domingo, agosto 31, 2008



Artigo publicado no “Estado de S. Paulo” (31.8.08)

O nepotismo, o emprego

e o «Estadão»

Francisco Seixas da Costa*

Ao ler no editorial do “Estado de S. Paulo”, de sábado, 23 de Agosto, que o nepotismo era o produto residual “arraigado” da herança colonial portuguesa, senti reproduzida, pela multi-enésima vez, a referência à expressão em que Pêro Vaz de Caminha pede ao rei, na sua famosa Carta, emprego para um seu parente.

Talvez “porque hoje é sábado”, como diria Vinícius, dia em que os jornais se lêem com maior vagar, detive-me a reflectir um pouco no verdadeiro conteúdo do que foi escrito pelo cronista do “Achamento”. Ao formular a sua reverente petição ao rei, Caminha não estava a nomear ninguém para um cargo público, a colocar filho ou primo num gabinete ou numa sinecura paga pelo erário, na rentável administração de uma estatal, estava longe de pretender falsear um concurso público. Limitava-se a solicitar ao soberano, num tempo em que só a este cabia prover discricionariamente todos os lugares, no seu livre e indisputado arbítrio, um emprego para pessoa ligada à sua família. Assim acontecia em todo o mundo, de que Portugal não era excepção.



O pedido de Caminha, que se tornou num bordão referencial da ética pública brasileira, mesmo de quantos se não deram ao trabalho de ler o texto da Carta, passou a representar o exemplo tipificado de nepotismo, não obstante incontáveis contribuições posteriores terem ajudado a recortar, com bem maior sofisticação, essa histórica prática – e não apenas no Brasil, é claro. Para alguns, porém, a frase de Caminha permaneceu como um ferrete que terá marcado, por uma misteriosa eternidade, o DNA brasileiro, transformando-se numa herança ético-administrativa de raiz pecaminosa. Ela reemerge sempre como pernicioso ranço luso, nas horas em que a retórica de alguns oradores já esgotou os clássicos bebidos no “Reader’s Digest”. Não é este, como é óbvio, o caso do “Estado de S. Paulo”.

Neste reiterado uso do exemplo de Caminha subsiste, porém, um pequeno, embora quiçá despiciendo, pormenor: “nepotismo” não é nada isso. Trata-se de aproveitar a titularidade de lugares da administração pública para oferecer livre colocação a parentes (etimologicamente, a sobrinhos), passando a alimentá-los à mesa do orçamento. Nem mais, nem menos. E disso, convenhamos, Pêro Vaz de Caminha está inocente, sem necessidade de liminares ou recursos.

Longe de mim, como actual embaixador de Portugal, arvorar-me numa espécie de advogado-geral do tempo colonial. Bem me tem bastado, ao longo desde ano, ajudar à gestão póstuma das obras e graças do senhor dom João VI… Mas enquanto usufrutuário comum da bela língua que nos une, sinto-me no dever de colocar os pontos nos is, enquanto um novo Acordo Ortográfico os não abolir.

E relembrar que, no século 16, ser solicitado um emprego para alguém – familiar, amigo ou correligionário –, pedido formulado a quem tinha então o legítimo poder para o conceder, não configurava nada que se pudesse identificar com o conceito de nepotismo, nem sequer com a ideia de fisiologismo – impressiva expressão brasileira que passo os dias a tentar traduzir aos meus perplexos compatriotas, a quem a prática não é alheia, mas para a qual não dispunham de tão interessante instrumento qualificativo. Por isso, entendamo-nos de vez: Caminha não praticou nepotismo. Para confirmar isso, basta ler o vosso excelente Aurélio ou o nosso magnífico Moraes.

Mas por que razão, estarão a perguntar-se os leitores, terá o embaixador de Portugal tomado o “Estadão” como alvo deste seu preciosismo terminológico, quando o tema é recorrente em tanta outra imprensa? Por um motivo de oportunidade, que nada tem a ver com o nepotismo, mas que se prende com o emprego.

Sem que tal represente menor consideração pela restante imprensa brasileira, cuja qualidade é reconhecida internacionalmente, talvez neste país se desconheça que muitos de nós, portugueses, sempre olhámos para o “Estado de S. Paulo” de forma muito particular. Nos longos anos em que, em Portugal, a liberdade não passava de uma miragem que se mantinha no horizonte longínquo, o Brasil acolheu, com imensa generosidade, muitas figuras que a ditadura salazarista alienava da vida cívica portuguesa. Nesse tempo, o “Estado de S. Paulo” destacou-se como porto de abrigo para algumas dessas personalidades, as quais, frequentemente, eram menos bem acolhidas por alguns compatriotas, aqui residentes, que não partilhavam ou rejeitavam mesmo o progressismo das suas ideias, porque haviam optado por se manterem próximos do regime que vigorava em Portugal.


Foi o “Estado de S. Paulo”, foi a figura honrada de Júlio de Mesquita Filho quem deu então uma mão solidária a vários profissionais exilados da imprensa portuguesa, bem como a outras figuras da Oposição ao salazarismo, oferecendo-lhes emprego, ajudando-os a reconstituir a sua vida e a sustentar o seu quotidiano. Nada disso era feito por adesão ideológica ou doutrinária, por qualquer interesse ou favoritismo, mas simplesmente por um sentimento de simpatia e pela partilha de uma magnífica e rara ética de solidariedade. Nomes como Vítor Cunha Rego, Miguel Urbano Rodrigues, João Alves das Neves, Carlos Maria de Araújo, João Santana Mota ou mesmo Henrique Galvão, puderam encontrar no “Estadão” um apoio essencial, nesse tempo de turbulência de suas vidas.

