramente cedem uma à outra, mas segundo me têm já dito “ negoceiam-se as divergências e cada uma fica na sua...haja respeito!” . Respeito e independência pois é incontestável que ambas são ferozmente independentes e muito senhoras do seu nariz. Aliás, a sua teimosia ou persistência é lendária e exasperante para todos nós.

Hoje encontro-me dentro do meu carro ao final da tarde no parque, fazendo tempo para ir buscar o meu filho a uma festa, quando as vejo ao longe virarem a esquina vindas dos pavilhões. Deslizo um pouco para baixo para que não me vejam e fico a observá-las. O que farão aqui a esta hora?

Caminham devagar, falando sempre. De repente param e a loira vira-se para a morena e gesticula acintosamente enquanto esta baixa os olhos e arrasta um pé pela relva. Subitamente a morena larga uma gargalhada sonora e feroz e contorcem-se ambas a rir de tal forma que dou comigo também a rir sem saber porquê. Passa um carro e ambas acenam um adeus sem por isso pararem de rir. Que fará com que estas mulheres sejam capazes de tanto prazer tirar da vida depois de uma semana de trabalho árduo, diariamente confrontadas com tanta miséria humana, frustração e cansaço?

Passam mais alguns minutos até que a morena começa a vasculhar insistentemente na sua mala enquanto continua a falar. A loira vira-lhe as costas deixando-a no meio da rua a falar sozinha enquanto se dirige para o relvado e olhando atentamente para o chão, começa a apanhar algo que não consigo identificar. A amiga vem juntar-se-lhe e coloca-se de cócoras sobre o relvado apanhando algo para dentro de um saco de plástico que acabou de retirar da mala. Ficam nesta actividade pelo menos mais quinze minutos e entretanto eu vou ardendo de curiosidade.

Uma vez por outra a loira, mais prudente, olha à sua volta verificando se estão a ser observadas, mas eu estou suficientemente longe para que não se aperceba da minha presença. Sem aviso, a morena perde o equilíbrio e rebola sobre o relvado levando ambas a contorcerem-se novamente de riso. Acabam ambas por se sentar no banco do jardim à beira da estrada, entretidas com os objectos da sua colheita. Eu não resisto mais. Ponho o carro a trabalhar e conduzo até ao local onde ainda se encontram a rir e a falar, dividindo entre si o que aparentam ser castanhas.

(Mulheres - Picasso)

“O
lá meninas, então que pouca vergonha vem a ser esta, já fora da hora de trabalho?” Explicam-me que uma está de chamada a urgências internas enquanto a outra lhe faz companhia por solidariedade. Quando lhes pergunto o que andam a apanhar na relva a morena pendura-se na janela do meu carro e apresenta-me quatro castanhas dizendo: “Toma lá invejoso. Quatro castanhas da índia. Sabes para que servem?” Devo ter feito uma expressão de desconcerto pois passaram ambas a falar ao mesmo tempo explicando-me as variadas utilidades e virtudes das tais castanhas da índia.

Nada me apetecia mais neste momento do que ficar sentado no banco do jardim entre as duas. Estão tão bem com o mundo e movem-se ambas com serenidade e uma certa languidez de fim de tarde que a mim me faz parecer que por aqui o tempo não passa. Mas tenho compromissos a que não posso faltar e sobretudo sei que estou de fora desta cumplicidade. Ao afastar-me olho pelo retrovisor observo-as dizendo-me adeus e balouçando os pés no banco de jardim e parece-me que uma delas usa umas meias com uns porcos cor-de-rosa. Deve ser engano meu.

Que nunca me levem a mal, mas passarei anos a observá-las sempre que essa oportunidade surgir e manterei as castanhas da índia, não pelos seus poderes e utilidade mas para me lembrar de quem mas deu .

sexta-feira, outubro 19, 2007



Lisboa reentra na História

Porreiro, pá!

Antunes Ferreira
F
inalmente, eis o Tratado Reformador, tão esperado, tão ansiado, tão desejado. E que volta a colocar um nome de Portugal na História da Europa, mas também na universal. É que o documento chama-se Tratado de Lisboa. Com ele ultrapassou-se um impasse que abalou a União Europeia e – porque não dizê-lo – a pôs perigosamente em risco.

Os chefes de Estado e de Governo da União Europeia (UE) chegaram, já na madrugada de hoje, em Lisboa, a um acordo histórico sobre o novo Tratado Europeu. Este irá substituir a fracassada Constituição Europeia, que foi rejeitada em referendos na França e na Holanda, em 2005, o que esteva na base de uma das piores crises políticas e institucionais da UE.

O consenso sobre o Tratado de Lisboa foi obtido depois das exigências polaca e italiana terem sido satisfeitas. E aqui não se pode ignorar o papel da Presidência Portuguesa. As diligências feitas e as propostas para solução de pontos quentes deveram-se, assim, ao Executivo de José Sócrates, com um relevo muito especial para o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado. Quando terminou a conferência de Imprensa em que Sócrates e Barroso deram conhecimento oficial do termo dos trabalhos, os dois abraçaram-se fortemente. E o primeiro-ministro disse ao presidente da CE. «Porreiro, pá!». Só que os microfones estavam ligados...

Face à posição de Varsóvia, os líderes europeus chegaram a acordo sobre o reforço jurídico e político da chamada «cláusula de loannina», um mecanismo de emergência que permite, em certas situações, a suspensão de uma decisão comunitária, mesmo que esta tenha sido aprovada por uma maioria suficiente de Estados-membros. Os líderes da UE concordaram também com a criação de três lugares permanentes de advogados-gerais do Tribunal de Justiça Europeu, que se juntam aos cinco já existentes, e com a atribuição automática de um dos lugares à Polónia.

Em relação a Itália, a Cimeira de Lisboa concordou com a proposta da presidência portuguesa para que seja atribuído mais um lugar de eurodeputado a Itália - que passa de 72 para 73 -, o que permite ao país manter a igualdade com o Reino Unido, apesar de ainda não ter o mesmo número de deputados que a França. Para tal, o número dos presentes no hemiciclo europeu passa de 750 para 751. Porém os deputados continuarão a ser 750, já que o Presidente do Parlamento ficará fora do número. Um verdadeiro desenrascanso tão característico dos Portugueses. A habilidade já foi reconhecida pelos participantes. Nós, por cá, chamamos-lhe jeitinho...


Socorro-me da Lusa que, uma vez mais, teve uma actuação irrepreensível. De acordo com a agência, o primeiro-ministro português sublinhou, já hoje de manhã, que o Tratado de Lisboa «vira uma página na história europeia» com a União agora «mais forte, confiante e preparada» para responder aos desafios que se colocam, nomeadamente o da globalização dos mercados. «Já tínhamos a Estratégia de Lisboa e agora temos o Tratado de Lisboa», realçou José Sócrates, acrescentando que «todos os líderes europeus estão satisfeitos» sendo a capital portuguesa «um porto seguro para a Europa».

«Nasceu hoje o novo Tratado de Lisboa. É uma vitória da Europa», afirmou também, acrescentando que o novo Tratado permite à UE «vencer a sua crise institucional, dando um importante passo para a sua afirmação». Deste modo, «a Europa sai mais forte para assumir o seu papel no mundo e resolver os problemas da economia e dos seus cidadãos», disse ainda Sócrates, e acrescentou ainda que «com este acordo e com o novo Tratado, o projecto europeu está em desenvolvimento e a Europa pode agora olhar com confiança para o seu futuro».

«A presidência portuguesa cumpriu o seu plano: discutir e aprovar o Tratado na quinta-feira e na sexta-feira começar a discutir os assuntos importantes para o futuro da EU», concluiu José Sócrates. Durão Barroso, por seu turno, enfatizou que «depois temos de olhar para a ratificação», referindo que será preciso «trabalhar com os Estados-membros para comunicar às populações» que as mudanças nas instituições europeias servem o seu bem-estar. Isto porque «os cidadãos querem resultados, querem que a UE traga benefícios à sua vida quotidiana».

O antigo primeiro-ministro português - a quem muitos acusam de ter fugido para Bruxelas - sublinhou que a UE discutia há anos as questões institucionais e felicitou José Sócrates e a equipa da presidência portuguesa pelo acordo alcançado ao início da madrugada de hoje. Barroso lembrou que «na presidência alemã chegou-se a um acordo» sobre o essencial do tratado, mas saudou a «determinação e competência da presidência portuguesa», que levou a que concluísse esse processo e se agendasse a assinatura formal do documento para 13 de Dezembro.

