segunda-feira, março 31, 2008




NA ROTA DO CALENDÁRIO


Março das Primaveras

Maria Lúcia Garcia Marques

Nasci com Março e com as primaveras. Tempo final das grandes germinações, do rebentar das águas, do eclodir das cores. Tempo feminil e quase frívolo em que a Natureza compõe seu rosto, se adorna e floresce. Histórias de sementinhas com final feliz como estas com que Aquilino abre a sua “Casa Grande de Romarigães” e que deliciadamente aqui resumo:

O vento, que é um pincha-no-crivo devasso e curioso, penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora no seu decúbito, que se agitou molemente. Volveu a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua tela semi-rígida e imobilizou-se. Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se da cela e pulou no espaço. Que pára-quedista!

Precipitado tão de alto do pinheiro solitário, balançou-se um instante e ensaiou um voo oblíquo. A meio caminho volteou, rodopiou, viu as nuvens ao largo, a terra em baixo e, saracoteando a fralda, desceu em espiral. Poisou em cima de uma fraga, ligeiro como um tira-olhos.


Mas novo pé-de-vento atirou com ele para a banda, quase de escantilhão, e a aleta, tomando-se de imprevisto fôlego, arrebatou-o para mais longe. Foi cair numa mancheia de terra, removida de fresco pelos roçadores do mato, e ali permaneceu à espera que pancada de água ou calcanhar de homem o mergulhasse no solo, dado que um pombo bravo o não avistasse e engolisse.

Também ali perto, por uma tarde fosca de Outono, chegou um gaio, voejando de chaparro em chaparro, a grasnar mal-humorado como é próprio da raça. (…) Trazia no bico uma bolota (…) mas deixou cair a glande. Esta foi bater na face zenital dum velho toro, saltou de ricochete para o lado, e aninhou-se muito aninhada num monte de folhas secas e argalhos. (…) ficara ali muito quieta, muito bem refastelada em virtude do próprio peso, enterrada que nem pelouro de batalha depois de passarem carros e carretas. Que fazer senão deitar-se a dormir ?!




Dormiu uma hora ou uma vida inteira, quem o sabe ?! Um laparoto veio lá de cascos de rolha, rapou a terra, fez um toural, aliviou-se, e ela ficou por baixo, sufocada sem poder respirar, em plena escuridão. Estava no fim do fim? Um belisco, e do seu flanco saiu como uma flecha. Era de luz ou de vida? Era uma fonte ou antes um cântico de ave, de água corrente, de vagem a estalar com o sol, dum insecto na sua primeira manhã, música trilada da terra ou das esferas?

Era tudo isto, encarnado no fogo incomburente que lhe lavrava o flanco, verbo que acabou por irradiar do próprio mistério do seu ser. Do pinhão, que um pé-de-vento arrancou ao dormitório da pinha-mãe, e da bolota, que a ave deixou cair no solo, repetido o acto mil vezes, gerou-se a floresta.


E esta floresta assim nascida faz-me lembrar o como se tece e urde o tecido/texto da nossa fala. De como, das clareiras do silêncio, se parte, pelos trilhos da memória e do engenho, ao encontro das palavras na pujança das suas inflorescências semânticas, numa “expedição” em que, como diz Ramos Rosa , de súbito uma folhagem estremece e as palavras surgem / trémulas ainda de silêncio e de desejo. E são muitas. Infindas. Cada palavra é um pedaço do universo. Um pedaço que faz falta ao universo. Todas as palavras juntas formam o Universo, dirá Almada Negreiros. E há-as úteis, imperativas, apaziguadoras, apaixonadas ou frias, difíceis ou arrogantes, de misericórdia e de luto, secretas ou segredadas, gastas ou já esquecidas, que unem e que separam, de prisão e de alforria, de justiça e de oração, de rogo e de promessa, de culpa e de perdão, de fúria e raiva como no poema de Sophia:


Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras
Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada
De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse
Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra” ( Junho de 1974 )

