segunda-feira, maio 08, 2006

Gosto muito do fado





Antunes Ferreira
O Vasco Leitão, estudante (?) de Medicina foi interpretado pelo grande Vasco Santana no primeiro filme sonoro português «A Canção de Lisboa». Isso aconteceu em 1933 – não há volta a dar, cai-se sempre no mesmo: a Constituição fascista era do mesmo ano, que porra! – quando Cottinelli Telmo o realizou. Do elenco constavam ainda outros nomes incontornáveis do cinema luso: António Silva, Beatriz Costa, Teresa Gomes Sofia Santos e outros que aqui não se mencionam porque seria como palmilhar a légua da Póvoa.

O tipo vive da mesada das tias que, de Trás-os-Montes, lha enviam mensal e regularmente. As duas, que nunca vieram à capital, consideram-no um aluno cumpridor e com boas notas. Ele assim as vai informando... Ora, o Vasco prefere os retiros e os arraiais, as cantigas populares e as mulheres bonitas, em particular Alice (Beatriz Costa), uma costureira do Bairro dos Castelinhos, o que não agrada ao pai desta, o alfaiate Caetano (António Silva), que sabe que o estudante está crivado de dívidas...

Os azares de Vasco sucedem-se: no mesmo dia em que é reprovado no exame final de curso, recebe uma carta em que as tias lhe anunciam uma visita a Lisboa! Acumulam-se, igualmente, as situações mais caricatas, o que, com o naipe de actores que o celulóide regista, é normalíssimo. A cena do «Chapéus há muitos, seu palerma!» filmada no Jardim Zoológico de Lisboa, é de antologia.

No final, como convinha e competia à época e ao regime salazarento, acabou tudo em bem, com o Vasquito – como o tratavam as tias – a obter a nota mais alta no novo exame, depois de ter sido descoberto pelo Manuel Santos Carvalho, desempenhando o papel de dono de um café/casa de fados, como um fadista de estalo. O novo doutor deixará de cantar o fado e as últimas cenas da fita são os casamentos simultâneos de vários actores. Como diriam os franceses – tout est bien ce qui finit bien...

La Féria, o inefável

Quem não se deliciou com o filme, que a televisão tem passado inúmeras vezes? Tal tem sido o impacto da obra que o inefável Filipe La Féria o adaptou ao teatro musicado, afirmando-se no folheto vendido aos espectadores do Politeama que se trata de uma homenagem a Lisboa e ao humor português. A peça estreou-se a 17 de Setembro do ano passado e, como acontece com todas as produções do encenador, mantém-se em cena ainda hoje. Desculpar-me-ão por este intróito tão pesado por longo, mas chega-se agora mesmo ao cerne da questão.

Eu gosto do fado, ao contrário do Leitão, que dizia odiar a chamada canção nacional, antes de ter conquistado os aplausos dos entendidos na mesma. «Abaixo o fado!!!» berrava, com estrondo, mas sem muita convicção. O que, de resto, se revelaria uma mentirola do tamanho de um camião TIR, pelo menos. Poderá ser politicamente incorrecta esta minha afirmação. Que se lixe! O politicamente correcto não me diz nada. Por algum motivo me classificam de iconoclasta, o que me dá muito prazer.

Cantar, sempre

Eu gostava de cantar o fado e, ainda hoje, o tento fazer às vezes e se me deixam. Não me questionem sobre os resultados, mas posso jurar pelo sangui di Cristo (como dizem os angolanos) que nunca fui agredido quando ensaio atirar umas estrofes de letras antigas. Uma confidência. Com os meus dezasseis anos, comecei a aprender a cantá-lo na falecida «A Toca» do falecido Carlos Ramos. É verdade. Até fiz alguns duetos, à desgarrada com o enorme fadista que ele era. E o «Não venhas tarde» foi a minha coroa de glória. Efémera, se é que existiu.

Adoro o fado, por conseguinte. Adoro-o e ponto. Quando se diz que, juntamente com o futebol e Fátima (os três fff...) ele é um dos ópios do povo, tenho de acentuar que me estou nas tintas. Sem mais. No rádio do meu chasso, há vários CD de fadistas o(a)s mais diverso(a)s. E não me envergonho. Sabe-me bem percorrer quilómetros, mesmo os escassos que completo na cidade, ao som das guitarras e das violas que acompanham muita gente boa. Desde a Marisa até ao Camané, desde a Mafalda Arnaut até ao António Pinto Leite.

Mas, perdoem-me o desabafo intencional e não contrito. O que mais ouço é um disco do dito cujo Carlos Ramos, onde estão registados êxitos que me fazem recordar as noites do Bairro Alto, findas pela intervenção enérgica do Henrique Silva Ferreira, meu saudoso Pai, que entendeu que não gastara umas largas massas comigo para que me cursasse em corrido lisboeta.

Perdeu-se, quiçá, um vulto da fadistagem? Creio que não, sinceramente. Imitar o velho Alfredo Marceneiro era a minha maior qualificação. Logo, nunca cheguei a ser um vero fadista; um arremedo, talvez. Isso não me impede de saber de cor letras e letras do antigamente. Mesmo da Amália que, ainda que fosse uma intérprete privilegiada, não era quem me enchesse as medidas. Não se assustem. Também sou fadistamente incorrecto. Que Deus me perdoe, se é crime ou pecado, mas eu sou assim e fugindo ao fado, fugia de mim...

1 comentário:

Ricardo Belo de Morais disse...

É preciso ser "crescido" para gostar de Fado. Só podemos, na verdade, identificar-nos com ele depois de viver bastante (e/ou intensamente), de sofrer, de ter revezes, de ter sucessos e alegrias. Ouvir Amália cantar "e é à noitinha/quando a tristeza me invade/que choro sozinha/para chorar mais à vontade" não faz qualquer sentido para os "putos" que usam as noites para os copos e as discotecas. Mas faz todo o sentido para os "adultos" de todas as idades. Até porque o Fado (já) não é só tristeza, nem bacalhau ou copos de ginginha. É um B.I. - e renova-se periodicamente, à semelhança do que acontece com os nossos rectângulos cartonados de identificação pessoal. Além do mais, é e será sempre "nosso". E nos dias que correm, só isso já é reconfortante.