«Disse que acreditava que era possível, que desta vez não havia razões, não havia desculpas para não se chegar a acordo», recordou o presidente da Comissão Europeia que ainda se declarou «pessoalmente muito contente por o acordo ter sido alcançado em Lisboa».

Tout est bien ce qui fini bien, dizem os Franceses e muitos concordam com eles, incluindo eu próprio. Este final é, porem, apenas o término de uma etapa, quiçá a mais importante da nova Europa a 27. Outras se lhe seguem, a começar já, e como se viu, pela assinatura, a 13 de Dezembro e aqui em Lisboa, do novo Tratado.


Fico-me com uma ideia, cuja concretização parece felizmente já estar a caminho. O cenário dessa assinatura, ela também histórica, pode muito bem ser os claustros dos Jerónimos. Naturalmente com a presença do pai da adesão portuguesa à então CEE, Mário Soares. Nada mais justo. O seu a seu dono. Ou melhor, o seu a quem o merece. E Soares merece-o.

(Fotos do «Expresso»)

terça-feira, outubro 16, 2007

Comoção as coisas

Braz Ferreira
O vento fresco do capim elefante (gigante) faz parecer a condução em estradas zambianas menos dificil. Os 32 graus aquecidos pelo calor reflectido pelo asfalto por vezes nos adormecem fazendo-nos esquecer as regras de trânsito. Sem prestar atenção no painel do carro, dirigia olhando as palancas à beira da estrada, que por sua vez tambem me olhavam curiosas. Tudo me levava a crer que a tarde ia acabar como tinha começado, tranquilamente nos tons vermelhos e laranja deixados pelo Sol preparado para se despedir até ao dia seguinte. E foi nesta tranquilidade que vi de imediato porque as palancas me olhavam.

Só tive tempo de ver uma especie de poste eléctrico mandando parar o carro que dirigia.
Um representante da lei, magro como uma espiga de trigo minguada pelo calor alentejano, me convidou a estacionar o veiculo. As calças eram agitadas pela corrente de ar provocada pela passagem dos automotores. Acredito que ele e a comida ha muito tempo deveriam ter cortado relações. A magreza era tanta que até me arrependi de não ir a 150 à hora. O cara tinha voado sem ler o mostrador do radar.


Mas como não o tinha feito, parei o carro e fui descendo em direcção do controlador do tráfico. Dois olhos enormes me olharam, tal como as palancas, com curiosidade. Foi neste preciso momento que me lembrei, não sei porquê, do velho ditado....tem mais olhos que barriga. O agente, colega do Bucha dos anos 50, tinha um quépi que mais parecia uma antena de televisão. Grande, enorme, gigantesco demais. Se o portador tivesse que dar meia volta o quépi ficaria no mesmo lugar. Por debaixo dele as duas orelhas tentavam vislumbrar o cenário que as rodeava. E ainda bem que elas lá se encontravam, senão o boné impediria o pressuposto a cumprir a sua missão, pois os olhos tampados pelo dito cujo não poderiam ler o painel do radar.

Ao aproximar-me, o representante da lei, com um ar sério, bateu-me uma continência. As mãos cobertas por luvas brancas mostravam uma rigidez militar. De imediato perguntei porque tinha sido parado. Deve-se ter picado pois gritou “High speed” - Excesso de velocidade... Neste troço só pode transitar a 65 e ia a 75. Pronto 10 km a mais.

Perguntei ao individuo, como se poderia resolver o problema amigavelmente. A cara de poucos amigos, quase tampada pelo quépi, (as orelhas estavam lá desempenhando a sua função) mostrava quase uma vontade de ferro de não querer entrar em negociatas.
O quase é importante neste cenário. Dando meia volta, o agente mas não o quépi, indicou-me uma viatura parada debaixo de uma mangueira. Sombrinha convidadora. No tal carro apercebi duas cabeças, mas nenhuma sentença.

Quando ia chegando mais perto pude na realidade verificar que um agente e uma agente estavam descançando dos problemas e fadigas do dia anterior. Já bem perto do veiculo, o agente abriu um olho, abriu a porta, abriu o bolso da camisa para pegar uma caneta e abriu um livro de contravenções. Era a operação portas abertas da policia zambiana. A agente feminina, ela sem abrir os olhos, continuava a sonhar em alta velocidade. Se o seu colega apontasse o detector de velocidade na sua direcção ela seria multada com certeza.

O seu colega começou a activar a esferográfica, com uns estalidos quase musicais. Fazia de conta que ia começar a preencher o livro de multas. Sem me olhar informou-me que o excesso de 10 km/hora eram só 67500 kwachas, isto é 17 dólares americanos. Observando esta encenação, digna de um Spilberg em época de ET, fui logo informando de que não precisava de papel algum. O representante honesto da lei, desta vez olhou para mim sizudo. Sem deixar o tempo de ele pensar, disse-lhe que não tinha essa quantia (nem prima diga-se de passagem).

Em uma fracção de segundo, pois era um segundo tenente, um sorriso comecou a esboçar-se nos labios inchados e rosados do policial. Não sei porquê a policial, nesse dado momento, despertou dos sonhos da cor dos seus emblemas, dourados. Antes de meter a mão no bolso pensei umas trinta vezes (sem exagerar) e me lembrei que deveria ter uns oitenta kwachas no bolso. Como precisava de uns quarenta para por gasolina, anunciei: Quarenta kwachas ou seja 5 USD. Tal um prestigitador o policial conseguiu fazer desaparecer a caneta e o bloco de multas em fracções de segundos.

Olhei para traz e o tal poste electrico ambulante, olhava da estrada a cena da negociata. O tal segundo tenente me pediu cinquenta kwachas. Recusei pois precisava meter combustivel. Sem desviar o olhar, me apercebi de que o tal poste era o manda chuva da operação “bolsos abertos”. E lá fomos discutindo entre 50 e 40 kwachas. Num dado momento o chefão magricelas, fez um movimento aprovador com a cabeca, que quase lhe fazia cair o tal de quépi.

E pronto fechámos a negociação em quarenta kwachas. Com um sorriso lembrei ao tenente que lhe tinha feito economizar uma folha de papel. Ele sorriu tambem. Paguei e ao iniciar a volta ao meu carro, não é que a agente feminina e o segundo tenente se despedem de mim. Ela acenando a mão com as luvas brancas dizendo-me adeus, como antigamente quando em Portugal se abalava de férias. E ele batendo-me continência, a mim que nem sequer o servico militar fiz.

Passei ao lado do leitor de radar e ele tambem me acenou dizendo-me adeus.Quase que uma lágrima me corria pela face, de tão comovido que estava. Depois de meter gasolina e voltando pela mesma estrada, o poste telegráfico reconheceu-me e mais uma vez me disse adeus. Senti-me comovido. Por apenas cinco dólares... olhem comoção as coisas.

segunda-feira, outubro 15, 2007



SOMBRA DA GUERRA

Morteirada

Antunes Ferreira
E
stava na latrina quando caiu a primeira morteirada. O estrondo, que já se lhe tornara habitual, foi desta vez enorme. Agachado estava, agachado ficou, à espera de outros. Sucederam-se mais três. Nenhum lhe causara danos. Adão Francisco Mucondo sabia que haveria outro, uma norma de disparos do inimigo. E ele veio, aparentemente mais próximo, fazendo-o quase cair no buraco cheio de trampa.

Limpou-se, levantou-se, e puxou para cima as calças do camuflado. Se tivesse fugido, tê-lo-ia feito em trusses ou tê-las-ia primeiro vestido? Seria a dúvida um resquício de pudor? Para cavar, um sujeito até o podia fazer nu, como acontecera com o seu irmão Mateus, quase apanhado por marido cornudo, em pleno Marçal. O muceque tinha má fama, os moradores é que lhe faziam e dar às de vila Diogo era dia sim, dia sim.

Poça! Nestas alturas um homem não pensa nem se questiona. Agarrou a Kala que nunca abandonava e saltou para o meio do acampamento. Uns quantos buracões abriam as goelas ressumando nuvens de pó. Detritos espalhados por tudo o que era sítio e duas cubatas sumárias, de rama, ardendo. Uns camaradas jaziam no chão, aparentemente mortos. Teriam desaparecido todos? Os tugas lhes tinham descobrido.