Mas há palavras lindas que nos salvam, nos lavam e nos saciam.
Palavras-de-março que, como um fio de água bonançoso e limpo, trazem nelas a Primavera.



sexta-feira, março 21, 2008




Ditados a granel

Antunes Ferreira
Um homem não é de pau, diz rifão bem conhecido. Cuidado: os provérbios são, normalmente certíssimos. Não se podem desdenhar, absolutamente. De resto, também afirma o povo que quem desdenha quer comprar. A ser assim... Se um cidadão cai na zona demarcada de um adágio, está tramado. É um pouco como os vinhos, também originários de zonas equivalentes: quando se bebem em excesso, ou se vai dormir, ou há uma cena triste. Ou umas.

Ora bem: a luxúria que está na base da máxima popular é um dos sete pecados capitais, que, de acordo com a Wikipedia são uma classificação de vícios usada nos primeiros ensinamentos do catolicismo, para educar e esclarecer os crentes, de forma a compreender e controlar os instintos básicos. Não há, no entanto, registo dos sete pecados capitais na Bíblia. Mas são, para além da luxúria, a gula, a preguiça, a avareza, a ira, a soberba e a vaidade.

São Tomás de Aquino escreveu sobre eles. Mais faltaria que o não tivesse feito. Na sua doutrina sobre os pecados capitais - ou vícios capitais -, ele repensou a experiência acumulada sobre o homem ao longo de séculos. Sempre voltado para a experiência e para o fenómeno, é sobretudo, quando trata dos vícios que o seu pensamento mergulha no concreto, e, citando o sábio Dionísio, escreve que "malum autem contingit ex singularibus defectis", ou seja para conhecer o mal é necessário voltar-se para os modos concretos em que ele ocorre.


É bem sabido que o fruto proibido é sempre o mais apetecido. O pecado da carne é, quiçá, o melhor exemplo deste dito. Nos mandamentos está gravado que ninguém pode cobiçar a mulher alheia. Afirmação machista, há que o dizer. Então, se a mulher cobiçar o homem alheio não existe pecado? E se duas fêmeas se cobiçarem uma à outra? E se dois marmanjos procederem idem, idem, aspas, aspas? Vistas as coisas por este prisma, temos, realmente, o caldo entornado. O caldo da carne, evidentemente.

As sociedades humanas encaram os capitais de forma habitualmente severa. Sublinhe-se que umas mais do que outras. Não há forma de se encarar estas questões similarmente. Já não se usa o velho e obsoleto papel químico. (Ainda existe quem o faça, mas a ser assim, é um homem das cavernas, da pedra lascada). Porém, existem outros recursos. A ovelha Dolly foi o primeiro exemplo da clonagem animal. Mas isso são outros quinhentos mil réis, como dizia o meu falecido grande Amigo e enorme Jornalista, Victor da Cunha Rêgo.


Daí que haja grupos mais puritanos do que outros, grupos mais liberais do que outros, grupos mais praticantes que outros, grupos mais condescendentes que outros, grupos, enfim, para todos os gostos e paladares, como os chupa-chupas da nossa infância. Aqui há uns anos, não tão longe quanto se possa pensar, as «coisas feias» não se faziam às claras, eram predominantemente às escuras. Onde vai isso?

Hoje, peca-se a céu aberto. Ouve-se que acabou a hipocrisia. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Hipócritas sempre houve, há e haverá. Nem mais. Por todo este Mundo desrazoado ela viceja, benza-a um qualquer deus. É pá, ganda intervenção no Parlamento, quer dizer, olha, filho, o teu discurso foi uma bosta; malta a dormir, quase toda, maioria e oposição. Sarzedas avançou, fintou um, fintou dois, tirou um terceiro da frente e chutou: um golaço, significa: o guarda-redes deu um frango maior do que uma avestruz, foi pura sorte, o gajo nunca mais marca um igual.


