sábado, junho 03, 2006






MAIS GUERRA COLONIAL

Não nasci para heroi

Antunes Ferreira
C
hegados a Angola, os homens desembarcaram no porto de Luanda. À espera tinham destinos abissalmente diferentes, ainda que a maioria soubesse que ia direitinha para a mata. Mata de árvores, está bem de ver, já que a outra ainda não começara a roer-lhes o pensamento e os tomates. Após ter descido do Uige, os meus cunhados que se penduravam em volta da minha mulher, começaram logo de entrar pelas perguntas. Já me conheciam, ainda como o namorado da Manazinha, mas esta nova orgânica familiar era diferente.

E começaram logo de contar estórias. Vindos de Goa uns dois anos antes, qual quê, menos, com uma estada de meses em Lisboa, tudo para elas e ele era novidade. Tinham passado por locais nunca sequer imaginados, mas estavam satisfeitos. «Henrique, já que estamos aqui, sabes a do soldado acabadinho de pôr pé em terra que viu um ardina meninote?» Não sabia. «Vá, conta lá…» «O soldas perguntou-lhe. Ó miúdo, o jornal é d’hoje?» «Não patrão, é dojiquinhento…» Que o mesmo é dizer que ainda havia periódicos a vinte e cinco tostões… E patrões.

O batalhão mobilizado por Infantaria 1, que tinha estado a treinar para a porrada no «meu» quartel, ia arrancar para Zala. Sob os comentários dos velhos que tentavam amedrontar os maçaricos. Aquilo é fodido. É só porrada. Um gajo nem sabe para onde se virar. E não tem safa. É calar e comer. Sobretudo comer nas trombas e no cu. Quem ainda não estivesse habituado ao linguajar, era a altura indicada.

Eu ficava por Luanda, mais precisamente na CCS-QG. Oficial de Justiça, milicianíssimo, em rendição individual, com a Raquel na mesma cama e os catraios no quarto ao lado – que mais queria? Os outros iam jogar aos paus e às pedras com os que então chamavam turras. Sem a família ao pé, está bem de ver. Num sítio daqueles só lhes restava a prática solitária, mais ou menos empenhada, menos ou mais frequente.

Pelos na palma da mão

Desta maneira ainda arranjo pelos na palma da mão direita, diria mais tarde o sorja Serafim, antigo cabo RD e furriel da tropa local, praça de primeira. Também havia as de segunda, que ainda falavam mal o português e ao rancho comiam peixe seco e funge de bombó. Alguns deles, básicos. Não tinham sequer concluído a recruta. Ou melhor. Tinham sim, meu capitão, mas haviam chumbado. Trocavam o passo e mal sabiam pegar na canhota. Uns más- línguas diziam que fora de propósito, a fim de não irem para os tiros. Sacanas. Verdadeiros?

A boa vida da ilha de Luanda, com a família à perna não fosse a tentação dos ébanos femininos, era mais Nocal e camarões. Para mim, porque outros preferiam a Cuca do Manuel Vinhas. O Cacuaco tornava-se local de peregrinação aos domingos. Marisco – e bom! E baratíssimo! – à fartazana. Ia-se ali com devoção e ritual iguais como se se fosse a Fátima. Só que sem farnel, pois as rações eram locais, abundantes e… baratíssimas.

Ao fim de uns dois/três meses, avancei com o primeiro MVL para o Negage a levar bois vivos, que depois de excutados mudavam de sexo. Movimento de Viaturas Logísticas assim se chamava. E logo por Nambuangongo, nome mítico que tinha sido reconquistado pelo Maçanita logo a seguir à ocupação, aliás sumariamente temporária, pela UPA de Holden Roberto, numa sangueira desatada.

Encontrar um camuflado à minha medida foi a primeira trabalheira. A segunda resultaria da largada que os cornuptos protagonizaram ao fugirem quando eram levadas para as camionetas. Palavra de honra. Alcochete ou Vila Franca de Xira teriam ficado envergonhados. E os forcados do Nuno de Salvação Barreto também.