De sob um ex telhado de folhas de palmeira saiu um gemido. Precipitou-se e levantou a ramaria. Era o Lucas Cangala, do Caxito, esvaindo-se em vermelho vivo. Guenta, rapaz, não desfaleça! A seu lado surgiu outro guerrilheiro, Francisco Silipa, do Huambo. Afinal, não era ele o único sobrevivente. Os dois ajoelhados sobre o ferido, que perdera uma perna e sangrava duma órbita vazia, pareciam entoar uma extrema-unção desesperada.

Levanta a cabeça dele, camarada, assim não sufoca, e deixa que ele morre. Garrote não pode, não tem que estancar é só ajudar nele a morrer. Adão sabia perfeitamente que era assim. Mas doía-lhe que o Lucas se fosse, bom companheiro, preto calcinhas, janota, roupa da Saratoga na Mutamba, nenhuma camisa de Macau, que rompe na segunda lavagem.

Alheados do que estava a acontecer? Olha, tem tempo pra tudo, tempo pra viver e tempo pra falecer. Os soldados devem vir pelo trilho, ainda que os nossos o tenham camuflado. Dá para assistir o Cangala nos últimos momentos e lhe acompanhar na terra já que na viagem é impossível. Ele abre muito o olho que lhe resta, dá dois esticões e já está. Bateu a bota.

Ouvem-se ainda longe sinais do inimigo. Haverá mais dos nossos salvos? Dão os dois uma volta por entre os destroços e aparentemente só eles escaparam, aiué. Então, vamos-lhes esperar. Destravam as espingardas, contam as granadas de mão. De repente passaram a falar em sussurro, boca de um encostada na orelha do outro. Adão, tem mina no caminho, foi o Cangalo que lhe pôs lá.

Não diz nada, camarada. Se tem, está boa, o Lucas era um especialista em armadilhas, fio esticado, castanho e verde, pra se confundir com o que está à volta. Não terá rebentado com os morteiros? Não, esta é das que precisa que lhe pisem pra rebentar. Boca calada, irmão, eles nem vai perceber o que lhes acontece. Depois, nós lhes damos cabo dos couros. Se não forem eles a limpar-nos o sebo.

Vêm porreiros, os militares de camuflado. Os sacanas dos turras devem ter entregado as almas sujas ao Criador, se é que as têm. Não escapou um, por certo, aquilo foi uma tempestade de obuses que dava cabo de um regimento inteiro, foi canja. Que sirva de lição aos outros gajos que por aí andam. Estes aprenderam que não podem atacar-nos de surpresa e fugir. Descobrimo-los e aqui vai disto. Puta que os pariu. Nem souberam do que lerparam.

Manuel Tomás, soldado, apontador de morteiro, é de uma terra de onde não é ninguém: Freixo de Espada à Cinta. Dizem os próprios transmontanos que, uma vez, um senhor doutor conversava, no Porto, com uns amigos. Bota pra cá, bota pra lá, segue-se que um deles, já não se sabe a propósito de quê, talvez de nada, afirmou que o que fora dito nem um gajo de Freixo de Espada à Cinta o diria. E acrescentara no meio da galhofa – isto porque não há ninguém dali.

E o senhor doutor: eu sou. Você é – de quê? De Freixo de Espada à Cinta. Olhares duvidosos, deixe-se de brincadeiras, isso nem parece de um homem da sua posição, até assistente universitário foi e anda a preparar o doutoramento. Não estou a mangar com nenhum dos senhores. Mostro-vos o meu Bilhete de Identidade, querem ver? E lá estava, atestado pelo Arquivo de Identificação de, natural de Freixo de Espada à Cinta. Emudeceram os contrincantes.

Manuel, o Zimbro, como é conhecido pela malta e até pelos superiores. Tipo pachola. O pai era ferreiro, daqueles de fornalha e ferraduras para calçar as bestas. O cachopo habituara-se, desde catraio, ao calor da forja e às marteladas nos sapatos metálicos das alimárias. E, claro, aos cravos, iguais aos que tinham sido empregues para pregar o Cristo na cruz. Só que estes usavam-se nos cascos.

Escolhera mester de metal, mais precisamente funileiro. Era o rei dos pingos nos fundos das panelas mais renitentes. A solda era para ele uma seiva que escorria, fundida, lhe percorria uma circulação em cano de chumbo e que manuseava a preceito. O ofício começava a rarear, os alumínios e os aços inox tomavam corpo e dimensão, o ferro de pingar ficava no canto da oficina. A latoaria, que o Tomás também dominava com fluência, ainda se safava. Mas.

Conversa com o Gomez, filho de espanhol e de alentejana, vivia em Olivenza ou Olivença, ao gosto do freguês, mas decidira vir às sortes a Elvas. Foi logo apurado e ele todo inchado: era português, falava e escrevia, tinha apelido a terminar em z – mas era do pai. Pero chaval, puede que te vas a la guerra colonial. Quédate con nosotros, que no pasa nada. Tu mama y yo mismo estamos muy preocupados contigo, por supuesto. ¡Vaya con Dios! Tu tranquilo. Pobre Sancho que nem pança tinha, apenas Gomez Peralta. Essa estranha mania que os castelhanos tinham de pôr o apelido do pai antes do que era o da mãe.

Pedro Gomez, o Fronteira, e Manuel Tomás, o Zimbro, tinham feito a recruta juntos. Quando iam começar a especialidade, chegaram os papeis, certidões, certificados, anotações que davam ao primeiro a equivalência dos estudos espanhóis aos portugueses. Passou para o CSM, o Curso de Sargentos Milicianos, e saiu furriel, ao passo que o transmontano se quedara pela soldadesca.

Quando isto acabar, ó Fronteira, que vais fazer? Eu, por mim, não quero voltar para o ofício, o funil vazou, não há pingo que o arranje. E tu? O hispano-luso sorria. Eu vou meter o chico, vou continuar na tropa. O pré não é mau, sobretudo aqui no Ultramar, o rancho deixa-se comer, abicham-se umas garrafitas de uísque e de gin. E a farda impressiona as muchachas. Saio sargento e mais uns anitos estou em Águeda para passar a oficial. Simples, como vês.

E vai caminhando, tranquilamente, ainda que não muito atento, como todos. Não é uma tropa fandanga, mas quase. E o Zimbro continua. Passarás a vida a saltar pela África, que Goa, Damão e Diu já foram. Podes safar-te ainda em Cabo Verde, tudo tranquilo, falaram-me dum tal Tarrafal, nem sei bem o que é. Sorte boa é ires parar a Timor, um paraíso. Mas a taluda do Natal é abancares em Macau, chinesas por todo o lado, jogo, casino, tudinho.


E não te queixas com as gueixas. Parvalhão. As gueixas são no Japão, Macau é encostado à China, foi uma oferta dum mandarim qualquer a quem nós safámos dos piratas que quase lhe davam cabo do canastro, depois de lhe levarem a fazenda. Pedro Gomez sabia muito. Até que as tais meninas eram japonesas. Aliás, para ele, Manuel, que diferença tinham as chinesas das japonesas. Olhos em bico, as duas. E, dissera-lhe até o Fronteira que tinham as coisas atravessadas, ao contrário das nossas.

Então, como seria dar uma cambalhota com elas? Um homem não está preparado para essas manigâncias. O malandreco sempre lhe foi impingindo que um sujeito, depois de se ter deitado com uma e de a ter lambido por baixo, até vinha com a cabeça a dizer que não, de um lado para o outro. Carago, homem! Eu cá não faço coisas dessas. O Pedro, nas calmas, olha pá, quanto a isso, só há os que fazem – e os que dizem que não fazem.

Adão e Silipa, escondidos no capim, também conversam. O plano está desenhado. Quando os militares pisarem na mina, poucos escaparão, ainda que sejam muitos. Já chegaram a acordo sobre as artes do falecido Lucas. É uma anti-pessoal, daquelas que soltam metralha toda à volta, mas está ligada a uma bomba de avião portuga, que não rebentou ao cair na lama. De duzentos e cinquenta quilos, aka!

Terá efeito devastador. Por isso, os que se safarem, atordoados, borrados de medo, aparvalhados, eles vão lhes abater a rajadas de Kala. Não tem que enganar, porque não tem nada de saber. Vingarão os seus, principalmente o do Caxito. Adão diz ao camarada que não lhe dá nenhum prazer matar soldados tugas. Ele próprio já foi, antes de desertar. Mas como não pode limpar o sebo ao Salazar… Esse sim, esse é o culpado de toda esta maka.