Mais exemplos – para quê? É tudo à vista de todos, nada de tentar fingir que não foi assim, que não é assim, que não será assim. A luxúria é, então, uma prática aberta, obviamente sem cobertura de qualquer qualidade? O desejo satisfaz-se na via pública, sem se dar atenção às placas de sentido proibido, nem de proibição de estacionamento? Depende.

Se há terra onde o falso puritanismo dita leis, ela é os Estados Unidos da América, EUA, USA, escolha-se. Advirta-se: há mais, evidentemente; mas por lá, exagera-se. Com hipocrisia q.b.. Práticas que se verificam à sorrelfa, vêm a público e toca a rebate. As mais das vezes, as coisas endireitam-se, honni soit qui mal y pense, mas quando saem à luz do dia é um vê-se-te-avias. A classe política é, disso, freguesa frequente.

Não se recue muito, basta recordar 1998, quando Bill Clinton se deparou com a «ingratidão» da boca da Mónica Lewinsky. O caso da Sala Oval bradou aos céus.
Caiu o Carmo-e-a-Trindade, mas não caiu o Presidente. No entanto, o escândalo correu o Mundo, as anedotas proliferaram, na net foi um corrupio. A vingança serve-se fria. Hoje, Hillary bate-se apenas para derrotar Obama? Ou para limpar o apelido?

Outros casos foram fatais para quem os interpretou. A esmo. Em 2004, o governador de New Jersey, Jim McGreevy, foi apeado por ter sido descoberto em prática homossexual. Ou por intenções de tal natureza. Mataram-no, óbvio que politicamente. Passou a fazer parte do time dos ex qualquer coisa. Corria o ano da graça de 2006, quando Mark Foley, deputado pela Flórida, integrou a equipa. O homem (que até presidia a uma comissão contra a pornografia infantil) andava a atirar-se a menores que estagiavam na Casa Branca.

Já no ano passado, o senador Lerry Craig, pelo Idaho, terá sido apanhado com a boca na botija, salvo seja, num aeroporto. Para mal dos seus pecados, kogo se havia de meter com um agente da autoridade, avesso a tais aproximações. Olho da rua. A sociedade norte-americana cobrava os dividendos que entendia, a moral pública não se permitia ofensas de tal quilate.

Agora, estala mais uma bomba. Começa pelo governador de Nova Iorque, melhor dizendo o ex-governador Eliot Spitzer. O senhor terá gasto uns largos milhares de dólares com umas raparigas mais complacentes.
A última, já em Fevereiro, a miss Kristen, nome de guerra profissional, na realidade Ashley Alexandra Dupré deu à dica sobre um alegre convívio no Hotel Mayflower, nome histórico que também era marca de tabaco para cachimbo. Apagou-se. O cachimbo e o governador ex.

Vai daí, o seu número dois, o senhor David Paterson, que com ele integrava o ticket democrata vencedor, ascendeu ao posto. Uma novidade na política do tio Sam. Paterson é cego e negro. Algum dia isso podia acontecer. Foi agora. Mas, espanto dos espantos, o novo governador da Big Apple, logo no dia seguinte à posse, deu uma entrevista acompanhado da esposa amantíssima Michelle, durante a qual declararam ambos que se tinham corneado mutuamente. Os casamentos têm os seus maus momentos, afirmaram.

É o verdadeiro paradigma do pôr as barbas de molho. E duplamente, e ao quadrado. Não só porque foi o ilustre casal a contar os seus feitos extra-conjugais, mas também porque Mister Paterson usa... uma barba cinematográfica que lhe fica a matar. Continuando na senda dos ditados, o (ainda?) governador novaiorquino é como a pescada ou o vestido: antes de o serem já o eram.

Por causa das moscas, esta confissão da insigne parelha é antecipação a uma mais do que provável investigação jornalística que poderia resultar em parangonas assassinas. Resta saber se, quando esta crónica for publicada, ele ainda é governador, ou se já faz parte da sociedade dos ex. A vida dá muitas voltas.

