quarta-feira, maio 03, 2006

Chupar os dedos na Rebelva



Antunes Ferreira
No coração da Rebelva, ali à volta do antigo lavadouro público, existem restaurantes para dar e vender. É quase uma orgia gastronómica. Desde os mais corriqueiros até aos chineses, passando por brasileiros e, até, alentejanos. Come-se bem, por ali. Gente de Carcavelos constitui a principal clientela. Mas, como se pode imaginar e dada a fartura de estabelecimentos, há comensais das mais variadas origens, a começar por lisboetas, vizinhos, que descobriram o lugar e tornaram-se fregueses.

Porquê Rebelva? Para questões destas, as respostas são, essencialmente, organizadas a partir das origens dos povoados, ainda que as mais das vezes se tenha de recorrer à oralidade, pois que escritos não se encontram. Não é, porém, o caso.

Em 1758, três anos depois do terrível terramoto, o Poder enviou a muitas pessoas entendidas como qualificadas para o efeito, um questionário que se destinava a conhecer o que existia, quem ali habitava, que propriedades, isto a propósito dos danos causados pelo abalo telúrico.

O cura Avellar

Em Carcavelos, o destinatário foi o cura António Coelho de Avellar, ou Auellar, o qual sintetizou as consequências do sismo na seguinte resposta, a 26.ª ao questionário: «Padeceo bastante ruina no terremoto de 1755 porem vaose reparando.» São, igualmente, do clérigo as informações que se transcrevem, com o respectivo número de ordem.

Faça-se aqui uma simples advertência. Pareceu ao escriba que a manutenção da grafia da época era a solução mais interessante para este texto. Por tal facto, já no enunciado anterior assim se fez e, de seguida se continua a fazer. Os poucos que, quiçá me leiam, terão de fazer o obséquio de tentar entender. O que, aliás, não se me afigura de extrema dificuldade... Escrevia, assim, o cura Auellar:
«1- O lugar de Carcavelos he pertencente ao Patriarcado, e termo da villa de Cascais, e Freguesia de N. Senhora dos Remédios.
2- São terras donatarias do Excellentissimo Marques de Cascais.
3- Tem setenta e dous vizinhos e perto de trezentas e tantas pessoas.
4- Está situado em huma planissia e descobrese delle quatro lugares 1 a Rabelba 2 S. Domingos 3 Sasueyros 4 Oeyras: quasi todos distantes hum tiro de pessa.
(...)
6- Tem a Parroquia dento no mesmo lugar e não tem mais lugares a dita Freguezia.
7
- O Orago da dita Freguezia hé N. Senhora dos Remedios tem tres altares o altar mor e dous Coletraes, porem por hora servemse só do altar mor por estarem arruinados os outros altares tem no altar mor colocada na Image de N. Senhora dos Remedios, e os dous Coletraes da parte do nascente era do Senhor Jesus e o da parte do poente de N. Senhora do Rozario tem huma nave e huma Irmandade do Santissimo Sacramento.
8- O Parrocho hé Cura e hé apresentação dos Freguezes e poderá render sem mil reis.»


Um registo valioso


De acordo com o livro «Registo Fotográfico de Carcavelos e alguns apontamentos históricos-administrativos» da autoria de Jorge Miranda, Guilherme Cardoso e Carlos A. Teixeira, poder-se-á talvez considerar a mais antiga referência a Carcavelos a que a seguir se transcreve e diz respeito à eleição de dois procuradores - moradores de Carcavelos e Sassoeiros - pelo concelho de Cascais, para jurarem o contrato de casamento de D. João I de Castela com D. Beatriz no dia 19 de Julho de 1383:

«Em nome de deus amen/. Sabhom quantos esta carta de procuraçom virem que na era de mil e quatro centos e vynte e hun annos dez e nove dias de Jullo em Cascais aas portas do castello hu sooem de ffazee o concelho seendo no dito logo em rollaçom Joliam Domjnges Lourenço Alvazis da dita villa e Martjm Domjinges e Jolian Domjinges vereadores do concello e Martjm Domjnges procurador do dito concello e Nuno Rodriguez alcaide (...) homêes das suas vyntenas seendo todos juntos chamados peo Johane Estevez porteiro do concello (...) os sobreditos Alvazjs e vereadores e alcaide e procurador e homêes bôus e vyntaneiros com dos suas vyntenez dyzerom que ffaziam seus procuradores espiçiais soficientes aumdosos Stevom Domjngez morador em Carcavellos e Domjnges Lourenço morador em çaçoeiros termhos da aim vila de Cascaas(...).»