Alheia-se, os dedos sobre os lábios, pede silêncio ao Chico Silipa, bailundo mas porreiro, e diz-lhe que quer pensar. Camarada, sabes. Eu precisa mesmo de meter na casquimónia tudo o que nós vai fazer pra receber bem esses gajos. Não fala, não, deixa-me endrominar tudo, cada coisa no seu sítio, é como jogar ao galo com bolinhas e cruzinhas. Nós com as bolas, eles com as cruzes.


Não se trata disso. Mas, a verdade é que lhe deu de repente para recordar os dias de Luanda, o RIL, primeiro, a CCS do QG, depois. Não só. A sua meninice, primeiro no Casa Branca, da Dona Maria Rangel, depois no Marçal, onde fora na escola, mas não fizera muito, a terceira classe nem completara, fartara-se dos livros e dos cadernos de duas linhas, pr’aprender a calugrafia ou lá o que é, por mando da Dona Marmela, assim chamada pelos peitos enormes, quase nem lhe chegava o sutiã. Só de cimento armado, galhofava o Simão carpinteiro de cofragens.

Gente bonita, aquela do Casa Branca. Tinha muitas meninas lá. Davam o que era delas aos homens que pretendiam despejar os sacos cheios. Rapazes sem namorada, até com, maduros mesmo com mulher, até velhos de carapinha branca sem grandes esperanças. Contavam-se estórias de fazer abrir as goelas, de espanto. O que aquela fazia, quando demorava, o que a outra e a outra e as outras. Uma havia que se dava ao luxo de escolher parceiro de ocasião entre os candidatos ao vale dela e dos lençóis.

O Marçal era diferente, as barracas iguais mas as pessoas tinham outros ares, outras necessidades, outros desejos. Também trabalhavam lá mulheres, que, deitadas, olhavam mais nos tectos de madeira ou de folha de zinco, pouco nos fregueses, que lhes pagavam. De uma, a Mariquinhas, fã incondicional do Elias diá Kimuezo, se contava um episódio, não se sabia se era verdadeiro, ela há tanta invencionice.

Um branco, soldado do Casão Militar, fora na Mariquinhas para os devidos efeitos. Branco apessoado, camisa de manga larga, de quando em vez gravata, mais no cacimbo, mas dessa não levava. Acostumara-se a ser frequentador do muceque e das raparigas. Um dia entrara na casa da Mariquinhas (ele dissera que lhe lembrava um fado de um não sei quê) e fora no quarto com ela.

Não demorou nada a função. O homem saiu disparado, quase caiu por causa das calças em baixo, nem as chegara a despir, estava só no começo. Tropeçou no empecilho de tecido, mas se aguentou. E atrás a Mariquinhas, combinação amarela rendada enrolada na cintura, sacana de merda! Na minha cu de cagar, no meu boca de comer – nem se foras tenente! Inventado ou não, o episódio grotesco ficou registado nos anais do bairro. E nos orais, comentou o Juca vendedor de ginguba torrada, muito dado a piadista e tocador de marimbas nas horas semi vagas.

Uma tarde, na paragem do maximbombo da carreira 9 nas Ingombotas, Adão Francisco fora abordado pelo irmão Mateus, homem de fazer nada, ajudante de auxiliar de praticante, volúpia do mulherio, sobretudo do casado e herege contumaz para os cônjuges adulterados. Mano lhe venho perguntar se você achas bem que eu me case com a Mariquinhas. O Mucondo mais velho olhou nele. Repara só. Ela é puta.

Mateus soltou risada, olha, calha bem, tem muitas por aí que também são, só ela diz que é, de resto aprendeu com o protector dela, o patrão Rodrigues da Casa Inglesa que é prostiputa, lhe disse o chulo que é mais civilizado e de boas maneiras. Ou então mulher de vida fácil. Eu não entende como uma dona que está todo o dia deitada abrindo os perna pra muitos homens pode ter vida fácil.

Olha Mateus, o problema é teu, se o nosso pai Sebastião ainda vivesse, você lhe devias perguntar essa pergunta. Não a mim, que nem sou casado. Ainda, acrescentara Mateus, carregando no aí, em tom de acrescento que pretendia completar a transitoriedade do estado civil do irmão. Casamento tem que se lhe diga, prosseguiu Adão Francisco, é responsabilidade, tem de dar alambamento e criar as crianças que vão chegar.

Vê só, mano, casamento de papel, com padre e tudo no Igreja, não é coisa fácil, não é mesmo. Você tens de pagar os certidões, esses documentos todas, tens de pagar no sacristão que vai ajudar o cura, tens de pagar no ourives para comprar alianças, tens de pagar nos mulheres que vão fazer o pirão, o funje, o feijão de óleo de palma, o saca-folha, o arroz e os galinha do mato que são mais gostosas. E os cacussos. E o gindungo e o sal e o gengibre e essas coisas todas.

Para não falar já nos bebida. Vinho de capacete, aguardente, cachipembe, muita cerveja, quem sabe uns uísques, tem SBELL que é mais barato. Mateus puxa fumaça do cachimbo de cana. Essa aí não. Não? Porquê? Lhe perguntou Adão. É puro veneno. Você sabes o que quer dizer SBELL? Depois que os escoceses chegaram no Lobito, todo o Mundo sabe: Sociedade de Bebidas Espirituosas do Lobito Limitada. E o mano mais novo continuou arreganhando a cepa. Não, irmão. É Se Bebes Este Líquido Lixas-te, SBELL, você tás a entender? Riram-se os dois de tal tamanho que uns patrícios que passavam a caminho dos muceques comentaram que o que faz o álcool nos bêbado, pópilas!...

Um ruído despertou-o do devaneio. Parecia bota pisando no capim; não era. O Silipa cochichou: os tugas devem estar a entrar na zona da morte. Tapa as orelhas, camarada, que o barulho vai ser grandalhão. Mas, de rebentamento nem um pum. Vamos sair de fininho, Silipa. Eles podem dar a volta e nos apanhar descalço. Quando saltarem, saltaram. Já lhes chega. Já nos chega.

Abandonaram o ar empestado do esqueleto do acampamento, carregando três Kalas que estavam pouco avariadas e dois pares de botas que se safavam. Não enterraram ninguém. Os bichos lhes comem, camarada. Não faz mal, eles já foram, estão mortos, falecidos mesmo. Os gajos nunca vão nos apanhar. Nem pelos tomates, sibila Silipa, nem pela pele dos tomates.

Foi o pisteiro Julião quem descobriu o fio. Alertou só com a mão levantada, nem disse alto, o gesto suficiente. Gomez chegou-se à frente da malta que ia desfazendo a bicha de pirilau. E o Zimbro ao lado. Pessoal, tudo para trás. Afastar uns largos metros, esta merda parece ser potente. O furriel ainda miliciano, vai espetando devagarinho o terreno coberto de erva. Cum escafandro, é grande, deve ser bomba de avião.

O Fronteira organizou as coisas, de seguida. Recuou ele mesmo e foi dispondo os soldados em filas como se fosse um anfiteatro, uns duzentos e picos metros atrás. De preferência escudados por árvores mais robustas. Todos deitados, canhotas destravadas, culatra atrás, dedo no gatilho. Tomás, tu plantas a plataforma do morteiro e prepara as granadas que o Severino te passa. O rotineiro. Com estes filhos das putas, cuidado.

Cordão detonante? Havia. Está aqui, meu. Não é muito comprido, mas chega. Eu encarrego-me de fazer saltar esta cabronada. Olha, veio-lhe o castelhano à cabeça. Na volta, irá passar uns dias com os pais na cidade portuguesa ocupada pelos espanhóis – e de Espanha nem bom vento, nem bom casamento. Começou a desenrolar o fio, estendendo-o. Ó Zimbro, deixa-te de merdas, vai lá para trás como os outros, não me fodas.

Resmungando, o transmontano cumpre a ordem. Preferia ajudar o amigo a desactivar a armadilha, fora uma sorte o Julião ter olho de lince, de contrário teria sido uma mortandade do caralho. Há momentos assim. Num deles, o Sporting eliminou os lampiões na Luz, com um autogolo do Germano, vejam bem, logo o careca, barrando-lhes a final da Taça no Estádio Nacional. Os encarnados tinham ficado a rogar pragas aos de Alvalade, baba e ranho que chegava.

Aqui, porém, a eliminatória poderia ser outra – mas não era, quem sabe, graças ao Santo Padre Cruz, trazia uma relíquia dele na carteira ensebada, fora-lhe dada pela mãe, ele protege-te, filho, tem fé. O pai Sancho, pues que sí, si no te hace bien, tampoco te hará mal. ¡Hombre, cuídate, con santo o sin santo, coño!