Legendas por ordem de inserção
Casal Paterson
Os sete pecados capitais - de Yeronimus Bosch
A gula - de Milo Manara
Pecar às claras ou às escuras?
A soberba - de Milo Manara
Bill & Monica
Os Spitzer


* (Também publicada no blogue SORUMBÁTICO)

quarta-feira, março 12, 2008




Morte na Picada - Lançamento

É com muita satisfação que anuncio que o lançamento do me(a)u livro será em 15 de Abril, pelas 18:30 na Fnac do Colombo.

Três grandes jornalistas e meus excelentes Amigos, o Joaquim Furtado, o Joaquim Vieira e o Fernando Farinha acompanham-me nesta empreitada.
O primeiro fará a apresentação da obra, o segundo assina o Prefácio dela e o terceiro é o autor das fotos da capa e do miolo do livro. O que lhes agradeço, pois a companhia deles foi imprescindível.

A Editora é a Via Occidentalis, do Júlio Sequeira, que agora descobri, mas com quem estabeleci uma cumplicidade notável.
Trata-se de contos (short stories) da guerra colonial de Angola em que, infelizmente, estive envolvido como oficial miliciano. Foram publicados neste blogue, como devem saber.

Gostarei muito de os ter lá. Por isso peço que não faltem. Ora essa? Peço, não, ordeno!!! E não há faltas justificadas, nem de mau comportamento. Têm de (e devem...) estar lá. Ponto.

terça-feira, março 04, 2008

Nó matrimonial

Antunes Ferreira

Moça bem lançada, a Ermelinda. Com tudo nos devidos lugares. Boa pra milho dizia-se na tasca do Jaquim, a malta era lixada, a Rua Maria Pia uma confusão, a Meia Laranja uma porra! Droga de toda a qualidade (?), dimensão e feitio, desde o charro até à pastilha, e raparigas da vida, ou melhor, putas. Os carros estacionados fora de qualquer lei, uma boa parte de foras-da-lei, dificultam o trânsito «normal» e os condutores «saudáveis» sabem que, ao passar por ali, enfrentam provas de rali que nem o mais pintado Loeb enfrentaria com destemor q.b..


Continuando. A jovem até já fora candidata a miss não se sabe exactamente o quê, num concurso organizado por revista – hoje diz-se magazine, muito mais bué de fixe – supostamente feminina e patrocinado, vejam lá, por uma marca de telemóveis e por um crédito pessoal pelo telefone, antes deveria ser via pombo correio. Arrancara um honroso terceiro lugar, subira ao pódio, levara faixa. E ramo de flores, está bem de ver.

Como escrevia a Maysa do Correio do Coração do Diário Ilustrado em papel cor-de-rosa (lembram-se? Não? Eu trabalhei lá e, na doença do Roussado Pinto, Ross Pyn para efeitos de livros policiais, dei corpo à hipotética conselheira amorosa. Nos anos cinquenta e tais. Justificado, portanto: não se recordam, nunca o viram, não entram na categoria do Palyentosaurus Akromagnonicus. Eu, sim.), pois, como escrevia a suposta pitonisa, miss sem ramalhete – não chega.

Ermelinda, consequentemente, era objecto de cobiças as mais despudoradas, dos dichotes mais insinuantes e alguns mesmo até menos elegantes, despertava desejos inconfessados, sonhos lubrico-sensuais e assim. Babadinhos, muitos. Presos pelo beicinho, mais. Começaram a surgir os pedidos de namoro. E as propostas mais ousadas, para não dizer indecorosas. Em pleno século XXI, em que o sexo perdera quase todo o encanto que anteriormente tinha, os avanços da malta eram constantes e persistentes.

Abro aqui uma parentética. Na Proto História, mais coisa, menos coisa, em que comecei a olhar para as miúdas, era proibido, por exemplo, o biquini. Havia muito mais coisas interditas aos cidadãos, mas esta é apenas a demonstração da estupidez e do obscurantismo do regime salazarento. Contava-se, então, a anedota do cabo-de-mar que, na praia de Carcavelos, se deparara com uma jovem em tais preparos. A autoridade avançou logo com um severo «minha senhora, é proibido o uso de fatos de banho com duas peças»!

