terça-feira, julho 01, 2008




Em Junho
andam livros pelo Parque...

Maria Lúcia Garcia Marques
E
sta frase-título veio-me, assim num rufo, na toada do consagrado Andam Faunos pelos Bosques do nosso Aquilino, ao divisar a Feira do Livro marinhando pelo Parque Eduardo VII acima. Bloquinhos multicores, de um lado e outro do ajardinado central, subiam até à glória do patamar onde Cutileiro implantou, irreverente, o falo e o cravo da sua peculiar evocação da Revolução de Abril. À volta, envolvente e propiciadora, a mancha sombria do arvoredo onde se acendiam as copas dos jacarandás em flor.

Árvores e aves / livros e letras
Verba volant / scripta manent
são binómios que nos calores de Junho por aqui reinam, prazerosos.

Levanta-se esta efémera biblioteca a céu aberto num acalorado convite à decifração da escrita e ao prazer da (sua) leitura. É um jardim de palavras em exuberante inflorescência por onde parecem deambular os versos de Cecília Meireles (Rio de Janeiro, 1901-1964):

>Ai, palavras, ai, palavras
que estranha potência a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!

Sois de vento, ides no vento,
e quedais com sorte nova!

Ai, palavras, ai, palavras
que estranha potência a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota ...>

A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora ... (...)



E nesta oferta à leitura que se abre num jardim ao vento, no afã de quem quer ler, parece esquecer-se ou ignorar-se o esforço de quem escreve e o poder encantatório que se lhe exige. É que, de facto, a escrita é uma via sacra, quando não uma via crucis e só poucas vezes uma via aurea. A escrita é uma habilidade e o “escrevente” é um iniciado num tipo de diálogo que o “escritor” cultiva como arte. E é esta uma postura singular: elegendo-se inter-locutor (com o seu indispensável leitor), no entanto, o escritor mantém-se afastado, postando-se por detrás do silêncio das palavras, comandando-as por sinais que o prolongam e mascaram.

Qualquer que seja o instrumento – lápis, pena ou computador -, ele “desenha” o sentido mudo do seu verbo. Vestimenta ou disfarce, nenhuma escrita é inteiramente sincera, espontânea, ingénua. Serve para fixar, ordenar, obrigar, legar (como dom, previsão ou profecia), narrar contando – e aumentando, sabe Deus e a imaginação do Homem quantos pontos...! – factos e feitos, criando referências e efeitos, construindo, finalmente, patrimónios e imaginários comunicantes.

O sentido conquista-se duramente. Coisa difícil é contar e encantar, dizer e convencer, por detrás da letra sem rosto nem voz... Trabalho esforçado de forçado. Com esse suor invisível se faz um livro e se faz dele um objecto único que, na coragem da sua exposição, merece – sempre – todo o respeito e o preito de uma crítica honesta.

Para não falar da auto-crítica, das profundas interrogações que os escritores sempre se fazem, das radicais escolhas a que se obrigam. Tal Vergílio Ferreira, um dos mais visceralmente ESCRITOR que conheço e que, na sua Conta-Corrente, nova série, IV, testemunha:

[Inês Pedrosa] disse uma coisa curiosa que eu não sabia ou já esquecera e era que não havia razão em vituperarem-me pela «pobreza de vocabulário». (...). Inês esclareceu que o meu vocabulário era o que eu fui seleccionando para a identificação da minha prosa. E com efeito. Cada qual “escolhe” o seu vocabulário próprio em referência à sua funcionalidade para se ser quem se é. (...). Não tenho o dicionário todo na cabeça e por isso eu o uso com frequência. Mas tenho dele muitíssimos mais vocábulos do que os que me vão servindo.


A palavra é a nossa sensibilidade expressa e eu não estou aqui para sentir como o Camilo ou o Abel Botelho ou o Fialho das manigâncias vocabulares. Se o meu projecto se identificasse ao do Eça, a minha instrumentalidade verbal seria outra logo à nascença. Mas sobretudo o que eu procuro na escrita é que ela me exprima o que vou sentindo e que isso seja realmente expressivo para que ressoe na emotividade do leitor. Palavras não expressivas e ditas ricas pela raridade são uma variante de usar muitos anéis, quando basta só um para quem o usa e se chama “aliança”. (...).

E, em plena faina criativa, decide (veja-se que belo texto):

Creio que vou suspender o romance: e retomar a sério o que há dias comecei. Escrita fugaz translúcida evanescente. Poema de amor. Vou chamar-lhe “Balada”. Talvez me esvazie nele de uma certa evocação obsessiva. Sem nomes, cenas, narrativas. Coisa dada em fragmentos como breves visões. Coisa escrita em palavras sem peso. Aéreas, fluidas. E um imponderável e profundo encantamento. Já disse tudo, já viajei tudo, apetece-me agora sentar-me no recanto de mim e olhar, e ceder à ternura da memória, da toada de uma longínqua melodia.

Porque LER é um diálogo amoroso de largo espectro, com vários estádios e desfechos – da rendição ao abandono, do frívolo comércio ao prazer intenso da procura e da conquista – cabe ao LIVRO aquele amor exclusivo do bibliófilo, aquele zelo meticuloso do bibliotecário ou, ainda, aquele enraizado anelo dos leitores compulsivos, como o foi Clarice Lispector (1925-1977), no texto com que vos deixo:


Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar a casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração estarrecido, pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei mais comendo pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. Como demorei! Eu vivia no ar ... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.



1 comentário:

Anónimo disse...

Minha querida Amiga
Cada mês que se passa, cada texto que me encanta. Bem faz o Doutor Antunes Ferreira em tê-la como colaboradora. Olhe: fui à Feira e gostei