Pedro Gomez vai desempenhando o seu papel com todos os cuidados. O cabrão que montou isto sabe da poda, diz de si para si. Tínhamos ido todos pró galheiro com o esticão. Concentração e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém. E por algum motivo ele foi o primeiro classificado no pelotão de minas e armadilhas. Capim esmagado, à volta, sinal que por aqui pisaram pés, logo sem perigo. O Lucas, onde quer que estivesse riu-se, escarninho, da artimanha.

Voltou, seguindo atentamente o seu próprio trilho, para junto do engenho. Detonador, fita adesiva, mãos suaves, limpou-lhes o suor para serem mais sensíveis no contacto com o metal. Aqui meto o estopim, isto vai dar tudo cert!!!... O estampido gigantesco, levou os homens a esmagarem-se contra a terra barrenta e vermelha. Ganda porra!

Quando se levantaram e a medo se aproximaram da cratera, ainda ela fervia. Um vulcão não teria feito melhor. Isto é, pior. Manuel Tomás vê na sua frente a imagem açoriana dos Capelinhos da sua infância.
Fotos no Diário de Notícias, nuvens escuríssimas, a jorrarem do mar. Mas, agora, o que tenta descortinar é o Pedro, seu amigo, seu irmão. Ficaram só as solas das botas, nem os polainitos escaparam. Uns sangues por aqui e ali, umas coisas nojentas, uns restos de gente. Puta de sorte!

No quartel comenta-se o acontecido. Tinham voltado de rastos, escorropichando os últimos cantis vazios, amaldiçoando a vida, filho da puta, paneleiro, cabrão, o gajo que montou aquilo. Zimbro, encarregado para o efeito, relatou ao capitão o ocorrido. Teria, depois, de assinar o depoimento que o Francelino, escrivão de autos ocasional, registaria. Agora, podia ir descansar.

Entrou na caserna metálica, mas saiu de seguida. Foi meter uns copos, sozinho, a boca amarga, amarga a alma. Já bem atestado, levantou-se e foi ao outro lado do jotacê. Onde dormiam os sargentos. Entrou e postou-se em frente da cama do Pedro Gomez Rodrigues, furriel miliciano, quem contaria aos velhos, lá em Olivença, o que lhe acontecera, nem corpo restara para meter no caixão. Para quê? Para manter a fé e o império? Sacanas!

O sonho da carreira esvaíra-se em fumo. Foi-se ao armário esverdeado, abriu a porta com uma chave que o Fronteira lhe tinha dado para o caso de que lhe acontecesse algo, longe fosse o agoiro. Na parte de dentro, entre umas quantas fotos coladas de mulheres nuas, mais mamas menos pelos, uma reprodução, pequena, do cartaz do Che Guevara, a boina ao lado, os olhos sonhadores mas faiscantes, o cabelo em guedelhas, a barba mal semeada. Por baixo, uma frase do gajo: Em caso de dúvida, mata!

sábado, outubro 13, 2007




A Nininha

Marina Dinis
Nunca entrou sozinha neste parque. Sempre houve alguém a acompanhá-la. Tinha cinco anos da primeira vez que atravessou os seus portões. Acompanhava sua mãe e avó, ambas em sofrimento. Desconhecia o que se passava, porém, nunca se sentiu atemorizada, pois para si era apenas mais um belo jardim onde brincava à vontade.

Trinta anos mais tarde, já mulher, regressou de novo ao parque. Mais uma vez acompanhada - e desta feita por necessidade de apoio para iniciar uma nova caminhada na sua vida. Entrou com receio. Não daquilo que iria encontrar, mas de falhar numa árdua missão imposta a si própria.

Muitos anos passou caminhando diariamente no parque, percorrendo os seus jardins, entrando em cada edifício, conhecendo cada canto, cada personagem e inúmeros relatos de vidas suspensas no tempo, sonhos nunca realizados e sofrimento sufocante num cenário tranquilo e quase paradisíaco. O seu trajecto no parque foi, desde o seu início uma viagem difícil, repleta de lágrimas e sorrisos, quedas e êxitos, mas sobretudo lições de vida.


Aqui aprendeu muito daquilo que sabe, muitos dos princípios que regem a sua vida, assim marcando os traços largos da pessoa que hoje é. Neste espaço tudo pôde aprender, sendo condição prévia o envolvimento e a dedicação. Percebeu que era fundamental deixar-se tocar pelos outros, pelas suas vidas e os seus trajectos, mas também pela sua dor e pelas suas desilusões. No parque ninguém estava só embora houvesse muitos mundos. Sempre existiram companheiros de percurso, fosse este breve ou aquele mais prolongado.

Cedo percebeu que os aspectos mais repugnantes da vida estavam fora deste recinto. Este foi, também para si, um espaço protector, um asilo para quem sofre e desespera, um lugar onde se podia retemperar o ânimo e renovar a coragem para continuar a longa caminhada da vida. No ar que se respirava pairava uma certa tolerância que raramente tem par na sociedade existente para além dos gradeamentos que ainda hoje delimitam o parque. A maioria dos visitantes do parque fazem-no de forma transitória, porém, nunca esquecendo a sua passagem, por mais efémera que tenha sido. Em todos as histórias vividas no parque deixavam marcas indeléveis, constituindo lições de vida relembradas por longos anos, património da memória colectiva da experiência do drama humano.

Também ela cresceu neste parque. No parque de árvores frondosas, de flores e folhas exóticas.

quinta-feira, outubro 11, 2007





A prova do crime

Diz o ditado que o creme não com pinça; corre também a versão apócrifa que reza que o crime não compensa - o que é falso, leia-se perjúrio, até malandrice. Compensa, sim senhor, compensa. Se não, vejam-se imagens da doutora/autora do texto imediatamente abaixo. Outras foram obtidas por paparazi sem pudor (tal como estas que o Travessa publica). Mas, o seu teor pecaminoso impede que as revele. De qualquer forma, o riad mabrouka de Marrakesh deve ser realmente o céu. Sétimo? Cuidado: o Povo, na sua insuperável sapiência diz que o céu dos pardais é a barriga dos gatos. Volta, Marina, estás perdoada. A.F.

quarta-feira, outubro 10, 2007



Chega e sobeja


Marina Dinis
Pôr-do-sol sereno num terraço da medina. Clima ameno sem uma nesga de vento. Cores de bege alaranjado, branco e verdes escuros e secos das plantas. Um silêncio absoluto no coração de uma pequena cidade confusa e barulhenta. Gatos sem qualquer receio das pessoas, surgem-nos vindos de todos os lados. Gatos amarelos e brancos, pequenos, ágeis e elegantes.

Os riad são os locais ideais para um refúgio em Marrakesh, onde apetece permanecer para sempre. Os terraços estão dispostos em vários níveis, com acessos através de pequenas escadarias estreitas e tortuosas. Os espaços estão cobertos de buganvílias de várias cores, limoeiros, oliveiras, palmeiras e diversas trepadeiras.

Os riad são casas tradicionais restauradas, inseridas no âmago da medina. Numa viela surge uma porta de madeira escura e pesada, com grandes pregos de metal polido. Através desta acede-se a uma casa de três andares dispostos em torno de um pátio interior frondosa e acolhedor. No topo há um terraço com alpendre e grandes chapéus-de-sol de lona branca com camas, sofás e espreguiçadeiras em recantos intimistas, abrigados do sol.

O silêncio no terraço é inexplicavelmente total e quando cai a noite, o céu transforma-se num manto estrelado. Há candeeiros árabes com vidros coloridos, porém a iluminação essencial provem de pequenas velas espalhadas por recantos do chão. Pétalas de rosa vermelhas cobrem o chão em diversos pontos do riad.

Os quartos, sete no total, têm nomes e não números e à porta de cada um está uma pequena mesa baixa de madeira escura, com dois cadeirões também de madeira, com almofadas forradas a pano-cru. Aqui toma-se chá de menta. As portas dos quartos dão para recantos do pátio interior, onde existe uma abundância de plantas altas e frescas em grandes vasos bojudos, nos tons das paredes.