A donzela era francesa, o seu aspecto denotava isso, mas o brioso agente não se intimidara. A lei é lei, há que cumpri-la. Dura lex, sed lex diziam os Romanos – e diziam bem. O caso era que a gaulesa biquinizada tinha os avós naturais de Mirandela e, por isso, entendia perfeitamente o Português e falava-o bem, ainda que carregando nos erres e anazalando sons que não o deviam ser. «Senhorr Põlicia, qual das duas peças querre que eu tirre»? Galhofa, só galhofa. Andava uma mãe a criar um filho, para que ele viesse a sujeitar-se a tais desmandos.

Isto para vos dizer que era mais o mistério que envolvia um tornozelo bem torneado, que permitia considerar como seria o resto, um ombro menos tapado que possibilitava imaginar a continuação dele, uma blusa mais cingida que levava a sonhar com o conteúdo bem dimensionado. Quando entrei para a Faculdade de Direito, a malta atravessava a terra de ninguém, ou seja o largo entre a nossa e a de Letras, encimado pela nova Reitoria, para ir ver as meninas. Era o que então se chamava empernanço de pestana...

Hoje, a nudez e a cópula andam por aí, como o Dr. Santana Lopes, sem peias nem adivinhações. O fruto proibido é sempre o mais apetecido, vox populi. Era, pelos vistos. Agora, todas (ou quase) as práticas sexuais são às escâncaras, nem sequer à média luz. O tango correspondente já foi, será que terá existido o Carlos Gardel? Já basta de parênteses sobredimensionado e sem sustentação aparente. Ponto final, parágrafo. Na outra linha.

Hermenegildo era um dos aspirantes à terceira classificada, sem coroa, mas com buquê. Um trinca-espinhas, tão, tão, tão, que os amigos dele diziam que conseguiria, se o tentasse, tomar banho num carril de eléctrico da Carris. Exagero. Os mais comedidos apenas afirmavam que ele mesmo sob uma bátega de água, não se molhava pois podia passar por entre os pingos da chuva. Nada, não. Era mais um gozo, face ao esquelético.

Para obviar a tais enxovalhos, ainda que amigáveis, o rapaz, no Inverno que corria, passou a usar quatro camisolas sobrepostas, por cima da camisa e da camisola interior. O que lhe dava uma massa corporal aceitável, no mínimo. Ceroilas, dois pares, calças de pijama e a forrar isso tudo, os jines. Não se tornara num hércules-de-bairro, mas estava muito mais apresentável. Feitios.

A verdade é que a Ermelinda atentou nele. E ele, claro, nela. Foi um namoro de fórmula um, terminado na igreja, que os pais dela eram praticantes de missa semanal e comunhão. Hermenegildo, ainda que respeitador e pacato, não se dava muito a essas práticas, nem sequer tinha algum amigo sacerdote. Mas, o dever assim o exigira, e ala que se faz tarde, fato preto e arcaboiço enchumaçado convenientemente, como se lhe tornara habitual.

Segundo andar na Falagueira, por cima de uma loja de móveis e electrodomésticos, olha que novidade por tais bandas, entrada inicial como prenda dos sogros do nubente, mobilias e afins da responsabilidade dos da noiva, os padrinhos dela avalizaram o empréstimo bancário e os dele, gente apessoada e com bagalhuço, um carrito coreano, ar condicionado, GPS e avisadores sonoros da marcha atrás, porreiros para o estacionamento em espaços mais apertados.

Depois da fuga estandardizada no final do copo de água, ei-los no lar, doce, lar. O Hermenegildo, se se despisse a descoberto, seria uma catástrofe, pensava. Quanto ao resto, não tinha dúvidas: a fornicação era tiro e queda, nisso era ele seguro. Mas, na ossadura é que estava o busilis. Que diria a recém casada?Por isso, entre os primeiros beijos e os correspondentes ensarilhansos linguais, sussurrou- lhe ao ouvido cujo lóbulo mordiscava, que se metesse na cama, despidinha, e apagasse a luz, que era um fetiche dele. Assim se fez.

