quarta-feira, setembro 24, 2008




Há dias em que

Antunes Ferreira
Manuela fechou, pensativamente, o livro, depois de assinalar o local de intervalo na leitura com o marca páginas. Curioso: era publicidade de um laboratório de produtos farmacêuticos, a cartolina num azul forte e polido, os comprimidos revestidos branqueando, o nome em times bold a negro e o faz bem a em verdana itálico e vermelho. Chamativo.

Levantou-se, e iniciou o seu percurso de fuga e retirada, como dizia o avô Geraldo. Caminhou de vagar, como se estivesse numa nuvem celestial de algodão branco contemplando o Filho. Não, o dela, obviamente, mas o outro, de Maria. E, naturalmente, de harpa melodicamente empunhada. Sorriu-se interiormente, sabia lá, a nível do ventrículo esquerdo, que nisto de teclados da parte de dentro, nunca se localizavam com grande precisão. Quem sabe? Talvez com o sextante adaptado pelo Gago Coutinho, pelos idos de 1919, se bem se lembrava. A sôtora Miquelina, no Maria Amália, até lera um texto escrito pelo próprio inventor, em que se referia ao horizonte artificial ou algo assim.

Saindo do jardim, virou à direita, a caminho da Calçada da Estrela. No passeio, um cego tocava desesperadamente um violino. Pelos arquejos do pobre instrumento, devia ter uma corda só. Mas o artista não desanimava. Prosseguia arranhando sons e decibéis, como se de São Carlos se tratasse – com vestido comprido, obviamente.


Parou e deitou um euro na caixa dele. Pensava que já não havia coisas destas, mas a realidade desafinadíssima provava o contrário. Prosseguiu, enquanto desnovelava o emaranhado que fervia nos lobos cerebrais. Pois era, a vida madrasta não dava ponto sem nó. E não se contentava com chips, downloads, iPods e por aí fora. Ainda precisava das notas espúrias de violinos desdentados.

Atravessou na passadeira para os peões, como boa cidadã imbuída do mais apurado senso cívico. Um táxi passou-lhe um rente quase secante. Tal gente não se apiedava nem quando visse a respectiva mãe a vender pó branco na Maria Pia. Conduzir um carro a verde e preto (que piada, tinham voltado aos velhos tempos e às idosas cores) seria sinal de impunidade? A ser assim, não haveria zebra que resistisse.

Foi tudo muito rápido. Primeiro, descortinou o avô Geraldo, entre outros passantes que estavam plantados no passeio, cigarrito pendurado na beiça, no café era proibido fumar e a ASAE, cuidado. O velho, direito que nem um fuso, jornal debaixo do braço, também a viu. Vinha no outro lado da rua, em passo marcado, coronel na reforma era sempre e sempre seria militar.
Depois, guinou à esquerda, em direcção a ela, a face aberta de satisfação, quiçá mesmo de alegria e pôs um pé no empedrado remendado de asfalto. Avançou. O camião de uma cervejeira nem travou. Bateu-lhe, atirou-o ao chão e passou-lhe por cima.


Manuela não quis acreditar. Mas, as formigas humanas num ápice rodearam o velho esmagado, o diário empapando-se em sangue acabado de verter. O condutor descera da viatura, ai a minha sorte, há dias fodidos, em que nem se pode sair de casa, o sacana do velho bem podia ter olhado. Ó amigo, não se chateie. Não teve culpa nenhuma, nunca ia adivinhar que o cota fazia uma alarvidade assim.

E outro, o gajo ia a olhar todo lampeiro para aquela tipa, tão embeiçado que nem via mais nada. Podia ter sido pior, se você se tivesse descontrolado e tivesse ido para cima de mais gente, com o pessoal que por aqui vai era uma tragédia. Uma hetacombe, anexou um cavalheiro já de certa idade, com ares de professor primário reformado. E o primeiro, hecatombe, se não se importa.

A mim tanto se me dá, não me aquenta nem me arrefenta. Que se lixe essa merda qualquer coisa em ombe. Voltaram-se para Manuela. A senhora viu? Ele pareceu-me que ia a deitar-lhe o olho malandreco... Amarrotada: é o meu avô Geraldo. Era, corrigiu o de óculos e talvez docente retirado. Se fosse catedrático, jubilado.