O riad possui uma pequena biblioteca e uma luxuriante sala de convívio, mas as refeições são tomadas no terraço sob as coberturas de pano-cru. O meu quarto chama-se DAMAS... não sei o significado e é-me irrelevante. Tem paredes altas, caiadas de branco, com três longos candeeiros árabes pendurados no tecto, donde jorra uma luz suave e ténue. Uma cama dupla simples, com uma coberta vermelha de tear tradicional e uma longa mesa de madeira escura aos pés da cama.
Aquela fica encaixada numa espécie de arcada em frente à pesada porta dupla de madeira antiga que fecha com uma simples tranca em barrote de ferro forjado. À direita há uma chaise-longue vermelha, ao lado da qual ficam três degraus de pedra que dão acesso à porta da casa de banho. Esta é um pequeno encanto, toda em pedra polida com um pequeno lavatório sobre o qual está pendurado um espelho emoldurado em ferro forjado trabalhado. Em recantos variados escavados na pedra, estão colocadas toalhas e cestas de verga grossa forradas a pano-cru.

Num recanto semi-isolado por uma parede de pedra arredondada está o duche, com um antigo chuveiro de latão de boca enorme. Na parede ficam duas minúsculas torneiras antigas, igualmente em latão. Do lado oposto, noutro recanto, escondida por uma pequena parede, está a sanita. A higiene é total e o aroma é sempre de rosas. Os pequenos sabonetes artesanais cheiram intensamente a rosas e num pequeno suporte de latão estão três tubos de vidro com gel de banho de aroma a amêndoa.

Pela manhã está fresco na cobertura do terraço, mas nunca frio ou vento. De madrugada acordo espontaneamente com o chilrear persistente de um bando de passarinhos que poisam numa das altas buganvílias do pátio interior, até que um

gato amarelo vindo de outros terraços, os assusta cessando o chilrear e deixando-me de novo dormitar. Não há relógios, telefones ou calendários, nem preços ou números. Todo o contacto com o pessoal é informal e pessoal, parecendo que estes apenas aparecem quando necessitamos de alguma coisa.

Estou no céu? Não, não acredito em céu, mas para mim isto chega e sobeja.

A doutora até escreve bem

Ora cá temos mais uma colaboradora, a Marina Dinis, psiquiatra e Amiga. A Marina não é de modas: «Presidenta» da FAÚMA, que tantas vezes tenho referido e a que também pertenço. Mulher de armas, pois deita a mão a tudo. Diz ela que gosta de ser agente de relações públicas, pois, no domínio das doenças mentais, é mais das ralações públicas (e privadas).
Viajante intimorata, a Marina ainda tem tempo, depois de se desdobrar em quefazeres os mais diversos, para dar consultas. Conheci-a por intermédio da minha Santa da Ladeira, a Alice Nobre. São duas queridas. Colegas de sempre, desde a faculdade até à especialidade médica. São verdadeiramente inseparáveis, muito piores do que gémeas. Férias compartilhadas, por exemplo; tanto quanto sei de fonte segura, os respectivos «caros-metados» não se queixam. Aqui fica o primeiro texto da Marina. Outros virão, estou certo. Porque, alem de tudo o mais, a doutora até escreve bem. A.F.

quarta-feira, outubro 03, 2007



Saúde vai mal

Marta Bilro
O
sistema de saúde português ocupa o 19º lugar na tabela dos mais amigos do consumidor, entre os 29 países europeus analisados, segundo os resultados do Índice Europeu do Consumidor de Serviços de Saúde divulgado na segunda-feira.

A Áustria mereceu o primeiro lugar, com o seu serviço de saúde a arrecadar 806 dos 1000 pontos possíveis, seguido pelo sistema holandês (794 pontos) e pelo francês (786 pontos). De acordo com o ranking estabelecido pela organização Health Consumer Powerhouse, Portugal obteve 570 pontos.


As leis dos direitos dos cidadãos, o acesso directo a médicos especialistas ou o direito a uma segunda opinião foram alguns dos parâmetros considerados para estabelecer um ranking dos países cujos sistemas de saúde são mais favoráveis aos utentes. No que diz respeito ao tempo de espera, o serviço de saúde português obteve nota negativa, com apenas sete pontos num máximo de 15 pontos.

Na análise à mortalidade por ataque cardíaco, às operações às cataratas e aos cuidados dentários no sistema público os resultados relativos a Portugal são também negativos. Pela positiva destacam-se os baixos níveis de mortalidade infantil, a vacinação na infância e o sistema de informação de saúde por telefone. O direito a uma segunda opinião médica, o acesso a medicamentos inovadores e a sobrevivência ao cancro durante mais de cinco anos são indicadores que surgem em Portugal com resultado "intermédio".

O relatório sublinha os bons resultados no que diz respeito à mortalidade infantil em Portugal, porém frisa que o sistema de saúde português "não é tão avançado como o dos vizinhos espanhóis". De acordo com os dados do documento relativos ao gasto público anual por pessoa com cuidados de saúde, por cada espanhol o Governo gasta mais 15 por cento do que no caso português.

Doentes e desempregados

A notícia que transcrevo acima, do Farmácia.com.pt, não é agradável para nós, Portugueses. Primeiro porque somos os mal tratados – e os maltratados; segundo porque continuamos a coleccionar maus resultados em muitas disciplinas; finalmente, terceiro, porque a saúde é o maior bem dos homens. Que, muitas vezes, especialmente os que detêm o Poder, se esquecem disso. O que é lamentável.

Já sabíamos, quase todos, que o Serviço Nacional de Saúde estava longe de ser suficiente, quanto mais bom. A avaliação internacional põe em cheque não apenas Correia de Campos e o Governo de que é ministro da pasta, mas igualmente todos os Executivos que os antecederam. Um registo bem pouco simpático, num dia em que também veio a público a informação, igualmente negativa sobre o desemprego no nosso País.

Bem se pode tentar contrapor as estas realidades, tristes, que os primeiros três meses da nossa Presidência são considerados - igualmente a nível internacional - muito satisfatórios. Se as diligências que estão a concluir-se levarem a que seja assinado o novo tratado europeu, então outro galo cantará?

Nada disso. São dois temas e dois desempenhos muito distintos, direi até que não têm nada a ver um com o outro. É um exemplo típico dos alhos e dos bugalhos. Tem de se olhar para os indicadores em causa (e para outros) de frente, e pega-los de caras. A não ser assim, seremos louvados pelo desempenho europeu – mas, doentes e desempregados.
A.F.

(Fotos do Expresso)

terça-feira, outubro 02, 2007



SOMBRA DE GUERRA


Morabeza com gelo


Antunes Ferreira
Cabo Verde é África, ou não é? Cabo Verde é Portugal – ou… Vou mas é deixar-me de interrogações destas, por via das dúvidas. O Malaquias, inspector ou lá o que é da PIDE, ainda não consegue ler o pensamento das pessoas; mas lá chegará. Portanto, é melhor que varra da moleirinha tais questões, pois quando isso acontecer – quem sabe não vem longe? – lá vou eu de cana, com muita porrada à mistura.

É como falarmos o nosso crioulo. Em Lisboa, no Instituto, tinha mais uns quantos patrícios. Cabo Verde é, das Províncias Ultramarinas, a par de Goa, a que tem um maior índice de alfabetização e de escolaridade. Também não admira: enquanto se espera pela chuva e o trabalho é raro, as pessoas têm de ocupar o seu tempo, um tempo que escorre, langoroso, pelas paredes nuas dos dias e das ilhas.
Entre nós, quase às escondidas, conversávamos em crioulo. Para matar saudades? Sei lá. Prefiro dizer que para convivermos. À nossa maneira. Um dia, no Campo Grande, aluguei um bote para passear com a Guilhermina. Uma jóia de moça, tenho de dizer. Fui remando, aliás sem muito entusiasmo, de tal forma que ela me perguntou, risonha, irónica, atrevida: vamos até à tua terra?

Voltámos daquele descobrimento laguítimo, qualquer Dias faria melhor, aos remos, claro, do que eu, também Bartolomeu, mas Ulpiano. Não admira. Para além dos navios ao largo de Mindelo, no Porto Grande, aguardando as barcaças de desembarque e que me limitava a ver, nativo de Chã de Alecrim, uma das zonas mais bonitas da cidade, apenas embarcara no Niassa para ir para Lisboa. Enjoei.

Sentados na relva bem aparada, ficámos, de mão dada, conversando sobre o tudo e o nada, aprofundando erraticamente minudências. Farolámos, em busca de um pontão imaginário, onde pudéssemos atracar. Gostava mesmo da Mina, Maria Guilhermina de Melo e Menezes, com z, (tinha mais uns quantos apelidos, mas não valia a pena conta-los, muito menos usa-los…), damanense, estudava Românicas, vinda de Nagar Aveli, onde o subchefe Aniceto do Rosário perdera a vida ao tentar impedir a entrada dos indianos no enclave.

