domingo, agosto 05, 2007











O novo Spiderman

Braz Ferreira
D
urante a minha última estadia em Africa, mais precisamente na Zâmbia, passei as noites dormindo descoberto pois fazia um certo calor, esse calor africano que embriaga qualquer europeu. Ora durante uma dessas noites, sem ter dado autorização a nenhum visitante, recebi um ou uma bastante indesejável.

No dia seguinte comecei a sentir comichão nas costas e vi aparecerem uns pontos vermelhos bastante inchados. Não prestei muita atenção. Mas um dia depois, elas tinham quase duplicado de volume e comecei a ter problemas de visão. Falei com uns amigos que me aconselharam a ir ao hospital. Receoso, mas sem poder dormir tranquilamente, decidi me dirigir aquela instituição de saúde. Já a estrada de acesso ao hospital me deixou ainda mais receoso.

Terra batida, vermelha, onde alguns buracos deixavam aparecer rasgos de alcatrão que deviam ter sido parte de uma estrada do tempo do colonialismo britânico. Mas, se bem que mal, mais mal que bem, diga-se de passagem, pois nos solavancos originados por tão estranha “auto-estrada” minhas costas sofriam cada vez mais, lá cheguei ao dito cujo hospital.

Uma enorme mansão de mais ou menos 150 metros quadrados onde as letras anunciando o lugar, se encontravam descansando no chão de terra sobre a sombra de um mangueiral. As paredes externas recentemente pintadas de branco, mostravam ainda por lugares as camadas da antiga pintura que devia ter sido verde ou esverdeada. Parecia-se mais com as camisetas dos treinos do SCP. Como meu clube predilecto é o Belenenses, meti a marcha-atrás para voltar de onde vinha. Mas as dores eram tantas que decidi entrar no campo de treinos do Sporting.

Na recepção que era uma saleta de mais ou menos vinte metros quadrados uma mesa carregada de papeis e de um livro do tamanho dos antigos mapa-mundo. Atrás encontrava-se uma recepcionista que quando viu um branco esboçou um sorriso acolhedor (e era mesmo para acolher a minha dor). Deveria ser uns dos poucos brancos a frequentar este lugar e ela deve ter pensado que era o momento de se vingarem do tempo dos colonialistas. Deve ter sido o motivo de tão amplo sorriso.

Nos bancos ao lado da mesa estavam seis zambianas, todas grávidas. Na minha cabeça fermentou, e olhem que nunca fui padeiro, um pensamento: será que é uma clínica ginecológica. E se o é, o que estou eu a fazer aqui? Me tranquilizei quando vi que havia uma médica e um médico. A tal menina do tal sorriso, me perguntou a idade. Quando lhe dei a informação, uma das duas enfermeiras que preenchiam papeis na mesma mesa olhou para mim e disse: “Nem parece”. Ou foi uma frase lisonjeira ou o início da anestesia para o que iria sofrer.

Batas e buracos

As enfermeiras tinham batas azuis sem mangas, mas para compensar com alguns buracos tipo obras lisboetas. Uma delas, a que se ocupou de mim, tinha mais cara de mulher-a-dias (perdão a noites), pois devia ter passado a noite a limpar casas de banho tal a enormidade dos bocejos que mostrava a cada minuto. De imediato me pediu para ir para uma salinha onde me pesou, me mediu a pressão e pediu para tirar a temperatura.

Para tal efeito me mostrou um daqueles termómetros dos anos 50, de mercúrio, que desinfectou precariamente com um algodão embebido com um produto meio azul meio roxo. Apavorei pela centésima vez, e perguntei: “Onde verifico a temperatura?” Depois de uns segundos de reflexão respondeu: “Debaixo do braço...” Aliviei de contentamento. Puxa e se tivesse pedido noutro sítio? Depois destes exames sumários, sentei-me esperando o médico.

E o médico nem vos conto. O indiano que me trata do jardim, tem melhor aspecto do que este especialista da saúde. Levou-me até ao consultório, onde alguns cartazes de publicidade médica deviam ter tido hepatite ou febre amarela. Estavam mais amarelos do que ela. Havia um armário branco (bom, quase branco), com vidros rachados que mostravam algumas caixas de medicamentos e uns livros que pareciam espantados de ver um branco num lugar destes.

