terça-feira, setembro 09, 2008



MESMO A SÉRIO

A justiça portuguesa

não é apenas cega, é surda,

muda, coxa e marreca


Clara Ferreira Alves - No semanário «Expresso»
Portugal tem um défice de responsabilidade civil, criminal e moral muito maior do que o seu défice financeiro, e nenhum português se preocupa com isso apesar de pagar os custos da morosidade, do secretismo, do encobrimento, do compadrio e da corrupção. Os portugueses, na sua infinita e pacata desordem existencial, acham tudo "normal" e encolhem os ombros.

Por uma vez gostava que em Portugal alguma coisa tivesse um fim, ponto final, assunto arrumado. Não se fala mais nisso. Vivemos no país mais inconclusivo do mundo, em permanente agitação sobre tudo e sem concluir nada.


Desde os Templários e as obras de Santa Engrácia, que se sabe que, nada acaba em Portugal, nada é levado às últimas consequências, nada é definitivo e tudo é improvisado, temporário, desenrascado. Da morte de Francisco Sá Carneiro e do eterno mistério que a rodeia, foi crime, não foi crime, ao desaparecimento de Madeleine McCann ou ao caso Casa Pia, sabemos de antemão que nunca saberemos o fim destas histórias, nem o que verdadeiramente se passou nem quem são os criminosos ou quantos crimes houve.

Tudo a que temos direito são informações caídas a conta-gotas, pedaços de enigma, peças do quebra-cabeças. E habituámo-nos a prescindir de apurar a verdade porque intimamente achamos que não saber o final da história é uma coisa normal em Portugal e que este é um país onde as coisas importantes são "abafadas", como se vivêssemos ainda em ditadura.


E os novos códigos Penal e de Processo Penal em nada vão mudar este estado de coisas. Apesar dos jornais e das televisões, dos blogs, dos computadores e da Internet, apesar de termos acesso em tempo real ao maior número de notícias de sempre, continuamos sem saber nada, e esperando nunca vir a saber com toda a naturalidade.

Do caso Portucale à Operação Furacão, da compra dos submarinos às escutas ao primeiro-ministro, do caso da Universidade Independente ao caso da Universidade Moderna, do Futebol Clube do Porto ao Sport Lisboa Benfica, da corrupção dos árbitros à corrupção dos autarcas, de Fátima Felgueiras a Isaltino Morais, da Braga parques ao grande empresário Bibi, das queixas tardias de Catalina Pestana às de João Cravinho, há por aí alguém que acredite que algum destes secretos arquivos e seus possíveis e alegados, muitos alegados crimes, acabem por ser investigados, julgados e devidamente punidos?

Vale e Azevedo pagou por todos.

Quem se lembra dos doentes infectados por acidente e negligência de Leonor Beleza com o vírus da sida? Quem se lembra do miúdo electrocutado no semáforo e do outro afogado num parque aquático? Quem se lembra das crianças assassinadas na Madeira e do mistério dos crimes imputados ao padre Frederico? Quem se lembra que um dos raros condenados em Portugal, o mesmo padre Frederico, acabou a passear no Calçadão de Copacabana? Quem se lembra do autarca alentejano queimado no seu carro e cuja cabeça foi roubada do Instituto de Medicina Legal?


Em todos estes casos, e muitos outros, menos falados e tão sombrios e enrodilhados como estes, a verdade a que tivemos direito foi nenhuma. No caso McCann, cujos desenvolvimentos vão do escabroso ao incrível, alguém acredita que se venha a descobrir o corpo da criança ou a condenar alguém? As últimas notícias dizem que Gerry McCann não seria pai biológico da criança, contribuindo para a confusão desta investigação em que a Polícia espalha rumores e indícios que não têm substância.

E a miúda desaparecida em Figueira? O que lhe aconteceu? E todas as crianças desaparecida antes delas, quem as procurou? E o processo do Parque, onde tantos clientes buscavam prostitutos, alguns menores, onde tanta gente "importante" estava envolvida, o que aconteceu?
Arranjou-se um bode expiatório, foi o que aconteceu.

E as famosas fotografias de Teresa Costa Macedo? Aquelas em que ela reconheceu imensa gente "importante", jogadores de futebol, milionários, políticos, onde estão? Foram destruídas? Quem as destruiu e porquê? E os crimes de evasão fiscal de Artur Albarran mais os negócios escuros do grupo Carlyle do senhor Carlucci em Portugal, onde é que isso pára? O mesmo grupo Carlyle onde labora o ex-ministro Martins da Cruz, apeado por causa de um pequeno crime sem importância, o da cunha para a sua filha.