Ainda que o motivo possa ser, hoje, motivo de algum olhar dubidativo-aljubarroteiro, (bem se teve de esforçar o Condestável Nuno Álvares Pereira para amarrotar os perros castellanos. Isto poderia ser motivo de outro comentário meu, suficientemente crítico, sobre a sobranceria que muitas vezes é usada para encomiar os Atoleiros ou a citada Aljubarrota e, no mesmo contexto, o João das Regras, para não falar no novo rei D. João I), o facto é que aconteceu. E a menção do morador em Carcavelos é, neste contexto, realmente importante.

Oferta «multi-racial»

Pois, voltando ao abundante recheio de restaurantes e afins existente na Rebelva, tenho de comunicar, sem qualquer intenção de emular os autores atrás citados, que por tais paragens tenho... parado, para ingurgitar pitéus que, as mais das vezes possuem uma excelente relação qualidade-preço, e atestam indesmentivelmente, as virtudes das cozinheiras que elaboram os mesmos para gáudio dos fregueses.

E, face à oferta «multi-racial» (que não tem nada a ver com o chavão pseudo-nacionalista da salazarenta época) de manjares, já tive, também, oportunidade para me amesendar nuns quantos para comprovar a veracidade do anúncio dos chupas da minha infância - «é pró menino e prá menina, dois um tostão, cada cor seu paladar!!!»

Esta é, assim, uma evocação quase pantagruélica da Rebelva, ali a dois passos da auto-estrada que leva de Lisboa a Cascais. Sem querer influenciar quem quer que seja, sem quaisquer comissões dos prestadores de serviços culinários, nem sequer de descontos durante tais surtidas, permito-me deixar, apenas, uma modesta sugestão: vão até lá – e, depois, digam-me se chuparam os dedos.




Frango Dourado

Cá estamos. Este é um dos restaurantes indígenas no centro da Rebelva. Casa simpática, limpa, arrumada. Sem primores de decoração, mas com gente boa, atenta e, sobretudo, de grande disponibilidade. Bem como paciência e sorrisos para aturar os fregueses, o que é de registar nestes tempos que vão correndo.

O Paulo Campos, um dos proprietários, encarrega-se do atendimento dos visitantes/gastrónomos. Alguns apenas comilões, é certo, mas o Sol quando nasce é para todos. Duas acompanhantes no serviço das mesas: a Vilma, brasileira de origem, portuguesa de importação, e a Lúcia. Esta, por vezes, dá a estratégia na cozinha. Costumo dizer que tal se deve a mau comportamento da jovem. Donde, o castigo nos tachos e panelas...

É absolutamente mentira. Tão só uma necessidade e o prazer concomitante da Lúcia. Que fica então ao lado da Dona Virgínia, a Senhora Cozinheira - título que bem merece. Passe embora o calino da afirmação, aqui temos umas mãos de fada dos temperos, dos refogados, dos cozidos, dos devaneios poetico-culinários. A lista que se propõe ao cliente não é muito ampla. Mas a Dona Virgínia valoriza-a: faz tudo bem feito. Ponto.

A sala primeira não é grande. Mas, avance-se por corredor e desembocar-se-á num outro salão, do mesmo estilo de simplicidade e limpeza. E um arco ainda dá para outro. Quem diria? Vai, agora, acrescentar-se uma esplanada em quintal adjacente, abençoado do alto pela grelha que rescende. A inauguração está a rebentar, com convites e tudo.

Não se faça crescer a água na boca com os manjares oferecidoa às papilas gustativas ansiosas. Desde a feijoada à brasileira, um mimo, até às tiritas de porco grelhadas, um espanto, passando por churrascos e outros e antecedidos por entradas de bater as palmas. Gostam de ovas cozidas e em vinagrete? Pois experimentem e não se queixarão.

Não é o autor um crítico ou diplomado em apreciação gastronómica. Mas jura pela sua virgindade (é da colheita de 20 de Setembro, logo Virgo...) que apetece ali comer. Sem espanpanâncias, sem arrebiques, sem ostentações. Come-se bem e já está. De tal sorte que se volta. Eu - voltei, volto e voltarei. E sem pensar em desonto por mor do escrito. A vida tem que se lhe diga. E a ousadia de investir não se compadece com borlas...

Tenha-se, porém,o maior cuidado com dias festivos, do tipo do Pai, da Mãe, ou pontes et aliud. Previna-se e reserve-se mesa. O Frango enche e apesar do que se disse sobre as instações, é tanta a afluência que elas rebentam pelas costuras. E, apesar do reforço da equipa com jogadores ocasionais, nem toda a simpatia, cordealidade, gentileza e outras que tais do Paulo, Vilma e Lúcia chegam para as encomendas. Mesmo assim, avance-se. Ôi, genti, a moqueca di camarão está uma dêlicia - qui nem falá, pô!

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