40 comentários:

Márcia Reboredo Du Maria disse...

Ferreira

Você escreve muito bem. Descobri seu blog por intermédio do semprefixe do Reinaldão. Gostei e vou voltar.
Beijão

Paula Raposo disse...

Coisas que acontecem mesmo. Beijos.

* hemisfério norte disse...

henrique, gostei muito
parabéns!
-
´(p.s. - também tenho o problema de escrever, escrever...e depois não gostar de nada...ainda bem q não estou só no mundo, eheh)
bj
a.

Dalinha Catunda disse...

Henrique,
Você soube alinhavar muito bem cada retalho deste texto, que é um convite aquem gosta de uma boa leitura.
Um abraço,
Dalinha Catunda

_E se eu fosse puta...Tu lias?_ disse...

Sarava !

Tens desafio/prémio no meu blog!

beijinhosssssss

Anónimo disse...

Boa, Chefe!!!!!!!!!!

Anónimo disse...

Amigo Antunes Ferreira

Há já muito tempo que não visitava o blogue e foi uma agradável surpresa. Só lhe digo que está óptimo, gostei dos artigos e reparei que o grafismo e a apresentação foram uma preocupação.

O meu amigo, que sempre fez o favor de me tratar com uma cordialidade a toda a prova nos nossos tempos na OROC está de parabéns.
Receba um grande abraço

JOSÉ RIBEIRO MARTO disse...

Saravaíssima !
Lê-se de uma assentada, nem um detalhe inoportuno se atravessa numa linha...
vou deixar de dizer isto , mas o meu amigo escreve que se lê!
Até a língua se configura de modernidade e actualidade reconfertante, o meu caro não embrulha !


....E a realidade está aí a dizer o que importa é o número....
....se isto fosse uma moral para o que acabo de ler !

abraço_____________ JRmarto

Júlio P. Andrade disse...

0lá Antunes

Que bem que você escreve. Vou já comprar o seu livro que, por certo, corroborará esta minha opinião. E comprarei mais dois, para oferecer um ao meu Pai e outro ao meu tio Marcos que rambém andaram na guerra colinial, mas não em Agola: na guiné Bissau e em Moçambique. O que deve ter sido muito semelhante. Depois de ler, mando-lhe um IMEILE, como você diz..rsrsrsrsss
Abraços

Táxi Pluvioso disse...

Por morrer um velho não acaba a Primavera e alivia a Segurança Social.

Je Vois La Vie en Vert disse...

Sinto-me uma "Super Trouper" hoje.
Vai ver no meu blog se quiseres saber porquê....

Beijinhos verdinhos

Je Vois La Vie en Vert disse...

Merci pour tes aimables mots en français et pour la traduction (pour mes éventuels lecteurs-commenteurs car après 34 ans au Portugal, je comprends tout ! )

Et j'ai adoré tes "queijinhos-beijinhos".

Comme j'apprécie beaucoup le fromage, je les ai déjà mis sur un toast, si cela ne te gêne pas....

Bisous verts

Anónimo disse...

Pobre de mim mero leitor de ocasião, que por teimosia me recuso a sêr uma mente estática e tenho a sorte de me deliciar com esta qualidade literária. Didática,crítica e com grande sentido de humor.
Bem Hajam,os competentes de espírito aberto.
Como aluno aqui estarei à espreita.
Bom Fim de Semana

Desnuda disse...

Excelente texto do amigo Antunes. Triste realidade...


Beijo e ótimo final de semana

Antunes Ferreira disse...

Márcia

O Reitor da Universidade Casper Líbero em São Paulo era du Maria. Seria da tua família?
Fico contente com o você escreve muito bem. Favores...
Qjs

Antunes Ferreira disse...

Paulinha

Há mais de 564,89 anos que não aparecias por cá. Felizmente - ressuscitaste... Volta já, minha raposinha
Qjs

Antunes Ferreira disse...

Hemisfério

Tu és o planeta inteiro, nunca a metade! Se gostaste muito, volta já amanhã. E concorre ao novo desafio. E compra o me(a)u «Morte na Picada». Ufff
qjs

Antunes Ferreira disse...