Por essa razão, por essa memória grata e afectiva que os democratas portugueses devotam ao “Estado de S. Paulo”, sentimo-nos livres para pedir que, quando um capítulo da nossa História em comum vem a lume, num dos seus editoriais, aliás sempre redigidos num excelente “português de lei”, o máximo rigor seja mantido. Achamo-nos, assim, no direito de exigir ao “Estadão”, com toda a cordialidade e imensa simpatia, a absolvição póstuma de Pêro Vaz de Caminha, que nunca pisou os terrenos pantanosos do nepotismo e se limitou a exercer o direito à solicitação um singelo emprego.

* Embaixador de Portugal no Brasil

Não são necessários mais quaisquer comentários. O texto foi-me enviado de Brasília pelo Jornalista José Fonseca Filho, proprietário e editor do www.nossabahia.net - que aproveito para aqui recomendar. Dois Amigos, o Francisco Seixas da Costa (já publicado aqui no Travessa) e o Zé Fonseca Filho, ficam uma outra vez registados neste blogue. Muito obrigado a ambos.



9 comentários:

anarresti disse...

Vim retribuir a visita. Com mais tempo, vou ler o teu blogue, que me despertou o interesse, só ao passar os olhos. Vai fazer parte das minhas ligações. Boa semana, um abraço!

Nuno Miranda Ribeiro

GarçaReal disse...

Como é gratificante ler um texto destes.

Já havia lido sobre este tema em tempos, mas já estava um pouco esquecida.

Obrigada pela visita

bjgrande do Lago

Desnuda disse...

Dizer que o texto redigido é impecável é constatar o óbvio. Mas a ética como conduziu o texto e a defesa contudente de Pêro Vaz de Caminha foi de um excelente advogado e honrado cidadão luso. Está certo Antunes em colocar os pingos nos "is". Não se pode admitir levar o nome de Pêro Vaz de Caminha e a honra de um país a um entendimento ilógico e sem fundamentação baseado na realidade. Muito menos, para tentar explicar historicamente o inexplicável processo que se vê no meu país. Não deve misturar o joio com o trigo.


Grande abraço.

pensamentosametro disse...

Hoje, venho apenas retribuir a sua visita à minha "merearia" e agradecer o generoso comentário. Não sou mais do que uma escrevinhadora que normalmente nem sequer revê o que escreve, escrevo sempre por impulso, ao sabor do coração. Com tempo, que é coisa que tem rareado cá para os meus lados, voltarei aqui à travessa , bem como aos outros espaços onde escreve. O meu mail consta do perfil e aqui o deixo com prazer.

luisa.m.barbosa@gmail.com

Bjos

Tita

Amante das Leituras disse...

Li a sua mensagem no blogue do Carlos Luanda e não resisti enviar-lhe um convite do yahoo a convidá-lo para membro da comunidade Amante das Leituras. Tal como o amigo isto pode parecer uma cópia (não é,hihih)e cá no norte também se usa essa expressão "quem não gosta ponha na beira do prato".

Se quiser saber mais daquilo para que o convido visite os seguintes links:
www.livrariaamantedasleituras.com
http://amantedasleituras.blogspot.com
http:ana-maria-costa.blogspot.com

Anónimo disse...

FERREIRA,...há aqui umas coisas em que não concordo contigo !!! para começar devo dizer que a merda dos brasileiros (estou a falar dos ao mais alto nível) não são capazes NUNCA de assumir as merdas que fazem e depois entretêm-se a procurar as mais remotas formas de se desculpabilizarem com factos que reconhecidamente nada têm a ver com o assunto em questão. Por isso eu digo que eles são uns merdas...é o carácter deles a funcionar.
Quanto ao ESTADÃO...não posso estar nada de acordo. A mídia brasileira é das mais reaccionárias do mundo, O Estadão, a Folha, a Veja, a Época e TODAS as estações de televisão, são altamente reaccionárias e exclusivamente ao serviço do capitalismo privado, dos interesses estado-unidenses e do capitalismo e interesses internacionais, consubstanciados nas variadas riquezas espalhadas pelo Brasil. O facto do Estadão ter em tempos admitidos alguns colunistas e jornalistas portugueses como Miguel Urbano Rodrigues, não lhe confere nem de perto o estatuto de imprensa livre e muito menos progressista. Se quisermos acessar o relato dos factos sem os interesses do imperialismo presente, temos de aceder à imprensa independente que felizmente há muita no Brasil e de qualidade....como por exemplo a Agência Carta Maior.

Lua disse...

Interesante blog el tuyo ,me cuesta entender ciertas cosas por el idioma pero trataré de solucionarlo poco a poco .Un placer visitarte y hasta otro ratito .

Armindo Guimarães disse...

As minhas felicitações ao embaixador de Portugal no Brasil pelo importante e oportuno artigo. Felicitações extensivas ao jornalista José Fonseca Filho e ao nosso Amigo Antunes Ferreira por nos ter proporcionado a leitura.

Abraços

Antunes Ferreira disse...

Amigos

Cada um come do que gosta e, não gostando, repito, ponha na beirinha do prato. Ou deite logo no caixote do lixo (separado por mor da reciclagem).

Por isso, aos que disseram bem, o meu obrigado pessoal e em nome do Seixas da Costa. Aos que não, pois que assim seja. E obrigado na mesma.

Uma ressalva para o Senhor que assina Mugabe: tudo se pode dizer, tudo AQUI se pode dizer, não faço qualquer tipo de CENSURA, mal seria que tendo sido censurado e, até, detido, fosse agora praticá-la. Mas... haja maneiras...

E, logo que possa, prometo que vou visitar os vossos blogues.
Abs