quarta-feira, maio 17, 2006

Escrever em chinês

Antunes Ferreira
Quinze mil ideogramas integram a escrita chinesa. E mais: estão organizados em quatro conjuntos ou classes. Por conseguinte, Amigos, ao estudo e aprendizagem. Se começarem já, daqui a uns anitos poderão escrever uma que outra palavra. O que, não sendo muito, é motivo de satisfação e de palmadas nas costas. Porra!, você até sabe escrever em chinês.

Pode-se sempre recorrer ao Google – até para aprender a língua do antigo Império do Centro. Aliás o gajo é como a panaceia universal – serve para tudo, cura tudo, tem tudo. Aqui há uns tempos, perguntei a um jovem formado (e com excelentes notas) o que entendia ser a cultura. O meu interlocutor avançou no tema, com uma abundante série de considerandos, o que só lhe ficou bem.

Mas antes de ele aterrar na conclusão, eu, maléfica e insidiosamente, atirei-lhe: A cultura, hoje, será o Google? Má pontaria ou ponto de mira limado. Respondeu-me a jacto: O Google é imprescindível. Mas é preciso ter o suficiente de cultura para se saber o que se procura. Nem entupi. Limitei-me a concordar com um aceno de cabeça e, ainda, a cumprimentá-lo. Merecidamente.

Um dia, quando cheguei à RPC pela primeira vez – estava-se a 31 de Dezembro de 1987, já decorriam em plena Universidade de Pequim os primeiros movimentos contestantes que iriam, um ano e meio depois, desaguar na praça Tiananmen – tentei saber como era o ensino do chinês a nível universitário. Debalde. Por trás de sorrisos indefinidos desenhados a traço de carvão na face, as autoridades nem queriam ouvir falar em alunos, quanto mais em ensino.


Tive uma só oportunidade – e aproveitei-a. Sem saber ler nem escrever (em chinês) e, até, sem saber como, consegui chegar ao campus universitário e falar com uns estudantes, num inglês mais ou menos mascavado, menos ou mais macarrónico. Mas perceptível. As palavras Glasnost e Perestroika eram veneradas. E o senhor Mikhail Gorbachev também. Mais do que o senhor Buda ou o senhor Confúncio. Aliás, num país militantemente ateu, ainda se encontravam naquelas alturas, muitas pessoas religiosas. É assim.

«Motivo de saúde»

Naquele local iria decorrer a chamada revolução estudantil pela democracia, que seria reprimida por uma sangrenta intervenção militar em Junho de 89. Era a época da sucessão rápida de Hu Yaobang por Zhau Ziyang, este último afastado da cúpula «por motivos de saúde», mas que, daquela data em diante se conservaria 16 anos em prisão domiciliária, situação em que viria a falecer. O seu apoio não muito discreto aos manifestantes era um poderoso «motivo de saúde.»

Voltei umas vezes mais à China, tendo, inclusive, conhecido o autor do slogan um país, dois regimes, o inventor da economia socialista de mercado e o defensor do socialismo com características chinesas, Deng Xiaoping. E em todas elas tentei saber alguma coisa da fabulosa escrita chinesa. É ela a «culpada» do facto de dois habitantes, um de fala mandarim, outro de cantonense, se poderem entender, já que oralmente isso é impossível.

A arte da caligrafia é absolutamente fascinante. Em muitos locais da mais diversa ordem, há calígrafos que desenham frases com o seu pincel e tinta negra e vermelha em diversos materiais. Tenho em casa, no meio do bric-a-brac que por ali sobrevive, uma esteira de bambu com uma frase de uma crónica minha sobre o País, terminada com a minha assinatura. Não o garanto; mas afiançaram-mo.

A República Popular da China continua a ser uma ditadura de mistério: só os chineses eram capazes de viver politicamente sob o despotismo e economicamente sob o liberalismo a la Beijing. Há quem lhe chame pragmatismo; há quem diga que é o exemplo acabado da hipocrisia. Eu penso que é oportunismo puro, salpicado ao de leve por um enigmático e duvidoso realismo.

O tempo corre e não há modo de o parar. Felizmente. Há por aí menino que se o pudesse fazer, estando no poleiro... O dia 8 de Agosto de 2008 é já ali, depois da curva. Para ele, que o mesmo é dizer para a inauguração oficial dos próximos Jogos Olímpicos que decorrerão na capital chinesa, trabalham já, sabem quem? Um americano e um chinês. Para que, segundo as autoridades comunistas, ela seja o mais linda possível.

O primeiro é um tal... Steven Spielberg. O segundo é o senhor Zhang Yimou, igualmente cineasta, vencedor de vários certames de filmes, tais como Veneza, Berlim e Cannes. Ambos figuras da Sétima Arte, ambos considerados dos melhores mundiais.

Estou numa perfeita expectativa. Os caracteres chineses têm, forçosamente, de ser elemento incontornável nesta manifestação que, quer se queira, quer não, é uma vitória inquestionável do PCC. Será que haverá alguma gente que os entenda? Aos caracteres, não aos comunistas chineses. Que esses, não há como entendê-los.

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