Com a falta de comunicação do médico tive até vontade de iniciar uma conversa com eles, mas o tempo escasseava e a dores aumentavam proporcionalmente. A cadeira onde me pediu que me sentasse mais parecia uma atracção do Parque Mayer. Uma das quatro pernas devia ter sofrido de paralisia infantil, pois era bastante mais curta do que as outras. O movimento provocado por esta disparidade podia competir com o balançar de qualquer navio cruzando o cabo Horn. O que não ajudava em nada as dores das minhas costas.

Logo no inicio quando me pediu para ficar de pé, quase que estava enjoado. Perguntei se precisava tirar a camisa ao que me respondeu negativamente com um balançar de cabeça. Ou por outra, só precisava levantar um pouquinho. A consulta deve ter durado mais ou menos uns três minutos onde a minha explicação do meu caso dominou quase completamente a conversa. O Doutor (será mesmo?) apenas proferiu umas dez palavras.
Perguntei se era a larva das moscas das mangueiras.

Uma fêmea venenosa

Me disse que não, que era a fêmea de uma aranha venenosa que me tinha picado seguramente durante a noite.
A tal visitante nocturna sem convite. Ainda que fosse uma fêmea, nunca teria pensado em passar a noite com uma viúva negra (lembrem-se que estamos na Africa) ou fosse la o que fosse. Depois começou a rabiscar febrilmente uma receita e me acompanhou até à enfermeira a dias. Ela me convidou para entrar de novo na tal sala de tratamento.

Não sabia bem porque mas o meu coração me pedia de voltar para casa. Mas decidi não ceder aos desejos do bicho e lá entrei eu de alma e coração (seguramente ainda zangado comigo) na tal salinha onde a enfermeira preparava uma injecção. Perguntei-lhe se era na veia e ela disse-me que não... Fiquei mais tranquilo.

A sala era composta de uma cama coberta por um lençol cuja integridade deixava a desejar. A cor e os remendos davam vontade de rezar dois Pais Nossos e duas Avé Marias. Pensei, se quando entrar aqui não estivesse contaminado, o ficaria quando sair. A enfermeira me indicou que não precisava deitar-me, o que me deixou tão feliz como se tivesse ganho o Euromilhões. Olhei à volta da salinha e vi a mesa onde ela preparava a injecção. Um pano verde, mais escuro que a antiga pintura do edifício, cobria as seringas e outros apetrechos médicos.

Consegui saber que eram seringas e apetrechos pois os buracos que o pano possuía permitiam uma óptima ventilação e uma visualização adequada para poder controlar os possíveis desaparecimentos. O armário que terminava o mobiliário da sala devia ser um parente da cadeira do consultório. Uma das pernas era curta demais e um livro a ajudava a manter ao mesmo nível das outras três. Dentro dele encontravam-se algumas revistas africanas, e na última prateleira os sapatos da enfermeira.

Nas do meio alguns frascos com líquidos coloridos, fazendo lembrar a época natalícia.
Tive subitamente vontade de cantar o Jingle Bells, o que não fiz pois ainda não tinha levado a tal injecção. Pois bem a mulher a dias, soube perfeitamente injectar-me o medicamento sem sequer ter sentido nada.
Quase que a beijava, por ter sido tão eficaz, mas não o fiz pois uma dúvida invadiu o meu cérebro: será que ela me deu mesmo a injecção?

Depois de ter desinfectado o local com o tal algodão roxo, pude verificar que não havia traço de sangue. Talvez devido ao pavor o meu sangue se tivesse recusado a circular.
Até achei normal, pois lembrem-se que já o coração me tinha pedido para voltar para casa. Depois de ter recebido os outros remédios, regressei, e o coração voltou a bater de felicidade. Ainda que “inacreditavelmente” as dores tinham desaparecido e a febre começava a baixar. Veio ao meu espírito o folhetim televisivo Daktari... e ri mesmo mas de alivio e satisfação.


Tive até vontade de subir as paredes pois devo ser o novo Spiderman.

NE - Este meu irmão sempre foi um «maricas» no que respeita a saúde e doenças. Um dia, quando lhe pretendiam fazer um TAC, saiu a correr do aparelho e da sala - e não fez o raio do exame. Assim já se compreende melhor o texto. E, não querem lá ver: o gajo até foi forcado dos Amadores de Santarém, capitaneados pelo saudoso Rhodes Sérgio. Esta vida...


1 comentário:

Anónimo disse...

Mariquinhas, pé de salsa, como se dizia antigamente. Tou contigo na tua dor ... fossemos feitos para apanhar picadelas e levar cortadelas, vinhamos de origem com velcro já instalado.