Pista de Zala - Reabastecimento
MEMÓRIAS DO INFERNO
A mata mata
Antunes Ferreira
Estou sentado no estribo duma White com escape vertical encostado à cabina de condução, branca, 12 toneladas. O cacimbo desce lenta e opressivamente sobre a mata. Acabo de chegar a Zala, vindo da Madureira, uma picada de má memória. Trata-se de uma fazenda de café, não muito danificada, que o dono se esforça por manter em actividade. Um pelotão reforçado da OPVDCA assegura a defesa da rubiácea e do pessoal. Primeiro o fruto, disse bem, só depois a malta.
Molhado até às cuecas, como é hábito dizer, ainda que por aquelas bandas seja mais até aos colhões. Do padre Inácio, acrescenta sempre o Candeias, sargento de devoção, enfermeiro de profissão como ele a si próprio se define. A pirisca, também ensopada, já não fósforo muito menos isqueiro, nem que fora de pederneira que a volte a acender. Melhor do que a chuva mola tolos (que nós somos, todos, tolos) nem os Bombeiros Voluntários de Carnaxide.
Não sei por que raio me vem ao cristalino bestunto essa Carnaxide prima e vizinha de Linda-a-Velha. Quem sabe se a solidão no meio de quase três centos de homens, quem sabe se o silêncio ominoso que vem da mata, quem sabe se esta merda de vida me leva a sítio por onde passei escassíssimas vezes, nos meus 14, 15 anos despreocupados, antes do meu Pai me faltar, tinha então 18.
O Lavado, alferes médico (sem galões, manda o Regulamento), ajoujado sobre ele próprio como se todos os galenos e esculápios do universo se tivessem sentado em cima dele, palita os dentes com o bico da faca de mato. Infrutiferamente, que a lâmina não é para ali chamada, dizendo quem sabe que serve, entre outros préstimos, para cortar os gorjas aos turras. A quem outros chamam nacionalistas.
O gajo é de seu nome próprio João. A malta, incluindo soldados, cabos, até mesmo arvorados, furriéis, sargentos de acordo com as escalas e oficiais chama-lhe João toda a Semana. É certo que, de quando em vez se desenfia até Luanda a pretexto de umas consultas no Hospital Militar; ou serão umas análises, quiçá umas chapas que o raio-X é bom justificativo.
Por aqui não há censura
É um moço de Pias, terra de vinho a preceito e de gajas boas, diz ele. Fala correntemente alentejanês e consegue, mesmo assim, fazer-se entender pelo pessoal que vai à consulta quotidiana. Com o Candeias nunca está às avessas. Formam dupla mais operacional do que o Batman e o Robin, o que é, podem crer, muito difícil. O Candeias tem pregadas na parede por cima da cama umas fotos de enfermeiras peladinhas. No mato não há censura, pelo menos para aquilo. Nem o padreca capelão quando ali vai se chateia, antes aprecia os dotes das meninas.
Já o João exibe na banquinha de cabeceira (?) um instantâneo da esposa amantíssima com o casalinho que têm. O doutor já chegou aos 34, foi repescado em prova aflitiva que não desportiva. «Se ê cá nã tivesse os catraios, bê que me pirava prá Holanda. Assim, tenho estes galfarros ca mãe em Luanda, no bairro da CAOP, sem me darem muitas ralações nem me aventarem quando vou a casa...»
O breu nocturno caiu que nem pedregulho em charco. A noite em África vem assim, de supetão, o sol entra que nem tiro no horizonte, durante a estação das chuvas a que no Puto se chama Inverno. Aqui é o Inferno, e só pelos Verões decorrem os famosos pores-do-sol alaranjando o astro que adquire então uma aparência frutosa e opressiva.
Meus... amigos
O Candeias aproxima-se, meio descambado, já despiu o camuflado, só uma camisola de alças alagada e uns calções a cobrir-lhe as partes. «Meus alferes...» «Fala baixo, mê sacana, senão os cabrões ainda te ouvem e fogacham-nos sem dó nem piedade. Diz antes amigos, que é menos perigoso e por vezes até é verdade.»
Madureira - sanzala
Quem assim fala não é gago nem mija na cama. É o Lavadinho, está bem de ver. «Diz lá, então, ao que vens, ó seringa. Pareces-me uma agulha enferrujada. Vá, diz lá...» O sargento sem divisas – não é pela segurança, é porque não tem onde as enfiar numa camisola daquelas – arreganha a cepa. «Pois saiba Vossa Senhoria... - senhoria, uma merda e bem cagada – que os patrícios que levaram os zagalotes, já patinaram. Foi um ar que lhes deu...»
«Mas e as aspirinas ML? Nã fizeram nada?» retorque o licenciado.»
«Não senhor, meu amigo. Mesmo sendo Laboratório Militar, os comprimidos não tapam buracões de bala de Breda, ainda por cima despejada às rajadas. Os três entregaram a alma (se é que a tinham) ao gajo lá de cima, sem um pio. Foram-se... Amanhã, se calhar, há mais.»
Foi agora? Não senhor, já tinha sido há mais de duas horas, coisa para umas duas e meia, talvez. A faca de mato reencontrada a bainha, já não palita nada. Lavadas levanta-se, aguentem vocemecês aí um momento que ê vou desovar, nã demoro nada, o que tratando-se de alentejano de Aljustrel quer dizer umas horitas. Mas não. Ei-lo de volta com ar mais desanuviado.
«B om, vamos lá ver, também nã se perdeu muito, quase nada. Os filhos da puta só tiveram o que mereceram. Eles é que começaram. Nós até tivemos um morto, estraçalhado pela cabrona da mina que nos armaram, e dois feridos, um que cegou e outro que ficou sem uma mão, logo a direita. Os gajos – que se lixe! Nã fazem cá falta nenhuma, bê pelo contrário...»
E que se lhes faz? Já está feito. Abriu-se uma cova e meteram-se os três. Se calhar queriam uma para cada um, os lorpas. «Muito bê. Mas porque carga de água tu nã vieste avisar-me mais cedo?» «Estava a ouvir a rádio. Davam o Benfica com uns estranjas que não percebi muito bem quem era. Os nossos venceram!» Ainda que seja motivo bastante, já perdi a tesão. Eu até sou do Sporting.
1 comentário:
Gramo à brava estas histórias da guerra no Ultramar. Também por lá andei, fui cabo maqueiro em Nampula, a Angola só de passagem, no porto de Luanda.
A mata mete medo, mas se podemos pensar um bocadinho, é linda. Gostava de voltar lá, agora sem combates nem fardas camufladas. Tiros só na caça.
Por isso um pedido: Senhor Antunes Ferreira, escreva mais sobre isto. Ponha as politiquices de lado e conte à malta essas estranhas coisas da guerra. Já pensou em escrever um livro?
Cumprimentos e muito obrigado
Enviar um comentário