terça-feira, janeiro 08, 2008

MAIS EMBRULHO NOVO


Três Amigos do peito

Antunes Ferreira



Manuel Parto era um advogado do mais alto gabarito. O seu escritório Parto, Parto, Dores, Ambrósio & Associados tinha uma dimensão de alto lá com o charuto. No fundo, era o maestro de uma orquestra que tinha todos os instrumentos e já tocava de cor as pautas mais difíceis. Do Civil ao Crime, do Comercial ao Fiscal, incluindo naturalmente o Comunitário, nada tinha segredos para o Parto, etc. & Associados.

Ocupava um edifício moderníssimo, ali para os lados do Rego, todo vidros/espelhos, inteligente, funcional, super eficiente e carregado de dignidade com os gabinetes dos causídicos, a começar pelo do boss, em carvalho maciço ou outras madeiras carregadas de carácter, alcatifados em tons discretos como discretas eram as paredes.


Numa atmosfera de ar condicionado central, colaboradoras e colaboradores demonstravam à saciedade a competência profissional que tinham como atributo para a lida quotidiana. Do equipamento informático, nem falar. Plasmas, internet e coisas assim tinham-se tornado tão importantes que nem valia a pena acentuá-las. Existiam porque eram necessárias, úteis, essenciais, incontornáveis.

Aos clientes à espera da consulta, em salas de conforto absoluto, eram proporcionados todos os mimos e mordomias. Nas paredes, quadros de artistas contemporâneos com grandes molduras doiradas proporcionavam-lhes a possibilidade de conviverem com a beleza, de acordo com os parâmetros mais actuais.

João Direito era médico. Professor universitário, especialista em urologia, operador no Hospital Central e na sua clínica privada, empunhava o bisturi ou a faca de laser com o mesmo à vontade com que ensinava na Faculdade de Medicina. Os pacientes, quando a ele recorriam, podiam ter a certeza absoluta de que estavam em boas mãos.

O consultório, na Avenida da Liberdade ocupava três andares, tantos os gabinetes e as salas de doentes, tantos eram os especialistas que ali trabalhavam sob a sua direcção. Música ambiental, empregadas impecáveis nos seus uniformes alvos, alem disso boas, atendimento verdadeiramente personalizado, um luxo.

E que dizer da Clínica do Rosário? Maria do Rosário, sua esposa, também médica, obstetra, era a homenageada. Quatro filhos, os Carpinteiros eram católicos, tinham votado não, obrigado, no referendo, todos licenciados, todos com mestrados, todos a caminho da cátedra. Pois a Clínica era um brinquinho. Um verdadeiro mini hospital. Trinta camas, bloco operatório, laboratório de análises, exames os mais sofisticados, até ressonância magnética.


Os seus doentes confiavam nele, uma sumidade, no diagnóstico, excepcional, na terapia, inexcedível, no cuidado posto na consulta, em tudo, resumindo e concluindo, incontornável. Para além disso, um Mestre que dava aos seus alunos uma contribuição importantíssima para cumprirem o juramento de Hipócrates.

De resto, tinha-o em pergaminho emoldurado na parede por detrás dele, no consultório e no gabinete de Director da clínica. Sem jactâncias, muitos menos enroupado de arrogante, que não era, dizia a quem o queria ouvir que sempre se esforçara por cumprir esse excelso documento, mesmo ainda, quando estudante, já participava nas visitas aos pacientes acamados no Hospital Universitário. Usava o estetoscópio como quem usa uma camisa, naturalmente.



José Tendeiro era engenheiro civil, verdadeiro, obviamente com diploma, do Técnico, inscrito na Ordem, também professor, no seu caso do IST, com uma empresa de consultoria de alto gabarito e um atelier que nem sei se vos diga, se vos conte. Não se pense que se ficava apenas pela construção, o que já seria muito.

Por isso, tinha a trabalhar com ele mais colegas de profissão, civis, electrotécnicos, de ambiente, electrónica, industriais, informáticos, de materiais e sei lá que mais. Quase esgotava o rol de licenciaturas do Instituto. Além disso, arquitectos, também de todas as qualidades, feitios e tamanhos, desenhadores, um Mundo.

Contar as obras em que fora, e era, e seria responsável máximo, era tarefa impensável. Só por exemplo, em pontes, comparavam-no ao Edgar Cardoso, o que ele dizia ser um exagero, se bem que com um sorriso condescendente na face glabra. Concurso público em que a firma entrasse era meio caminho andado. Por isso, os amigos chamavam-lhe, por vezes, Código Postal.

