sexta-feira, janeiro 04, 2008

COM NOVO EMBRULHO

Que tu mates

Antunes Ferreira
Aos 15 anos, Julinha era a imagem viva da mulherzinha a desabrochar. Os seios tinham crescido na medida certa, pontudos, firmes, a prometerem futuro mavioso – e ela sabia disso. Curvas não lhe faltavam, nos locais certos, distribuídas harmoniosamente, verdadeiro refrigério para os olhos dos rapazes que voltejavam em redor dela, borboletas deslumbradas pela luz que distribuía em cada sorriso ou, mesmo, num que outro beicinho de amuo, aliás passageiro.



Frequentava o Liceu Nacional D. Filipa de Lencastre, plantado ali no meio do bairro social do Arco do Cego. Boa aluna, popular entre as colegas, ia então no quinto ano, com exames finais a letras e a ciências. O ano lectivo aproximava-se do fim, um quase Verão temporão dava-lhe um calorzinho a prenunciar praia. Era mister, porem, ultrapassar a época das dores de barriga que se avizinhava perigosamente.

Rezava o Bilhete de Identidade que o seu nome completo era Júlia Maria dos Santos Carvalho, filha de e de e por aí fora, natural da freguesia de São Sebastião da Pedreira, concelho e distrito de Lisboa. Diga-se já que dali era um ror de gente, por mor da Maternidade Alfredo da Costa, empresa fornecedora de meninas & meninos, SARL. Lisboeta que se prezasse era da dita freguesia e no Arquivo de Identificação os registos eram já feitos de olhos fechados.

Mocinha ainda, ela começara a encabeçar um bando de raparigas que, por tal motivo, era conhecido no Filipa e não só como o gang da Julinha. E a sua melhor amiga, Célia, era a vice.


Corria o ano de 1960, e o Liceu aprestava-se para comemorar o seu vigésimo aniversário. Coisa fina, aquela ideia do ministro Duarte Pacheco de construir um novo edifício, de raiz, para substituir o velho palacete que durante alguns anos albergara as alunas excedentárias do Maria Amália, rebentado pelas costuras.

Daí o facto de o alvoroço da preparação festiva se juntar às preocupações das candidatas a examinandas. Daí a razão das miúdas andarem, muito mais do que habitualmente, numa verdadeira roda-viva. Daí a excitação concomitante, daí tudo o que a acompanhava e as acompanhava, a elas, protagonistas de segundo plano, a boca de cena reservada aos que iriam botar faladura, rezar missa solene, ou assim.

De qualquer modo, o orfeão e o grupinho de teatro da Mocidade Portuguesa tinham programadas intervenções destacadas nos actos comemorativos. E Julinha era solista (o Carlos, do Camões, pretendente a namorado incipiente gostava mais de lhe chamar vocalista, mas o termo era um tanto a modos de como quem diz, lembrava logo a Madalena Iglésias, a Simone de Oliveira, a Maria de Lurdes Resende…) e gostava de o ser. Adorava cantar.

Qualidades não lhe faltavam, portanto. Mas, há sempre um mas, não há bela sem senão. Era uma conversadeira profissional, do que não vinha mal ao Mundo, mas… nas aulas. A sôtora Margarida, de matemática, engalinhava com isso. Paleio, paleio, nisso é especialista, rapariga! Notas boas, mas quanto ao procedimento, torço o nariz. Vê lá se te calas, pelo menos para as outras poderem ouvir o que eu digo!

Era assim a vida por aqueles tempos, em que a guerra ainda não começara no «nosso Ultramar», vinda de fora, programada e executada pelos criminosos comunistas, e Portugal preparava-se para defender a civilização ocidental a todo o custo e ao preço correspondente. Porem, Julinha não era dessas coisas. Em casa, o pai defendia sempre que não era político, nem queria sê-lo. E rematava, solene: para mim, o essencial é o chuto na canela. Quem não é do Benfica – não é bom chefe de família!