Picada e lama

Finalmente - a picada. O silêncio da mata precavidamente calada. A GMC rebenta-minas, à frente, 117 camiões civis carregados de bric-a-brac para o pessoal encalacrado na selva. Gin e whisky do melhor, à mistura com cunhetes de munições, armas, ajudantes empinados lá por cima das lonas das coberturas, bacalhau, batas e grão-de-bico mais uma caterva de outras lambuzeiras. E os bois/vacas, vivíssimos da costa, antevendo matadouro.

Emboscada. Tiros a esmo. Salto da cabina branca da White e alapo-me no meio da lama vermelha. Chove a cântaros. A pasta pegajosa entra-me por baixo da gola a verde e castanho, percorre-me costas e bandulho, arranha-me os colhões e deposita-se nos pés amparados por polainitos. Não dou um tiro, é a primeira vez de tais andanças, limito-me a praguejar contra aquela merda toda.

Pelo ar quente, denso e embaciado, soam rajadas e insultos – de ambos os lados. Uma bazucada atira ao ar uns taratas sem culpa formada. Morrerão dois, um logo decepado e outro a esvair-se a vermelho, intestinos de fora, rotos. Mais zumbidos de metal assassino, mais impropério, vai no cu do Salazar, portuga, vai tu à cona da tua mãe, filho da puta. Raio de combate, cum caralho.

Acabada a sessão, a lama que eu sou volta ao camião. O senhor Branco, proprietário do bicho e chofer de profissão, olha-me de esguelha, com um sorriso afivelado na face. O tipo tem as duas pernas artificiais, metálicas e assim mesmo conduz. Isto é, voltou a conduzir. Tinha-me intrigado e interrogado a mim próprio o porquê dessa atitude. Mais tarde, já amigos, ele explicar-me-ia.

Naqueles transes, porem, o camionista começou a gargalhar. O que é que você tem, ó Branco? Nada, nada, meu alferes. Olhe: da próxima vez, leve a G3 consigo… Tal e qual. Na pressa de cavar da White, deixara o espingardum no chão da cabina. Os gajos podiam ter-me apanhado – à mão. Não concordava, sempre o afirmara, com a trampa da guerra colonial. Mas só aí compreendi, finalmente, que não nascera para herói.

3 comentários:

joão oliveira santos disse...

Caro AF,
Você escreve bem (p'ra burro, salvo seja!), você conhece todo o Mundo (e o Ninguém?), (você) é Amigo (de todos, do peito, Amigo do seu Amigo). Você (já lho disse várias vezes) não existe. É, simplesmente (e não é nada pouco!).
Um abraço (sempre Amigo, apertado sempre) do
JS

Antunes Ferreira disse...

O meu vizinho do lado, ali à Rua do Salitre, não pára de me estragar com mimos. Vocências não o conhecem. Mas vão passar a conhecê-lo, aqui o prometo sem rebuço.

Agora, deu-lhe para dizer que cá o muá escreve bem. Ab uno disce omnes, dizia o Eneias referindo-se às perfídias dos gregos. Não é exactamente o caso, mas uma latinada cai sempre bem em texto que se pretende não apologético e medianamente entendível. Não obstante. Não apoiado. Polegar - e só o dedão - invertido.

Aqui para nós, ó compadre - não habia nexexidade...

Anónimo disse...

Olhe senhor. Eu fiz a tropa, um ano cá, dois e meio na Guiné. Aquilo por lá era só porrada de criar bixo, nas bulanhas. So tenho a quarta classe e já entrei nos 63 anos. Estou cançado e velho, mas continuoa trabalhar. O senhor nunca esteve por tais terras cheias de água e bichos maus,e muitos mosquitos.

Mas julguo que esteve na Angola. Devia ser muito bonito, toudos os meus amigos que lá esteveram disem que sim. A guiné tambem era, mas era diferemte.

O senhor conta bem coisas lá da guerra, dos turras e das chatisses que haviam. Continui que vai por bom caminho. Obrigadicimo.