domingo, fevereiro 03, 2008




A ROTA DO CALENDÁRIO

Luar de Janeiro


Maria Lúcia Garcia Marques
Em Janeiro, a lua levanta-se cedo. Quando a noite se fecha já ela lá está, de sentinela. Não deleitosa e deliquescente, em cenários de amor, subindo enorme e lenta, sorvendo as estrelas e a Via Láctea – isso é lá mais para Agosto – mas fria e altaneira, régio espelho do Sol no seu manto negro orvalhado de astros. Uma Senhora!

Mas com fases. Ou faces ... Cada noite sua cara: uma vez mais um bocadinho, outras menos um bocadinho, outras ainda coisa nenhuma e, de quando em vez, eclipsa-se! Artifícios de mulher bonita! E poderosa. Regula o mundo, comanda o tempo, pauta até as vidas das mulheres regendo-lhes os ciclos férteis. Vinte e oito dias – de lua a lua, de cheia a vaza com os quartos pelo meio. Nasce, cresce, diminui, desaparece... Renasce e recomeça, num eterno retorno, marcando numa periodicidade sem fim os ciclos da vida. Símbolo dos ritmos biológicos controla todos os planos cósmicos regidos pela lei do devir, é a rainha dos três ceptros: o da fertilidade, o do tempo que passa, o do saber teórico, conceptual, racional, espécie de conhecimento por reflexo tal como ela própria é reflexo do Sol.

Foi aliás esta dualidade universal que Sophia de Mello Breyner condensou no “Poema de Amor de António e Cleópatra”:

Pelas tuas mãos medi o mundo
E na balança pura dos teus ombros
Pesei o ouro do Sol e a palidez da Lua


Ela, Sophia, a mais solar das vozes, toda poesia, toda mulher, celebra ainda em verso as felizes núpcias da sua condição:

De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua
(Poesia 1, 1944)

E há algo de feminil e trágico, entre véu e sudário, que se desprende do halo da esfera lunar, algo que nos lembra os versos dos poetas excessivos:

Vai alta a lua na mansão da Morte
Já meia noite com vagar soou
(...), Soares de Passos (Noivado do Sepulcro, 1856)
ou dos poetas doloridos:

A lua sobe no horizonte
E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima em mim
(...), Fernando Pessoa/Álvaro de Campos (Ode Marítima, 1915).


Mas tal como há quem diga que o que faz bonitos os olhos é o olhar, também o que faz da lua o seu encanto é o... luar, em que a magia lhe vem daquela pureza envolvente, daquela superior distância que tudo perece desculpar, acendendo uma liberdade transgressora feita de todas as ingenuidades do mundo Foi assim que na singeleza da sua pena de poeta popular, Augusto Gil tão bem o retratou no seu poema “O Passeio de Santo António” que incluiu na obra a que chamou precisamente “Luar de Janeiro”:

(...) O luar, um luar claríssimo nasceu.
Num raio dessa linda claridade,
O Menino Jesus baixou do céu,
Pôs-se a brincar com o capuz do frade.

Perto, uma bica de água murmurante
Juntava o seu murmúrio ao dos pinhais ...
Os rouxinóis ouviam-se distantes.
O luar, mais alto, iluminava mais.

De braço dado, para a fonte, vinha
Um par de noivos todo satisfeito
(...)



Sem suspeitarem de que alguém os visse
Trocaram beijos ao luar tranquilo.
O Menino, porém, ouviu e disse:
- Oh, Frei António, o que foi aquilo?

O santo, erguendo a manga de burel
Para tapar o noivo e a namorada,
Mentiu numa voz doce como o mel:
- Não sei que fosse. Eu cá não ouvi nada
(...)

Gracioso e comovente o quadro, a reconciliar-nos com o gosto e o prazer das coisas simples e a entrar de concerto com o velho adágio:

Lua, a de Janeiro
Amor, o primeiro!

1 comentário:

Anónimo disse...

Seja muito bem «re-voltada». Nunca tinha feito nenhum comentário, ainda que seja sua leitora e goste muito do que escreve. Mas hoje, no reencontro consigo, digo-lhe sinceramente, muito obrigada