O macho despojou-se das camadas de roupa, ficou em pelota, afastou o lençol matrimonial e com um entusiasmo desmedido atirou-se à esposa. Esta, na escuridão, deu um grito lancinante: Hermenegildooooooo!!!! Porra, que aconteceu , meu amor, tens assim tanto medo? E ela, não meu querido, caiu-me em cima o crucifixo que estava pendurado na parede, por cima da cama. Ele há dias em que um homem não pode deitar-se, à noite.


(Também publicado no blogue SORUMBÁTICO)

sábado, março 01, 2008






HISTÓRIAS DA PJ


Aconteceu

na Primavera marcelista

(conclusão)


José Augusto Garcia Marques


O Dr. Rui Oliveira era um homem sisudo, com pouco mais de trinta anos, alto e muito magro, com um rosto comprido, de olhos cinzentos e maçãs de rosto salientes. Era o tipo acabado do homem duro, determinado, lutador. Era um defensor de causas. Prático no vestir, tinha todo o aspecto de um intelectual dos finais dos anos sessenta. Vim a saber muito mais tarde que era irmão de um oficial da Marinha que eu havia conhecido em Angola, com o qual tinha, aliás, semelhanças fisionómicas, sendo, porém, bem mais alto.

Tive a oportunidade de constatar o estado em que ficou a cara do médico, em consequência das agressões que sofreu.
Toda a zona por debaixo dos olhos, incluindo as maçãs do rosto, encontrava-se, quando o vi pela primeira vez, negra-arroxeada, em virtude das hemorragias causadas pelas pancadas que lhe foram aplicadas. Porque foi assim que ele foi agredido – à coronhada, ao soco e a pontapé.

Para uma adequada identificação dos agressores, convoquei todos os legionários que, no dia da ocorrência dos factos, tinham passado pelo Quartel do Rato
, os quais se deslocaram à sede da PJ, para uma diligência de reconhecimento.

Eram cerca de uma dúzia, e foi-lhes ordenado que se colocassem em fila, num dos gabinetes da brigada do Chefe Daniel, ficando numa extremidade, um pouco à frente, o respectivo Comandante – cuja cabeça pequena e cara de adolescente destoavam no cimo de um corpanzil flácido e mal equilibrado.

A generalidade dos legionários era constituída por arruaceiros de terceira categoria, e alguns deles apresentavam-se fardados. O facto de se encontrarem em grupo e de estarem habituados a praticar desmandos e provocações que ficavam impunes dava-lhes uma sensação de à vontade, própria de quem julga que “está em casa”. Estavam relaxados, trocando sorrisos e graçolas. Pensavam estar na iminência de participar numa mera formalidade, sem consequências.


">O
médico, homem muito frio e dotado de grande auto-domínio, passou em frente da fila, encarando cada um dos legionários cuidadosa e demoradamente, olhos nos olhos, e identificando aqueles que o tinham agredido ou os que, não o tendo feito, se recordava de ter visto no Quartel da Legião. Quando tinha dúvidas, dizia não estar seguro na respectiva identificação. (
Este estava lá e agrediu-me; deste não me lembro; este andava por lá mas não foi um dos agressores; este insultou-me e agrediu-me; este bateu-me com os punhos e com a coronha da G3; e assim sucessivamente até chegar ao comandante de quem disse que entrava e saía da sala).

Em dado momento, principiou a gerar-se e a crescer um burburinho de indignação por parte dos identificandos. Começou em surdina, mas rapidamente as vozes se tornaram audíveis. Visavam, já não o médico, mas a própria PJ, e, mais em concreto, a minha pessoa e a dos agentes que estavam presentes na identificação. Às tantas, ouvi dizer, com intenções nitidamente provocatórias: “agora quem manda já são os comunistas”.

