sexta-feira, janeiro 11, 2008



HISTÓRIAS DA PJ

Memória de Adriano

José Augusto Garcia Marques
N
ão era aquilo a que se costuma chamar um “homem de acção”. Reflexivo, quase contemplativo, era um homem sereno, triste, solitário e paciente. Um “trabalhador de gabinete”. Sentado à sua pequena secretária, incansável nos interrogatórios com vista à recolha dos depoimentos, escrupuloso na sua passagem a escrito.

Quem o conhecesse fora da Gomes Freire, nunca o imaginaria agente da PJ. Talvez um escriturário ou contabilista, sempre discreto e bem arranjado, sério e calmo, era uma pessoa em quem era fácil confiar. Estava nos antípodas do “modelo” típico, do retrato “robot” traçado – tantas vezes, precipitadamente -, para os investigadores criminais: havidos como impulsivos, voluntaristas, impacientes, irreverentes, se bem que solidários e generosos.

No entanto, já era, naquela Primavera de 1970, agente de investigação criminal de 1ª classe, com mais de quinze anos de carreira, colocado numa Secção de investigação de homicídios, na Directoria de Lisboa. E era um excelente profissional. Desde que colocado no lugar certo, a fazer aquilo para que estava vocacionado!

Aliás, uma das coisas que mais me fascinaram na PJ foi a constatação da multiplicidade de perfis psicológicos e comportamentais dos seus profissionais da investigação criminal. Fundamental, todavia, era adequar essas tão diferentes personalidades e sensibilidades às concretas formas de acção e de funcionamento mais ajustadas às suas características, enquadrá-las em termos de chefia e de parceiros de brigada, dar-lhes tarefas onde pudessem evidenciar as suas capacidades, prevenir os excessos e estimular as boas iniciativas.


Gestão de pessoal

Uma adequada gestão de pessoal é, assim, condição indispensável para uma maior eficácia da acção e para uma melhor realização pessoal e profissional dos investigadores. Erro grave seria colocar em missões no “terreno” unidades mais viradas para a reflexão, para a análise e para a recolha e o tratamento da informação ou castigar sistematicamente com actividades de “gabinete” personalidades mais orientadas para a acção, para a aventura ou até para o “risco”.

Serve isto para explicar as razões por que o Agente Adriano era o nosso “homem dos envenenamentos”. Por outras palavras: era ao Adriano que confiávamos a investigação da maior parte dos casos em que havia suspeitas de administração de substâncias venenosas, com ou sem ocorrência da morte da vítima.

Crime insidioso e cobarde, o sucesso da sua investigação assentava em muitos casos na admissão da culpa, primeiro passo para a confissão do(a) suspeito(a). Justa ou injustamente, o envenenamento era, ao tempo, considerado um crime essencialmente feminino. E, na verdade, um grande número de envenenamentos era praticado por mulheres casadas, vítimas, muitas vezes, ao longo de anos, da violência doméstica por parte dos maridos.

O Adriano era possuidor de duas qualidades inestimáveis para a função: uma paciência sem fim e uma invulgar capacidade de empatia, baseada numa atitude de grande compreensão, quase de simpatia, que lhe permitia ganhar a confiança da pessoa interrogada, particularmente se se tratasse de uma mulher. Era um homem alto, algo curvado, de grandes olhos salientes de um azul quase branco, que se humedeciam sempre que se emocionava. Falava pouco e a sua voz tinha um tom baixo e um timbre suave e pausado, quase de um confidente.

Tinha um tique, quando em stress, que lhe fazia subir e descer ligeiramente uma das maçãs do rosto e um traço grosso castanho-escuro, um esboço de bigode, que lhe dividia ao meio o lábio superior, largo e carnudo. O cabelo ia começando a faltar-lhe, o que, associado ao seu andar pesado, às costas curvadas e às olheiras pronunciadas de permanente insónia, lhe davam um ar envelhecido e cansado. Era, ao tempo, um solteirão de trinta e muitos anos e, que eu soubesse, vivia apenas para o seu trabalho. Mas o que nele se destacava, o que acordava nas mulheres o instinto maternal, eram aqueles olhos aguados, aquele olhar líquido de velho menino triste, como um grito sufocado a reclamar consolo e mimos.

Nem bonita, nem feia

Naqueles meados do mês de Abril, encontrava-se presa nos calabouços da PJ. Era uma mulher de meia-idade, modesta, de origem e hábitos rurais. Não era bonita nem feia, nem alta nem baixa, nem gorda nem magra. Olhava-se para ela e não se via mais do que uma mancha a preto e branco, silenciosa e sumida, receosa de dar trabalho e incómodo àqueles Senhores de Lisboa.

