reunidos na RTP
João Miguel Tavares jmtavares@dn.pt
E de repente, parecia que estávamos numa versão a cores do Estado Novo: Salazar transformado no mais popular dos portugueses e a irmã Lúcia elevada à santidade nos altares da televisão pública. Alguém que me belisque, porque só pode ter sido um sonho mau. Foi tão descabida esta semana da RTP que ela deveria corar de vergonha e devolver o cheque a quem a sustenta. E não me venham dizer que a vitória esmagadora
do homenzinho de Santa Comba numa votação telefónica não pode ser assacada à estação do Estado - eu digo que pode. Pode, porque a simples existência de mais de 60 mil pessoas que acreditam que Salazar foi o melhor que tivemos em 870 anos de História só é justificável por sermos uma pátria sem heróis nem referências, e por já ninguém se lembrar do que foi a ditadura, o lápis azul, Caxias e o Tarrafal, e sobretudo o país miserável, analfabeto e subdesenvolvido que nos foi deixado por quatro décadas de clausura geográfica e mental. Ou seja, mesmo que a RTP não tenha pecado por acção, ela certamente pecou por omissão: na altura em que a estação comemora 50 anos de vida, e que tanto se orgulha de ter contribuído para a construção de uma memória colectiva, eis o seu brilhante legado: Salazar e a irmã Lúcia.
Sim, a irmã Lúcia. Porque, na mesma semana em que embaraçadamente elegeu Salazar, a RTP mudou-se de armas e bagagens para o santuário de Fátima, para cobrir o centenário da vidente. E fê-lo com a mesma atitude com que há 50 anos cobria os actos do presidente do conselho: com muita devoção e nenhum sentido crítico. Desde logo, pareciam ser mais os técnicos da RTP do que os peregrinos, mas sobretudo nada desculpa o tom sabujo e diabético com que a emissão foi conduzida logo pela manhã. Ainda espreitei pelo canto do televisor, a ver se o cardeal Cerejeira não estava a passar lá ao fundo. Muito há a contar sobre Fátima. Tudo está ainda por dizer sobre Lúcia. Mas a esse trabalho a RTP não se deu. Preferiu colocar o terço na mão e cantar hossanas à indigência intelectual do país. A imagem é hoje a cores, mas a cabeça, essa, continua a preto e branco.
NE - Desta vez, tratei de fazer as coisas com mais cuidado. Telefonei para o meu Diário de Notícias e pedi para falar com o João Miguel Tavares. Resposta clássica e dolorosa: está de folga. Mau, eu com tão nobres intenções, decidido a solicitar a sexa autorização prévia e catrapumba - o homem folgava. Acontece.
Quem me informou foi o Nuno Azinheira, boa praça pelo menos ao telefone. Disse-lhe quem era e dos meus 16 anos de DN ao peito. Por ele, claro que sim. Acentuei que poria o nome do jornalista e bem assim o do quotidiano, como qualquer pessoa de bem faria. Ficàmos óptimos. Inscrevi-o na minha lista de endereços.
Amanhã, falo com o João Miguel Tavares. Dir-lhe-ei o que fiz e o prazer que tenho em o transcrever aqui, no Travessa. Porque me parece excelente o seu texto (o senhor gajo escreve muito bem) e ainda porque lhe quero pedir para fazer o favor de ler o meu sobre a fradenta criatura. Emitimos no mesmo comprimento de onda, digo eu. Assim, aqui fica o texto, aqui ficam os parabéns ao autor e, ainda, um pedido - que lhe farei também amanhã. Quando tiver um tempinho livre, escreva umas coisas neste blog. Bem haja, João. AF
3 comentários:
Durante um ano inteiro em que vivi em Portugal, ali num ultimo andar dum prédio pombalino da rua de São Julião, tive uma vista espectacular sobre a Se’ dum lado e a ponte do outro. Esta ponte que pronto aprendi ser chamada oficialmente “25 de Abril”.
Foi uma ano de imersão na realidade portuguesa, com todos os seus defeitos e as suas virtudes. O mistério mais grande com o qual foi-me embora no Junho passado depois de 12 meses lá, era este: como pode ser que o “25 de Abril”, o que no estrangeiro e’ lido como uma verdadeira revolução, fique tão longe, tão remotamente longe das cabeças dos meus colegas na Universidade Nova, avenida da Berna, Lisboa. O centro de Portugal, politico, económico e cultural. Uma metrópole multiétnica. Em Portugal, na universidade, pessoas com vinte anos e tal falavam baixinho, a voz deles ficava fraca quando se falava dele, o Doutor. Como podia ser, no 2006? Propôs a um amigo de pintar uma grande mensagem sobre a facada de espelhos da Nova, o texto teria gritado: Salazar ‘ta morto!
E julgo não ser nada banal. Portugal ainda tem que despertar com isto bem claro na mente, ele ‘ta morto e não e’ preciso baixar a voz, não e’ preciso se castrar e fazer desta mutilação mental, cultural e intelectual a coisa mais bela, do ditador de muitas décadas o homem mais grande e o dono da mente dum povo todo, ate’ houver novo.
Uma das frases que mais ouvi, quer sentado no metro, quer caminhado pelas rua e nas discussões nos bares e nas pastelarias foi..."eh uma vergonha". Nunca vou esquecer isto, e’ mesmo uma marca da maneira de falar portuguesa, utiliza-se quase como o “well” em inglês, mais ou menos, sem dar conta do assunto do qual a gente se queixa.
E ainda gostei imenso deste ano. Foi um ano em que conheci pessoas extraordinárias, portugueses extraordinários, amigos caros.
Hoje vivo em Londres, mas lindo que o ultimo ditador com o estilo mais arrentrado do Franco e dos gerais gregos foi votado o português mais importante, e pelos portugueses, faz-me pensar duas coisas, e pesei-as em português.
Primeiro, pela primeira vez, e com razão, penso “e’ uma grande vergonha para Portugal e para a Europa”.
Segundo, pois, sabia desde o inicio que a ponte que vi do meu quarto na Baixa foi baptizada com outro nome. Era a Ponte Salazar, e ainda fica quase quanto a Se’, fortificada numa mentalidade que tem que mudar.
E eu pensava no Vasco da Gama ou talvez no Figo...
Um abração, Henrique!
Eu bem disse que isto ainda acabava em Fátima!
Entre «isto» e o Paulo Bento ainda prefiro mais o segundo, ainda que não seja do Sporting. Lagarto, lagarto, lagarto! O Salazar e a Lúcia já foram. O Bento de risca ao meio ainda lá está em Alvalade. Ainda...
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