Fiz-lhe festinhas na mão de pele morena, parecida com a minha, mas mais acetinada, cheirando a malagueta e canela, mistura rica e sensual que me inebriava. Se calhar era apenas a minha imaginação, ela usava água-de-colónia Ach. Brito, do Porto, em frascos verde escuros. Para mim, porém, o seu perfume moreno era o dessa mescla arrevesada. Havia quem dissesse que,
se vires uma cobra e uma indiana – foge para o lado da cobra. Más línguas. Eu escolhera – e de que maneira! – a indiana.

Ia escurecendo. Meu, temos de ir andando, bem gostava de ficar aqui contigo, mas as freiras lá do lar são umas chatas e linguarudas. Vão-me perguntar porque chego tão tarde, ao lusco-fusco, se não tenho vergonha na cara, foi para isso que os teus paizinhos contraíram o empréstimo na Caixa Postal de Damão – para vires estudar na Universidade? E agora, depois da invasão, ainda se esfalfam em Moçambique, com a guerra dos comunistas, para te mandar a mesada?

Ficámos só mais um pouquinho, tempo para darmos um beijo camuflado – mais do que o tecido desta farda que agora envergo – os seus lábios carnudos e escuros sabiam a mel e manga, como as de São Vicente.
Rápido, não fora andar por ali alguma informadora das filhas do convento, a que se chamava as irmãs de caridade. Porra! Nem irmandade, muito menos carinhosa. Vícios da língua, no caso em apreço com dois sentidos, pelo menos.

Voltámos juntinhos, de mão na mão, e ela, ligeiramente inclinada para mim, a cabeça meio apoiada no meu ombro, a camisola de Inverno realçando-lhe os seios modelados em concha, à espera das minhas mãos, via-lhe os mamilos erectos desenhados na lã, que me deixavam adivinhar (e assim entusiasmar-me) como seriam nus. Entesar-me, era o termo mais correcto.

Um destes dias, disse-me, vamos fazer uma patuscada, queres? Se queria. Afiancei-lhe que sim, jurei-lhe pelas cinco chagas de Cristo que adoraria e tanto ardor transpareceu das minhas afirmativas entusiásticas, que se apressou, com um sorriso pouco menos que libidinoso, a esclarecer que se trataria de um pic-nic ou um almocinho, com mais umas amigas e amigos. Como a Mina compreendera a minha euforia e o meu entusiasmo, aliás comprovados por olhar atrevido que pousou na braguilha das minhas calças, tumefacta e suficientemente esclarecedora.

Entrámos de fazer menu antecipado, ela faria umas espetadas (o que, na verdade, era a minha intenção, o meu altaneiro desejo…) à maneira de Damão, de leitão, com muito louco, malagueta q.b., alho e todas essas especiarias encantadas, com chetni e outras delícias. Eu assegurava uma cachupa rica e, se possível, um xerém aprimorado. Estava lançado o desafio e como ainda fossemos a caminho do Saldanha e o lar era na D. Pedro V, continuámos nos mais salutares propósitos.

Olha lá, Meu, vocês têm uma língua própria lá em Cabo Verde, não têm? Claro que sim, era o crioulo, parecido e diferente com o falado na Guiné. Mas, o nosso tem mais sabor, acrescentei, deliciado pela oportunidade de lhe contar particularidades da minha terra natal. Sabes, Mina, o crioulo de São Vicente é o mais lindo de todos, porque há mais, ainda que seja tudo o mesmo.

E ela, chegadinha a mim, ambos à espera de que caísse o verde semaforiano para os peões, diz lá uma frase em crioulo, mas coisa decente, nada dessas malandrices de que tanto gostas. E eu a pensar que ela também, algum dia mo diria, agora não, que tínhamos de atravessar para a Duque d’Ávila. Já no passeio, passei-lhe o braço pela cintura. Ah ela é isso? Sou assim tão indecente?

E, sem me deter, avancei. «Nos avôs era ou eh ti inda kampion na morabeza, si nu konsigui trazi kes manera la pa nu infrenta bida e midjora condisson di nos guentis nada ka podi paranu». Que quer isso dizer, querido? Depois explico-te em pormenor, mas anda à volta do que diziam os nossos avós sobre a maneira de enfrentar a vida e melhorar a condição das pessoas. E vocês, seus indianos de má raça? É o concani ou algo assim, não é?

Nós somos damanenses, de Damão, e não de Goa. Nesta é que se fala o concani. Nós falamos gujarate, completamente diferente. Mas continuamos com o nosso português, arcaico, foi assim que ele lá chegou, assim continua, tem uma maneira gira de encantar. Por exemplo, e já que estamos nos Santos Populares, diz-se festa di Sam Pedru. Os candeeiros bruxuleiam um amarelo deslavado.

Maldito o tempo que não sabe parar. Chegámos ao lar. Para que as madres não a esfolassem viva, ainda que tivessem as suas dúvidas, separámo-nos no Rato, na esquina com a Braamcamp, esperando pelo próximo encontro que antevíamos logo no dia seguinte. Que não houve. Mila sentira-se mal quando se preparava para a deita, uma dor no braço esquerdo que subira qual relâmpago ao peito.

Ainda a tinham levado, no primeiro táxi que passara, ao hospital de São José, no meio de alarido e choros das freiras e das estudantes. Chegara já morta, um ataque cardíaco, quem poderia imaginar, uma jovem de 21 anos, estuante de vida, alegre, comunicativa, sempre bem disposta, amiga do seu amigo, como se irá dizer aos pais, em Marracuene? Parece que tem uns primos para a Cruz Quebrada.

Gostassem ou não - quer as putas das freiras quer os parentes do canal do esgoto - fui ao funeral, todo de preto, o Viegas emprestou-me o fato, a camisa, a gravata e até as peúgas que usara no luto pelo pai dele, iam fazer dois anos. Viúvo e órfão, não me podia apresentar de outra maneira. Na igreja – aguentei-me. Mas nos Prazeres – sacana de nome, quais os prazeres da morte, que grande cagada – jorraram-me as lágrimas, quem será o tipo que assim chora?

As monjas, finalmente davam de si, conheciam-me ainda que de longe, sabiam quem eu era, um cabo-verdiano estudante do Técnico, amigo da falecida, pelo pranto quiçá mais, por vezes suspeitávamos. Embora a Maria Guilhermina não se abrisse muito connosco. Sabem como é, rapariga vinda do Oriente, do Estado Português da Índia, que ainda é assim, só que invadido pelo Nehru, não é de grandes falas a tal propósito.

Quando os coveiros atiraram a primeira terra sobre o caixão, os gatos-pingados da Magno já se tinham retirado, o padre também, tinha um casamento ou um baptizado ou coisa que o valha já de seguida. Se fico mais não chego a tempo e eu sou muito cumpridor dos meus horários, tenho de defender a minha reputação, fugi dali, os soluços não paravam, muito menos as lágrimas.

Na Ferreira Borges, entrei na Tentadora, uma bica e um copo de água para duas aspirinas, o trivial, a noite em claro no velório no Rato, enxuguei o sal que me correra dos olhos e, talvez estupidamente, dei por mim a recitar para dentro «vai alta a Lua na mansão da morte…». O Soares dos Passos, de que nunca gostara nem um bocadinho, entrara-me pelos poros suados. Eu vinha de protagonizar o hediondo Noivado do Sepulcro.

Nesse mesmo dia, decidi. À tarde, fui à Avenida de Berna, ao Distrito de Recrutamento e ofereci-me para onde quer que fosse, no Ultramar. Bem me ralava com o que me calhasse. COM em Mafra, IST já era, a GAM, ginástica de aplicação militar, a ordem unida, as operações da guerrilha, os golpes de mão, as patrulhas, as emboscadas, o armamento, desmontar e montar pistolas, espingardas e metralhadoras, a carreira de tiro, em tudo me empenhava – para passar os dias cada vez mais longos.

À noite, enfronhava-me nos cartapácios que esmiuçavam a construção e a origem do convento. Parecia-me sentir na epiderme morena escura a promessa do rei João V, de que erigiria o mosteiro se a rainha Maria Ana de Áustria lhe desse herdeiro que tardava. O nascimento da princesa Maria Bárbara determinou o cumprimento do voto.

Palavra de rei não volta atrás, como escrevia Joaquim da Conceição Gomes na sua «Descrição minuciosa do monumento de Mafra, ideia geral da sua origem e construção e dos objectos mais importantes que o constituem». A que eu descobrira era uma segunda edição, «correcta e aumentada com muitas notas e com uma notícia de Sintra, seus edifícios e arredores», uma edição da Imprensa Nacional, datada de 1871.

