sexta-feira, fevereiro 09, 2007




Carminho & Sandra

Carminho senta-se nos bancos almofadados do BMW da mãe. Chove lá fora. Encosta o nariz ao vidro para disfarçar duas enormes lágrimas que lhe rolam pela face. A mãe conduz o carro e aperta - lhe ternamente a mão. Há muito trânsito na Lapa ao fim da tarde. A mãe tem um olhar triste e vago mas aperta com força a mão da filha de 18 anos. Estão juntas. A caminho de Espanha.

(Mais a baixo na cidade)

Sandra senta-se no banco côr-de-laranja do autocarro 22 que sai de Alcântara. Chove lá fora. Encosta o nariz ao vidro para disfarçar duas enormes lágrimas que lhe rolam pela face. A mãe está sentada ao lado dela. Encosta o guarda-chuva aos pés gelados e aperta-lhe ternamente a mão. Há muito trânsito em Alcântara ao fim da tarde. A mãe tem um olhar triste e vago mas aperta com força a mão da filha de 18 anos. Estão juntas. A caminho de casa de Uma Senhora.

O BMW e o autocarro 22 cruzam-se a subir a Avenida Infante Santo.

Carminho despe-se a tremer sem nunca conseguir estancar o choro. Veste uma bata verde. Deita-se numa marquesa. É atendida por uma médica que lhe entoa palavras doces ao ouvido, enquanto lhe afaga o cabelo. Carminho sente-se a adormecer depois de respirar mais fundo o cheiro que a máscara exala. Chora enquanto dorme.

Sandra não se despe e treme muito sem conseguir estancar o choro. Nervosa , brinca com as tranças que a mãe lhe fez de manhã na tentativa de lhe recuperar a infância. A Senhora chega. A mãe entrega um envelope à Senhora. A Senhora abre-o e resmunga qualquer coisa. É altura de beber um líquido verde de sabor muito ácido. O copo está sujo, pensa Sandra. Sente-se doente e sabe que vai adormecer. Chora enquanto dorme.

Carminho acorda do seu sono induzido. Tem a mãe e a médica ao seu lado. Não sente dores no corpo mas as lágrimas não param de lhe correr cara abaixo. Sai da clínica de rosto destapado. Sabe-lhe bem o ar fresco da manhã. É tempo de regressar a casa. Quando a placa da União Europeia surge na estrada a dizer PORTUGAL, Carminho chora convulsivamente.

Sandra não acorda. E não acorda . E não acorda. A mãe geme baixinho desesperada ao seu lado. Pede à Senhora para chamar uma ambulância. A Senhora não deixa, ponha-se daqui para fora com a miúda, há uma cabine lá em baixo, livre-se de dizer a alguém que eu existo. A mãe arrasta a Sandra inanimada escada a baixo. Um vizinho cansado, chama o 112 e a polícia. Sandra acorda no quarto 122 dias depois. As lágrimas cara abaixo. Não poderás ter mais filhos, Sandra, disse-lhe uma médica, emocionada.
Sai do hospital de cara tapada, coberta por um lenço. Não sente o ar fresco da manhã. No bolso junto ao útero magoado, a intimação para se apresentar a um tribunal do seu país: Portugal.

Eu voto sim . Pela Sandra e pela Carminho. Pelas suas mães e avós. Por mim.
Rita Ferro Rodrigues: sorriso-do-bisturi.blogspot.com/


Também sim

Conheço a Rita desde menininha, filha do meu grande e «velho» Amigo Eduardo Ferro Rodrigues, morador tal como eu na altura na Travessa do Ferreiro, ali à Lapa. (Que, em vão, tentei que um qualquer Presidente da CML reconhecesse a justiça de passar a chamar-se do Ferreira. Reforço: debalde. E de balde, tantas as lágrimas de crocodilo. Por isso, e a título de prémio da consolação, o nome deste blog).

Os Ferro Rodrigues são gente muito boa. E a Ritinha saiu aos seus, sem degenerar. Um dia, a caminho de Amesterdão, no avião da PGA sentou-se ao meu lado um rapagão, verdadeiro personagem «histórico-futebolistico»: o Dani, outro que saira do filão inesgotável do Sporting, e que, na altura, jogava no Ajax. Ora, então, o jovem prodígio namorava com... a Rita. Ali, nas minhas barbas, já que o Eduardo já cortara as dele há tempos. Ainda que eu, juro-o, não tivesse nada com isso.

Falámos de mil-e-uma coisas e, naturalmente da amada. O Dani nunca me conhecera pessoalmente, isto é nunca nos falaramos, mas teve a ambilidade de ser ele a dar o primeiro passo na nossa conversa. Que sim, que se lembrava de me ver passar na Travessa, um senhor gordo e barbudo, que também era sportinguista, tal como o pai da moçoila. Jornalista. Coisa que a namorada queria também ser. Estabeleceu-se, de imediato, uma corrente de empatia entre os dois.

É a Rita jornalista e mais, leoa dos quatro costados, que assina este texto que fui roubar ao blog dela, o sorrido-do-bisturi.blogspot.com. Texto sentido, comovido, escrito (bem) com amor e intenção. Por tal o fanei sem aviso prévio e o coloco neste travessadoferreira. Ainda é sexta-feira, dia de encerramento da campanha do Referendo que decorre no Domingo. Não quebro regra, estou dentro do horário e da lei, daqui a pouco começa o tempo de reflexão. Tal como eu, a minha ex-vizinha Rita Ferro Rodrigues vai votar sim. Ela explica-vos porquê.
A.F.

2 comentários:

Anónimo disse...

Amanhã vou votar, contrariamente ao que fiz nas últimas três eleições em que fui passear. Mas amanhã está em jogo a vida de muitos portugueses. Vou votar NÃO, para que não se matem sem poderem defender-se milhares de fetos sem se poderem defender. Que corja!

Anónimo disse...

Vai ser um Domingo em cheio. Vou levantar-me tranquilamente e nem acordarei a minha mulher Helena. Porque é um dia dedicado à importância delas e ao direito que têm de ter de dispor do próprio corpo. Às vezes, um pequeno descuido, às vezes demasiado entusiasmo, às vezes a mais brutal agressão sexual levam-nas a ter de aceitar que eliminar o mal é aceitar um aborto - mas legal, com os devidos cuidados. Por isso voto SIM.