Dalinha

Continuas a fazer-me cafunés. É só mimos. Tenho de comprar um babete...
Qjs

Antunes Ferreira disse...

Ó Jones júnior

Também tens prémio por estas bandas. Habilita-te.

Esses pulhas desses progenitores? E ainda dizem que simpatizam comigo... Amigos de Pe...uerto
Qjs

Antunes Ferreira disse...

Guidinha

Boa, chefiada!!!!! 'gradecido
Qjs

Antunes Ferreira disse...

Dom Carlos

Cuidado com o regicídio. E grato pelas palavras e pelas recordações. Sou sempre o mesmo - aqui ou na Moita...

O senhor gajo da OROC também quer ser o mesmo a mandar. É lá com ele. Que lhe faça bom proveito. Amen.
Abs

Antunes Ferreira disse...

Vai andando amigo

Eu, pelo menos, estou contigo! Nunca ninguém me tinha dito o que sublinhaste. Escrevo para que leiam, é verdade. E, como posso e sei... pouco
Abs

Antunes Ferreira disse...

Julíssimo

Já me dizias coisas lindas no Sorumbático do Carlos Medina Ribeiro, boa praça. Agora, é aqui. Gaita! Sossega, ainda que eu não dure sempre...
Abs

Antunes Ferreira disse...

Pst Táxi

Nem Prima Vera, nem Tia Bera. E quanto à SS - que se lixe. Assim como assim, já não me aumentam a reforma. Donde...
Abs

Antunes Ferreira disse...

Verdinha au Portugal

Obrigadinho, bien petit merci...

Já lá fui e gostei. J'y suis allé et il ma plut.
Qjs (da Serra...)

Antunes Ferreira disse...

Jêróm

Estou d-s-l-u-m-b-r-a-d-o!!!!

1) Manda-me os teus IMEILE & BLOGUE;
2) Compra o me(a)u «Morte na Picada»; E muitos exemplares que vem aí o Todos os Santos, o Natal e o Ano Novo. Tem piada... Depois é o Carnaval. Kumxedênçias...
3) Aluno? Bom? Mestre éokés...
Abs

Antunes Ferreira disse...

Desnuda

te... Gostei das palavras doces, palavra que gostei. Bom sábado, óptimo domingo e cara assim-assim na segunda...
Qjs

Unknown disse...

Gostei mesmo da sua prosa, simples, clara, escorreita. Não tenho visitado este blogue como ele merece: mais vezes.Mas vou fazè-lo.
Obrigado.
Eduardo

Anónima Salina disse...

Olá Chefe AnferRed

Há muito que não o lia assim.
Continuo esperando mais textos para o futuro livro.
Beijinhos e bonne voyage
AS

PS - O tipo do Táxi dá cabo de mim!
Continuo sem conseguir visitar o blogue dos Couratos!

Anónimo disse...

Amigos

Como vos disse, perdi o meu imeile ferreihenrique@gmail.com. Pelos vistos, não se pode fazer nada. Tento recuperar endereços e há amigos que me estão a ajudar nessa tarefa. Muito obrigado.

Novo: haaferreira@gmail.com

Também não posso continuar com o meu www.travessadoferreira.blogspot.com, pois sem a password (é aí que reside o problema gigante), não posto textos. Assim, tenho um novo:

www.travessadoferreira5-2.blogspot.com.

Muito vos agradeço que passem esta informação a quem entenderem que ela interessa. Muito obrigado. Fico, como sempre, à vossa espera.

*****

Amigos

Como os he dicho, perdí mi imeile ferreihenrique@gmail.com. Por supuesto, creo que no puedo hacer nada más. Estoy intentando de recuperar las señas posibles. Agradezco en lo que me puedan ayudar.

Nuevo: haaferreira@gmail.com

También no puedo seguir con mi blog www.travessadofeira.blogspot.com. No tengo la password para que pueda postar textos, etc. Eso es el problema gigante. Así que tengo un nuevo:

www.travessadoferreira5-2.blogspot.com

Muchas gracias por pasar esta información a quienes crean que les interese. Me quedo, como siempre, esperándoos.