Para chegar ao Filipa, de manhã, e voltar para casa, no Restelo, da parte da tarde, ela tomava a carreira 12, que saía de Algés, passava pela Meia Laranja, na Maria Pia e pelo Marquês, até chegar ao Arco do Cego. Viagem rotineira, sem motivos para exclamações, uma que outra discussão em redor de um lugar vago, coisas assim, confidências de vizinhas que trabalhavam fora, alguma cena entre vale de lençóis, em voz camuflada, está visto.

Tinham acabado de aparecer, à moda de Londres, os autocarros de dois andares. Uma admiração, por vezes boquiaberta. Julinha deliciava-se com a possibilidade de viajar no piso de cima. Outras vistas sobre a parte da cidade que atravessava, sobretudo Alcântara, lá em baixo, a estação dos comboios, ao longe o aqueduto. Lisboa sabia-lhe bem, sabe-se lá a quê, se calhar a castanhas assadas ou a algodão doce.

A mãe passara a recomendar-lhe atenção reforçada, cuidado redobrado, vê se cais, as escadas para o andar de cima são muito estreitinhas, melhor era que viajasses cá em baixo, é outra coisa. As galdérias é que gostam dessas alturas parvas, uma menina como deve ser, o teu caso, não deve subir, podem ver-se-lhes as roupas íntimas, os homens cá em baixo não perdem pitada – e são todos iguais.

Não dizia, (o respeitinho era muito bonito) obviamente, mas comentava para dentro de si mesma, e eu ralada, tal como afirmava o Vasco Santana na Canção de Lisboa, só que para ele era e eu ralado. Mas, nada de confusões. Olha, quem diria, também lembrava um slogan publicitário apelando ao civismo: nada de confusões; ruas prós automóveis, passeios para os peões. Por isso, boca calada, não fosse a progenitora chatear-se – e segundo andar no autocarro.


Nessa manhã, colada ao vidro da janela embaciado pelo frio e chuva, quando o bicharoco se preparava para começava a subir a Maria Pia – o espanto. Na paragem, a receber passageiros, bastantes, imobilizara-se, ainda que transitoriamente. E, de repente, olhando para fora, vira através de uma janela aberta um homem todo nu, a fazer ginástica sueca.

Tapou os olhos com as mãos, mas deixou os dedos abertos para não perder pitada daquele espectáculo matinal, flecte, flecte, insiste, insiste, o corpo musculado, via-se tudo, tudinho. E o autocarro arrancou, a imagem desnuda ficou para trás, a excitação apoderou-se dela. No liceu é que havia de ser bonito, quando contasse o que vira às colegas. E revira, tal como nos compêndios de estudo.

Primeira aula, de Português. Verbos, conjugações, conjuntivos. E ela a metralhadar: o rapaz – pois era um jovem atlético, tinha-lhe parecido uma estátua grega, mas viva – era um bonitão, um pedaço de chupar os dedos. E as colegas, Julinha, foi mesmo assim, ele estava despidinho? E tu viste-o bem? Olaré se vira. Nem camisola interior e, sobretudo, nem sombra de cuecas.

Risinhos pouco encapotados, e que tal? E gostaste? Ganda sorte! A mim nunca me aconteceria tal, sou uma desfavorecida desditosa, como seria bom, um homem todo nu e a ginasticar logo de manhã. Sortuda! O arrulho subiu de tom, a sotôra Mariana frisou o cenho, Julinha és sempre a mesma, cada vez mais subversiva. No bom sentido do termo, está visto.

E já que não te calas, vais conjugar o verbo matar no conjuntivo presente. Oxalá não dês para o torto, ainda te ponho na rua, ficas a falar sozinha no pátio, bem mereces. Vá, avança. No conjuntivo presente? Foi isso mesmo que eu disse. Deixa-te de evasivas e ala que se faz pressa. Pronto. Que eu mate, que tu mates, que tu mates, que tu mates… Rapariga, pareces um disco rachado, de repetição. Que se passa? Ai, sotôra, que tu mates, que tomates, que tomates sotôra, que tomates!!!

1 comentário:

Anónimo disse...

Remeto para o que escrevi no comentário ao texto que publica imediatamente acima. Acho-lhe muita piada, está como sempre bem escrito. Mas, com os diabos, se o Amigo quiser fechar a porta, feche. Alguem há-de apagar as luzes...