E aquele médico do Hospital de Santa Maria, suspeito de ter assassinado doentes por negligência? Exerce medicina? E os que sobram e todos os dias vão praticando os seus crimes de colarinho branco sabendo que a justiça portuguesa não é apenas cega, é surda, muda, coxa e marreca.

Passado o prazo da intriga e do sensacionalismo, todos estes casos são arquivados nas gavetas das nossas consciências e condenados ao esquecimento. Ninguém quer saber a verdade. Ou, pelo menos, tentar saber a verdade.


Nunca saberemos a verdade sobre o caso Casa Pia, nem saberemos quem eram as redes e os "senhores importantes" que abusaram, abusam e abusarão de crianças em Portugal, sejam rapazes ou raparigas, visto que os abusos sobre meninas ficaram sempre na sombra.

Existe em Portugal uma camada subterrânea de segredos e injustiças , de protecções e lavagens , de corporações e famílias , de eminências e reputações, de dinheiros e negociações que impede a escavação da verdade.

Este é o maior fracasso da democracia portuguesa




NR - Mesmo sem pedir autorização à autora, mesmo sem o fazer também ao Expresso, mas mencionando e sublinhando ambos, aqui publico um texto, no mínimo, demolidor. E, cheio de razão. Não conheço pessoalmente a minha colega de profissão Clara Ferreira Alves. Mas conheço e reconheço os seus méritos que me levam a caracterizá-la uma GRANDE JORNALISTA. Assim mesmo, em caixa alta. Porque entendi que este artigo é oportuno, claro, desassombrado, honesto e vertical, aqui o deixo à vossa consideração. Digam-me o que pensam desta situação estranhíssima – e gravíssima. Obrigado. A.F.

6 comentários:

Tiago Soarez disse...

Parabéns para sua colega!

E parabéns a vocês, jornalistas que eu admiro tanto, por conseguirem se destacar diante de muitos iguais e se mostrarem diferentes!

Abraços!

Bossa Nova Café - textos, música e arte!

CHOPINGO disse...

PASATE POR LA OPINION DE TENERIFE,UN DIARIO,TE MUERES DONDE VIVO,LA POLI,COMO TE DIGO,LE PREGUNTA AL JEFE DE LA MAFIA EN EL SUR DE LA ISLA SOBRE UN ROBO.YO ME MUERO,ME VOY,TE JURO QUE ME LARGO.

pensamentosametro disse...

Como vê caro Ferreira, cá estou, como aliás já estive outras vezes. Gosto eu também de gente e situações "rectilíneas" sem curvas e contra curvas, que olha a direito e diz o que tem a dizer tanto faz que seja À esquerda como à direita.

Bjos


Tita

Carlos Rebola disse...

Amigo Antunes Ferreira

O que o texto, magistral, de Clara Ferreira Alves diz está correcto e é para reflectir e tomar posição. No entanto parece-me que quem não se preocupa com este "défice de responsabilidade civil, criminal e moral muito maior do que o seu défice financeiro" não são os portugueses em geral, são aqueles que têm a responsabilidade, bem cara aos mesmos portugueses, porque a aceitaram, o dever e a obrigação, pelo menos institucional, de dar as respostas às perguntas formuladas pela Clara Ferreira Alves e que penso a maioria dos portugueses também faz, deveriam ter respostas e não têm, porque os portugueses são apáticos, mas sim ao que parece, porque que a justiça portuguesa tem nos seus quadros gente que "é cega, é surda, muda, coxa e marreca" se o não são, parece que se fazem, tendo em conta as perguntas sem as respostas que deveriam ter.
São pessoas que estão nas polícias, nos tribunais e também no ministério da justiça que deveria tutelar a mesma.

Um abraço
Carlos Rebola

GP disse...

Faço minhas todas as palavras de Clara Ferreira Alves. É uma verdade bastante dolorosa. Mas também é verdade que a comunicação social explora todos estes casos até à exaustão enquanto vende mas desiste da procura da verdade. Acho que se um cidadão comum tivesse meios para saber como vai determinado processo ou se já foi arquivado, não pareceria tão "esquecido".

um abraço

Anónimo disse...

A Justiça vai sendo esquecida, mais que cega.