*****

Dear Friends

I'm not sure told you, I lose my imeile ferreihenrique@gmail.com. Gmail doesn't accept my password. And I think it's not possible try anything more to recuperate it. So, I have a new one:

haaferreira@gmail.com

Also, I can't write texts in my former blog www.travessadoferreira.blogspot.com. To use it I would know what happened to my poor password... So, I have also a new one:

www.travessadoferreira5-2.blogspot.com.

Thanks for pass this information to those you think it can be useful. I wait for you, as ever, in my new blog. Come on.

*****

Beta Chaves disse...

Muito bom seu blog, adorei!!!!

Antunes Ferreira disse...

Eduardo

Pois que venhas mais vezes - mas, a partir de agora, ao www.travessadoferreira5-2.blogspot.com

O imeile também é novo:
haaferreira@gmail.com

Obrigado. Vai até
Abs

Antunes Ferreira disse...

Ó Salina

Não metas a super-prise. Isto é para ir devagar, devagarinho.

Quanto a viagens - nada, zero, nul, niente. Como te disse, com o susto que a Raquel meteu aos médicos do Santa Maria, não há nada pra ninguém. Depois... «verá-se»...
Qjs

Antunes Ferreira disse...

Ciao Betinha

Adorei a tua concisão e a tua linda cara cheia de um deliciso sorriso. Quando voltares vai ao www.travessadoferreira5-2.blogspot.com.
Para este aqui RIP
Qjs

Antunes Ferreira disse...

Anónimo Raul

Isto é kevaiumakrise. Merci
Abs

Nuno de Sousa disse...

Magifico post belas palavras amigo Ferreira.
Um grande abraço deste amigo de Sintra,
Nuno

eu disse...

Gosto do que escreve e da maneira como escreve. E vou começar a ler o seu livro que comprei hoje. Já sei que vou gostar.
Um abraço

Cúmplice... disse...

Eu tava em falta...
Já tinha prometido a mim mesmo vir cá, mas há coisas que a gente não controla e o tempo vai passando...
Mas hoje decidi vir ler este Blog... Acabei de almoçar ali e mesmo que os chefes reclamem por apresentar relatórios atrasados… (dizem eles, pediram ontem)... Tirei algum tempo pra fazer aqui uma visita...
Já tinha passado por aqui mas sem poder demorar muito, agora li mais um pouco... (não consegui ler tudo pois já me chamam outra vez, não me deixam concentrar na leitura... Devia haver uma lei de que quem estivesse a ler ou escrever um blog ou um livro não pudesse ser interrompido… Com fiscalização da ASAE) …
Gostei de cá vir e tento agradecer a visita e palavras que deixou no meu ‘cantinho’…
Aquele “O Lobo e a Lua”… – http://nasmargensdolethes.blogspot.com/ –
Gosto das palavras daqui, dos textos e da forma como são escritos… É algo que se sente, aqui sente-se o povo… Sente-se o que vai na alma da gente.
O Livro “Morte na Picada” ainda não comprei mas é ponto assente e um compromisso que tenho comigo, comprar e ler!...
Virei cá mais vezes, é certo, aqui aprendo e quero sempre aprender… Se me der a honra de ir visitando os meus espaços irei ficar grato.
Parece que tem outro “Cantinho” de escrita, irei visitar também por certo

Espaço do João disse...

Então óh camarada do Saramago, agora não dás resposta aos comentários? Que bicho te mordeu? Já sei que foste colaboracionista do Saramago, és arrogante, tens a mania das grandezas, e acima de tudo a tua educação anda pelas portas da amargura. Não bebeste chá em pequeno e, certamente nasceste em berço de ouro.

Anónima Salina disse...

Voltei por mor de solidão e deserção de filho menor! Foi VOLUNTÁRIAMENTE para o Algarve co a avó e tias e prima. Dias por mim aguardados, o esperado descanso do guerreiro, o ter tempo para os amigos... Mas... Ai a saudade, essa imbecilidade portugálica!

A Travessa, com nova roupagem, sempre preencheu (e preenche) os meus espaços. Um avô... outra vez a saudade de quem já só existe na lembrança.

beijocas chefe, amanhã cá estarei outra vez.
beijinhos à Raquel
AS