Depois da instrução, fortíssima, enquanto os outros cadetes iam de rastos para as camaratas, eu visitava a imensa mole. E continuava a ler tudo sobre o que ela tinha sido publicado. Comecei, até, a tomar notas num caderninho der espiral, par que nada me faltasse sobre o tema. Tinha a certeza de que a Mina me acompanhava pelos salões ciclópicos, alertando, meu Meu, repara neste quadro, atenta naquele cortinado de brocado, levanta os olhos para o fresco do tecto. Até trocávamos beijos, saborosíssimos – no ar.

O trabalho começara a 17 de Novembro de 1717. Era, ao princípio, um modesto projecto para abrigar 13 frades franciscanos. Mas o dinheiro do Brasil começou a entrar nos cofres, pelo que D. João e o seu arquitecto, Johann Friedrich Ludwig, um germano que estudara na Itália, iniciaram planos mais ambiciosos. Não se pouparam a despesas.

A construção tinha empregado qualquer coisa como 52 mil trabalhadores de todos os mesteres e ofícios, e o projecto final acabou por abrigar 330 frades, um palácio real, umas das mais belas bibliotecas da Europa, decorada com mármores preciosos, madeiras exóticas e incontáveis obras de arte. A magnífica basílica foi consagrada no 41.º aniversário do rei, em 22 de Outubro de 1730, com festividades que duraram oito dias.

Terminado o curso, saí aspirante – miliciano, é óbvio – e daí até ao Santa Maria e Angola foi um pulo. No cais da Rocha não tinha ninguém de família para me despedir. Vieram, apenas, o Miguel Reineta Funá, um fula de Bissau, que tinha uma bolsa da Mocidade, a Mariquinhas Demétrio, da Praia e o Domingos Matombe, moçambicano de Marracuene – que não conhecia os pais da Mina, mas a ela, perfeitamente.

Este morava na Calçada da Ajuda, perto do Depósito Geral de Adidos, onde me tinha apresentado e me fora entregue a guia de marcha para Luanda. Matombe era meu colega no Técnico, ainda que fosse de Civil e eu de Electrotecnia e Máquinas. Passara os meus últimos nove dias lisboetas no quarto dele, uma cama no chão, de cobertores sobrepostos que eu queria para mim, mas que fora conquistada por ele.


Eu dormia na sua cama de ferro com bolas de latão. De resto, dormimos pouco, tal o afã da conversa, tal a vontade de contarmos tudo um ao outro, dos mais diversos assuntos e temas. Sabes uma coisa, Meu, foi na minha parvónia que decorreu o combate em que o Caldas Xavier utilizou a táctica do famoso quadrado. Eu sabia. E também conhecia que, ao lado do major, enfileirava um outro militar, Joaquim Mouzinho de Albuquerque, que, em Chaimite, iria derrotar e capturar o Gungunhana.

Há, porém, muitas mais coisas que não sabes. E as noites transmudavam-se em madrugadas e estas em matinas, não havia mais nada para fazer, Domingos só frequentava duas cadeiras atrasadas. Por isso me acompanhava nessas veladas. Revelara-me então que Ngungunhane, Mdungazwe Ngungunyane Nxumalo, N'gungunhana, Gungunhana ou Reinaldo Frederico Gungunhana que fora o último imperador de Gaza. Da dinastia Jamine.

Ora fora Marracuene, ou mais precisamente Guaza Muthine, que antecedera Chaimite. Foi ali que o príncipe ronga nuãMatidjuana caZixaxa Mpfumo lançara a voz de comando às suas tropas: «…Fambane pambene va-landííí – nhimpííí!»… Que queria dizer «Para a frente gente da terra – guerra – ataque!» Mas nuãMatidjuana viria a ser traído pelo chamado Leão de Gaza e entregue aos militares portugueses. Ironicamente, traído e traidor acabariam os seus dias exilados nos Açores.

Era uma viagem por acontecimentos de que nem suspeitava. Domingos ainda me revelaria uma outra particularidade. O intérprete do major Caldas Xavier fora um cabo-verdiano, Pedro Baessa, que depois partira para Tete, vindo a fixar-se em Nampula, com família local numerosa. Muitos descendentes deixou e um Pedro Baessa ainda andou comigo no liceu. Conheces?

Nada, não sabia nada daquilo, nunca ouvira falar de um qualquer Baessa, a História de Portugal que nos ensinavam era só um somatório de feitos e vitórias e nem os 60 anos filipinos tinham sido péssimos, ora bem, e tinham motivado os conjurados de 40, com o João Pinto Ribeiro à frente que haviam de levar o duque de Bragança a rei. De São Mamede a Aljubarrota, de Castelo Rodrigo à Linha de Torres, tudo que nos ensinavam eram sucessos.

Em Luanda estive três dias. Ia em recompletamento tomar o lugar de um alferes que morrera numa emboscada, qualquer coisa Fidalgo, em Mucaba, lugar de hecatombe no norte da província, em 1961, aquando dos ataques terroristas da UPA de Holden Roberto. Fui numa coluna enorme, 78 camiões civis, enquadrados por 14 viaturas militares.

Aqui estou, agora, congeminando sobre a africanidade ou não do arquipélago de Cabo Verde, do grogue de noss’ terra, da seca e da coladera. Parva congeminação, tenho de o dizer, que não me aquenta nem me arrefenta, como dizem os militares na gíria que lhes é peculiar. Voltei a fumar – parara a pedido dela, sempre a minha Mina, omnipresente a Mina minha.

Por isso me entretenho chupando a pirisca meio apagada, enquanto aguardo a volta de uma secção que saiu para dar protecção à tonga do café. Na fazenda já estava um destacamento da OPVDCA, mas era tal a intensidade dos ataques do inimigo e a sua pertinácia que eu decidira assim fazer. Estou a comandar interinamente a companhia, a CC 1002, porque o nosso capitão Lourenço está no Hospital Militar em Luanda, com uma tifóide. Dizem os de lá que o gajo se safa. É bom homem, oxalá.

Regressa a tropa, arrebentada, mas incólume, o furriel Barrigas, miliciano como eu, que chefiou a secção de atiradores reforçada por um apontador de morteiro 82, o Sangana, cuanhama gigante, mede quase dois metros e come que nem um frade porteiro – não sei de onde me vem a imagem, mas acho-a porreira – diz-me que correu tudo bem, só com uma pequena merda.

Feliciano Barrigas diz-se angolano. Nado em Monção, veio com os pais para o colonato da Cela quando tinha apenas quatro meses. Nem sabe, quase, onde fica o Vale da Gadanha, local onde veio à luz do dia, nunca lá voltou, diz que nem está interessado nisso. Quer lá saber do Alto Minho. Já o mesmo não diz do vinho verde. Mas isso – são outros quinhentos mil réis.

Então o que houve? Pergunto-lhe enquanto lhe estendo um uísque, damo-nos muito bem, até sabe da Mina, de quem lhe mostrei uma foto, a covinha da face sobressaindo, a dentadura alva e regular, o cabelo de azeviche, escorrido, liso, e o resto. Ó pá, quando lá chegámos aquilo era uma sanguineira desatada. Os pretos – não é nada contigo ou contra ti, tu és cabo-verdiano – que andavam na colheita tinham sido ceifados, ainda por cima na hora da comida.

A um, que tinha uma lata de margarina Vaqueiro em que cozinhava a fuba derrubada sobre ele mesmo, emporcalhando-o ainda mais do que já estava, descobri-o eu, um tanto afastado de outros. Tinha um buraquito redondo no peito, nada de especial, escorrera-lhe um fiozinho de sangue, já coagulado. Pareceu-me morto. Mas…

Por isso, meti-lhe a minha mão pelas costas para o levantar, podia ser que. Bartolomeu Ulpiano, nunca mais me vou esquecer disso, até que a terra me coma os olhos que tal presenciaram. Apalpei o nada, tentei agarrar o vazio. O pobre não tinha costas, era só um buracão sustentado por alguns restos de costelas, órgãos nenhuns, nem coração nem pulmões, nada.


O gajo dos Voluntários, um tal Seixas, da Costa da Caparica, explicou-me que fora uma bala explosiva. Filhos da puta! Escorropicha o uísque. Sirvo-lhe outro. Se ainda tiveres, bota mais uns pedregulhos de gelo. Tenho, a coisa funciona. E a Mina ao meu lado, dengosa, meio à vela: olha, amor, lá dentro há mais. Gelo. É o que não me falta… que o pariu!