Postal, o tanas, respondia sem o eterno sorriso afivelado na face, mas antes com uma sonora e saudável gargalhada: no meu caso é mais… portal. No último Dia da Raça – condecoração graúda da Ordem do Infante. Fora, por duas vezes, bastonário, mas abandonara. É muita areia para a minha camioneta, dizia, com mais umas gargalhadas altissonantes.

Estou velho, ainda uso expressões decrépitas, os meus netos chama-me cota, mas dizem que sou bué de fixe, porque me acham muito divertido. Tinham razão, os putos, Tendeiro era alegre, amigo da brincadeira, com uma ironia por vezes muito subtil, de outras mais espalhafatosa, pois, pois, J. Pimenta.

Exímio contador de anedotas, como sublinhava, de todas as estruturas, desde as mais contáveis – agora dizia-se politicamente correctas – até às arde e core. Que reservava para ocasiões muito especiais, por vezes só para homens e adultos com sólida formação moral e cívica, outras perante a gulosa atenção de senhoras sem falsos pruridos.

Os três eram Amigos com caixa alta desde os bancos primários da Escola Mouzinho da Silveira, ali frente ao antigo horto de Lisboa, de onde tinham transitado para o Camões, sempre na mesma turma até ao quinto ano, a partir do qual seguiram alíneas diferentes. Nem quando estavam na guerra colonial – em que participaram por não terem cunhas para a não fazerem – haviam deixado de se corresponder.

Hoje, sessentões, costumavam-se reunir no Grémio, de que eram sócios. Era ali, aliás, que o Tendeiro, beberricando o seu uísque velho, perguntar: vocês sabem a última? Se não disseres, não sabemos, claro. Como vinho tinto, acrescentara o engenheiro. Então, lá vai. Qual a diferença entre um sexagenário e um septuagenário?

Os outros dois entreolharam-se, vinha aí galhofa, ó pá conta lá que deve haver marosca. Não sabem, ponto. Deixa-te de fitas e continua. Bem, o sexagenário ainda se tenta; o septuagenário só se senta. Uma risada geral, de tais decibéis que os outros sócios olharam de viés para eles, numa crítica silenciosa.

Foi então que o Parto avançou, com coisas sérias. Estive a pensar que os anos vão passando, quando vinha para cá, no carro. Até falei ao motorista que ficou horrorizado ou, pelo menos, fingiu que sim. A questão é muito simples, mas creio que pertinente. Em julgado, defensável. O que é que vocês mais gostavam que as pessoas dissessem no vosso velório?

Porra de ideia! Só tua, és um chato. Não se chateiem, começo eu disse disse João Direito. Está ali um grande benfeitor da Humanidade. Um médico ilustre, sabedor, precioso. E, sobretudo, magnífico no trato com as pessoas. Consultas gratuitas aos pobres – um ror delas. Alma boa, espírito brilhante, profissional incomparável. Um Verdadeiro Senhor.

Parto, para alem de ter sido o da ideia, sorriu. Um verdadeiro apóstolo da Verdade e da Justiça. Homens assim já não existem. E, para alem do mais, profundo conhecedor. Desde a barra dos tribunais como advogado sublime, uma oratória empolgante, até jurisconsulto de gabarito internacional, sabia de tudo. É uma enorme perda para este País e para o Mundo.

Era a vez do Tendeiro, que não se fez rogado. Pois meus Amigos, o que eu mais gostaria que dissessem no meu velório era, muito simplesmente – olha parece que o gajo abriu os olhos. Nessa altura sim, nessa altura os outros presentes reclamaram das gargalhadas altissonantes. Um verdadeiro escândalo.

2 comentários:

Anónimo disse...

Recebi dois e-mails consecutivos que o Amigo me enviou (e a quase 300 pessoas). Num diz que é braco; noutro diz que é preto. Num, acaba com isto; noutro continua e tudo bem. Sou seu Amigo, mas julgo que você se está a tornar num Sócrates, o que é «muito péssimo»!...

Aigurou-se-me ser um princípio de chantagem sobre as pessoas. Deixe-se disso. Se quiser acabar a sério com isto, acabe. Mas não chateie com lamúrias parvas. Coitadinho.

Aos Amigos penso que se devem dizer as Verdades, sem falsidades. Se não, não se é Amigo!

Anónimo disse...

Mas os Amigos nunca falam em "anónimo" não concorda?
E deixe lá ver os seus telhados...se não teem vidro nenhum...se não precisa de ninguém?