quinta-feira, agosto 28, 2008




NA ROTA DO CALENDÁRIO

Em Agosto há mar e mar…

Maria Lúcia Garcia Marques
A-GÔS-TO é um mês opulento, encorpado e algo autoritário. Em tom rude e baixo, seu nome rola-nos na garganta, redondo e cheio como um seixo nas ondas. Por isso cheira a mar. Qualquer que seja a nossa “história marítima” pessoal, o que é facto é que este é o tempo infalível da revisitação do mar. Tempo a que chamamos “férias” e que desta relação colhe uma especial ressonância e se alarga numa trégua plena de reverberações.


Porém, por mais voltas que dê ao meu imaginário poético ou à evocação feliz das praias da minha infância, o mar continua para mim um respeitoso temor sempre presente. Reconheço-lhe, na sua movente imensidão, no brilho e na solenidade das suas colorações, na misteriosa e incessante obediência das suas ondas rolando, até na indolência com que se espraia por paraísos tropicais, uma nobreza e uma autoridade cósmica que justificam todas as procelas ou porte irado.
Mas não esqueço nunca as diferenças radicais das nossas naturezas: nem mar chão, nem mar de leite, nem mar de rosas, nem o que quer que se lhe chame e lhe dê feição acolhedora me levam a que me entregue e me confie e nem sequer me atrevo a um fora de pé emancipado: refresco-me, baloiço-me um pouco, ondeio quanto posso nas águas de uma segura profundidade e retiro-me, algo retemperada, grata sim, mas des-confiada sempre.



Porque o mar é lindo mas é também traidor, é senhor natural de mil maravilhas mas é também cioso guardador de vidas e bens que rouba sem dó. Deixou-se povoar de lendas e medos e veste-se desse mistério para acordar sonhos loucos de aventura e histórias de amor letal. Amor tão irremediavelmente íntimo que há quem se lhe entregue em estado de prova permanente, medindo forças para colher extravagantes vitórias, cavalgando o seu dorso rebelde em viagens solitárias, só pelo prazer de o sentir domado ou, no mínimo, complacente. E deve haver aí uma doação tão forte que não permitirá jamais vencedor ou vencido mas tão somente duas vontades que, sendo de natureza diversa, se entendem no milagre de um encontro único, num diálogo sem palavras mas de gestos precisos e sábios, na frágil mas perfeita conjugação do tempo da acção e do tempo da espera, do agir concertado com a oportunidade adivinhada, desaguando, nos casos felizes, numa inominável e quase orgástica sensação de plenitude, numa comunhão sem outra igual.


Foi por certo esse o filtro que enfeitiçou Amyr Klink, o brasileiro das navegações solitárias (uma travessia do Atlântico em barco a remos da costa de África até ao Brasil, seguida de uma viagem de circum-navegação da Antárctida ...), que, para além de tudo, nos consegue deliciar com as descrições dos seus diários de bordo, reveladoras, a par de um rigor técnico absoluto, de um invulgar pendor literário verdadeiramente genuíno e não raro comovente. Vale a pena acompanhá-lo nas suas histórias evocadoras de um mar diferente, muito amado e profundamente vivido.

Aqui vos deixo duas delas. A primeira sobre as ondas, suas companheiras de toda a hora que foi classificando ao seu jeito muito próprio:

As “madames” eram ondas imensas, de crista e colares formados por espuma branca, mas que, com toda a pompa não faziam mal nenhum. As “fresquinhas” não eram grandes mas passavam chamando a atenção e se sobressaíam bem. As “cuspideiras” eram ondas sempre pequenas, porém, mal intencionadas. (...). As “comadres” pareciam amigas, mas nem sempre eram de confiança. De vez em quando acertavam no barco por trás. E havia ainda as “perdidas” que chegavam sempre com mar agitado, atacando por todas os lados, tornando difícil o controlo do leme. Mas as piores de todas, imensas e traiçoeiras eram as “madrastas”, que podiam alcançar nove metros e me deixavam desprotegido e vulnerável.

A segunda, datada precisamente do final de Agosto, a comovente história de um tubarão muito peculiar que lhe apareceu a meio do Atlântico:



Era uma madrugada escura de tempo encoberto, sem traço de estrelas ou luar. Estava remando desde cedo procurando bem à popa o clarão por onde deveria nascer o sol. (...). O tempo não andava muito católico e eu aguardava ansioso as primeiras luzes do amanhecer para ter uma noção de como seria o dia. O mar poderia, às vezes por algum tempo, parecer o mesmo, mas o céu nunca. (...). Os primeiros sinais do dia que estava para nascer revelaram sombras escuras no horizonte. Não havia céu. Nuvens grossas corriam com o vento forte, baixas, não deixando espaço para o sol sair. Sem deixar os remos, eu olhava as nuvens tentando descobrir uma saída para o sol. E entre elas surgiu um vazio alongado por onde escapou a primeira luz do dia.


Aos poucos o escuro foi-se diluindo em direcção ao nascente e os encontros desse vazio tomaram uma forma achatada e definida que acompanhou as nuvens. A luz vermelha do dia entrou por ali, deixando claramente definido o formato de um tubarão. Incrível! Não tirava os olhos da estranha formação: um tubarão vazado no céu. Um perfeito tubarão! Uma pequena nuvem invadiu o vazio formando um olho. Outra desfiou-se mais em baixo. Era a boca. Barbatanas, cauda, proporções perfeitas. Não podia acreditar!