Entendi, para evitar males maiores, apelar à autoridade e ao sentido de chefia do Comandante, a quem me dirigi com aspereza e em tom de comando. Disse-lhe que ou ele era capaz de impor a compostura e a disciplina, ou eu me via obrigado a tomar as medidas que a lei me proporcionava para agir contra desordeiros e insubordinados.

Não sei se por receio de que eu pudesse ordenar alguma detenção, se em virtude da postura militar com que fiz a exortação ou se por espírito de corpo para com a Legião Portuguesa (que ali representavam), o certo é que o apelo surtiu efeito. Metido em brios, o Comandante resolveu impor-se e, em face das suas ordens, os homens mudaram de atitude, tendo passado a comportar-se com o correcção devida às circunstâncias.

Entre os presentes havia indivíduos de muito baixo nível social ou com manifesta falta de capacidade de discernimento, a par de outros, recrutados entre veteranos da guerra colonial.
Lembro-me de um deles, figura conhecida da noite de Lisboa - e adepto ferrenho do Sporting -, que era um dos mais barulhentos e incorrectos. Procedia assim em grupo, porque, como tive a oportunidade de constatar mais tarde, numa diferente investigação, quando interrogado sozinho, transformava-se num autêntico cordeiro. Penso ter subido muitos degraus na escala da sua consideração quando alguém o informou de que eu era adepto do Sporting e que também tinha passado dois anos na guerra de África.

Na sequência da sessão de reconhecimento e de outras diligências realizadas, foi-nos possível identificar a maior parte dos autores do assalto à sede da CDE e das agressões na pessoa do médico Rui Oliveira. Entretanto, antes de terminar a minha comissão de serviço na PJ, o que aconteceu em meados de 1970, pus os meus directores ao corrente das conclusões das investigações nos processos em referência.

Foi-me então perguntado se os factos provados não se limitavam a simples “bagatelas penais” - ofensas corporais ligeiras, injúrias e simples danos? Confesso que a pergunta me deixou surpreendido, em face do desconhecimento que revelava do progresso das investigações – que eu, como me cumpria, ia reportando periodicamente a quem de direito. Respondi, esclarecendo que havia também ofensas corporais graves, além de um crime de cárcere privado. A estupefacção apoderou-se dos meus interlocutores: “Mas o cárcere privado está provado? E foi praticado por legionários?” Respondi afirmativamente.

Antes de deixar a PJ – à qual haveria de voltar no final da década de setenta, então para o exercício de funções de direcção -, deduzi as competentes acusações, com a previsão da totalidade dos crimes praticados, incluindo o de cárcere privado, a que correspondia uma pena de prisão maior – de três anos a oito anos.

Qual não foi o meu espanto, quando, já no exercício das minha novas funções, tomei conhecimento, pelo “Diário do Governo”, que, no elenco dos crimes amnistiados aos estudantes de Coimbra que tinham recebido com insultos e imprecações o “Venerando Chefe do Estado”, Almirante Américo Tomás, no que foi um episódio de resistência ao regime com grande impacto mediático, se encontrava incluído o crime de cárcere privado. Escusado será dizer que os beneficiários desse “gesto magnânimo” não foram os estudantes da Lusa Atenas, mas sim os legionários do Quartel do Rato.

***

Os factos ocorridos no desfecho da história que acabei de relatar constituíram a minha primeira revelação de quão vulnerável pode ser o “mundo da Justiça”, em certas conjunturas. Naquele ano de 1969 eu tinha renunciado ao gozo de férias, seguro da importância em concluir tão depressa e tão bem quanto possível algumas investigações que me tinham sido distribuídas, entre as quais se contavam os dois processos a que me referi. Não obstante, uma vez realizadas as eleições de Novembro, o “mundo” voltou ao que era antes – e à “Primavera da nossa esperança”


sucedeu o “Outono da nossa desilusão”. A amnistia que branqueou os crimes dos legionários deu razão àqueles que, afinal, pensavam que tudo não era mais do que uma simples formalidade. Afinal, apesar do esforço da PJ, eles estavam efectivamente em casa ...