Tudo em movimento. O vento carregando as nuvens. Não parei de remar; continuei olhando ... O tubarão permanecia inteiro. Levemente passando do vermelho para o amarelo, os seus traços pouco a pouco se tornaram indefinidos, vagos, mantendo uma figura perfeita que parecia envelhecer. A pequena nuvem que fazia o olho derreteu-se e escorreu como uma lágrima arrancada pelo vento. E, por dentro do tubarão, o dia nasceu. No diário deixei escrito: “E o tubarão amarelo envelheceu e morreu chorando”.



(Amyr Klink, “Cem dias entre céu e mar”, ed. Companhia das Letras, 1995, S. Paulo – Brasil)

18 comentários:

Deusa Odoyá disse...

Olá meu estimado amigo.
Uma hoist´ria de um bravo navegador.
que enfrentou sol e mares, a procura de algum sonho.
Lindo, gostaria de poder ser como ele.
Me entregar aos braços desse infinito e traiçoeiro mar, depositar nas aguas claras e profundas, meus anseios e meus ideais, para junto desse mar ver consagrado meu grito de guerra, vencida pelo tempo e pelo c cansaço.

Abraços amigo.

Regina Coeli.

vida de vidro disse...

Gostei destas narrativas ligadas ao mar, por sua vez ligado a Agosto, este mês meio estranho e opulento, sim.
Obrigada pela visita

Antunes Ferreira disse...

Regina Rainha&
Vida de Vidro

A Autora da Secção do Travessa ROTA DO CALENDÁRIO é a Maria Lúcia Garcia Marques, minha excelente Amiga, Professora universitária e por aí fora. A ela endereço os vossos comentários. Se a Maria Lúcia vos quiser agradecer por esta via - fa-lo-á com muito prazer, estou certo
Qjs

Camilla disse...

Agosto é sempre estranho.

Antunes Ferreira disse...

Camilla

Em nome da Maria Lúcia - obrigado.
Qjs

JOSÉ RIBEIRO MARTO disse...

Um grande prazer, prosa de excelência...
Gostei também das imagens e dos excertos!
Grato a quem escreveu porque o fez para partilhar, e grato também a quem acolheu e bem !
abraço!
JRMarto

JC disse...

Texto muio bom, como, aliás já nos habituou, boa escolha de imagens. O mar para mim é tudo. Adoro mar. Quanto a Agosto é um mês que não gosto muito, gosto do meu sossego e este mês tem tudo menos isso.
Abraço

Graça disse...

Hoje, na minha visita habitual, fiquei encantada com o belíssimo texto da sua amiga Lúcia Marques. "Defeito" de profissão, como sabe, por isso aprecio uma escrita de qualidade.
É pela surpresa constante, deste seu riquíssimo blogue, que eu volto sempre.
bjs

Anónimo disse...

Lindo porra,...gostei muito !!

Anónimo disse...

Um mar fantástico, com palavras de des-gos-to... O meu pai costumava dizer que o mar não tinha guedelhas para se poder agarrar. Se calhar até tinha razão. Nem o mar, nem Agosto.

Admirável texto.

Bjo

Antunes Ferreira disse...

Vaisandando - e bem

A malta está a gostar deste belo naco de prosa todos os meses assinado pela Maria Lúcia. Meu Amigo, volta logo que queiras
Abs

Antunes Ferreira disse...

JC (antes ou depois de ti?)

Olha, caríssimo, para mim Agosto é um mimo. Circula-se em Lisboa em soft, estaciona-se em idem, as ruas estão livres. Um paraíso. Vais ver como elas mordem mal chegue Setembro...

E, ainda por cima, é nesse mês danado que eu chego aos 67...
Abs

Antunes Ferreira disse...

Querida Amiga

Vejo que gostaste do texto da Maria Lúcia. E muito bem. Ela escreve muitérrimo bem e, sobretudo, com uma graça que encanta a própria Graça. E com donaire. Pasas a lê-la todos os meses. Nesta casota que tanto elogias
Bjs

Antunes Ferreira disse...

Mugabão

Porra! não se diz isso a uma Senhora que faz coisas tão belas com esta e, alem disso, todos os meses. Obrigado Amigão e... dá cá mais dez: cinco para eu (ou será?...) e cinco para a Maria Lúcia
Abs

Antunes Ferreira disse...

Paola

Admirável texto - e admirável comentário. Há mar e mar; há ir e voltar (aqui)... Ainda bem que também tens gosto: votas no Agosto...
Qjs

dona tela disse...

Tive o meu primeiro SELO!

Beijinhos.

Antunes Ferreira disse...

Dona Tela

Sejas bem vinda. Palavra que gosto muito de te ver engrossar o número de Amigas(o)s. A internet ajuda muito.

Kékéiço do SELO. Conheço: Mais vale sê-lo que parecê-lo; o meu tio Manel era filatelista, ou seja, coleccionava selos; o selo de garantia e outros mais. Mas, na blogosfera???

Volta aqui - é uma ordem!
E vê as recomendações obrigatórias..

A Maria Lúcia é bué da fixe, não é?
Qjs

Unknown disse...

Parabéns pelo blog. Ao ler agosto, sentir a doçura/amargura do mês em que nasci.