Era suspeita da morte por envenenamento do marido. Chamava-se Joaquina, e vestia de negro, um chale preto sobre a cabeça, quase a tapar-lhe todo o rosto. Vivera, com o Álvaro, seu marido, durante vinte e cinco anos, numa freguesia do concelho de Alcobaça. Os filhos, já criados, tinham partido para França. Durante muitos anos teve um casamento de que não se podia queixar. Era igual aos outros – com ralações, mas sem especiais razões de queixa.

Só era pena que o marido passasse tanto tempo nas tabernas, a beber e a gastar dinheiro. Mas o Álvaro sempre tinha gostado dos copos e, por vezes, apanhava a sua bebedeira. Com a partida dos filhos, o marido passou a meter-se cada vez mais no vinho, tendo-se tornado violento. Passou a bater-lhe e a ofendê-la com insultos e injúrias, quer em casa quer na rua. Dera-lhe para passar a ter ciúmes dela, o que mais contribuía para a sua agressividade.

Nas últimas semanas que antecederam a morte do Álvaro, este começou a queixar-se de dores de barriga e a perder peso. A mulher levou-o algumas vezes ao Hospital e, como as dores aumentassem e o marido se sentisse cada vez pior e mais fraco, chegou a trazer o médico a casa. O mal foi-se agravando, até que o Álvaro morreu, sempre medicamente assistido. Ainda não tinha sessenta anos. A natureza súbita e não diagnosticada da doença, conjugada com o facto de não lhe serem conhecidas doenças anteriores, obrigaram à realização de autópsia. O relatório do exame às vísceras, chegado à PJ, três ou quatro semanas depois do óbito, revelou a existência de arsénico, em dose susceptível de ser causa da morte.


As desconfianças, não só da PJ mas também da aldeia, recaíram logo sobre a Joaquina, que foi detida. Ao longo dos dias de prisão preventiva (sem culpa formada), era diariamente inquirida pelo Adriano, em longas sessões de interrogatório que começavam mais ou menos à mesma hora, ao fim da tarde, e decorriam no silêncio do gabinete do agente. Sem pressas, sem gritos, mais se diria o relato murmurado de acontecimentos vividos em horas más, feito, em confidência, por uma Mulher que sofria a um Amigo disponível para ouvir, aconselhar e guiar.

Conquistar a confiança

O Adriano começou por conquistar a confiança da Joaquina, que lhe foi relatando, primeiro entre longos silêncios, depois de forma cada vez mais fluente, o seu dia-a-dia, em casa e no campo, a educação dos filhos e a sua posterior saída de casa em busca de melhores condições de vida, a convivência com o marido, a sua grande fé em Nossa Senhora de Fátima.

Depois, pouco a pouco, foi-se abrindo acerca da relação com o marido, da fraqueza do Álvaro pela bebida (“coitado, era mais forte do que ele”), da agressividade de que, nos últimos anos, foi revelando para com todos e até para com ela (“eu perdoava-lhe porque ele não era mau homem”). Descreveu a doença do marido, a promessa que fez, se ele se salvasse, de ir a Fátima fazer de joelhos vinte e quatro voltas em redor da Capelinha das Aparições, dos médicos que tinham consultado.

Ganha a confiança da mulher, o Adriano passou a acentuar a vida de martírio da Joaquina, os maus-tratos, as brutalidades, os insultos, as injúrias, o medo, as noites sem dormir... Tendo começado por minimizar esse tempo de sofrimento, a Joaquina passou a reconhecer sem custo a verdade do quadro que aquele “Senhor Agente” – “tão simpático e humano” – lhe descrevia.

Um peso na consciência

E passou ela própria a relatar com pormenor os actos de maior violência que sofreu e as circunstâncias de tempo e lugar em que os mesmos tinham ocorrido. Passada essa etapa de auto-comiseração, partilhada em confidência, era chegado o momento de explorar o sentimento de culpa da Joaquina: “Não compreendo como uma Mulher como a Senhora consegue dormir com esse peso na consciência”...

E, perguntado sobre que peso seria esse, ele continuava, como se não a tivesse ouvido: “Verá como se vai sentir muito melhor depois de contar tudo, mas tudo, o que fez. A Justiça saberá avaliar o seu sofrimento, o martírio que sofreu, o estado a que chegou”. O interrogatório do Adriano não esqueceu o sentimento de superstição religiosa da detida, sempre associada à noção de culpa, ao remorso.

Assim: “o Álvaro não lhe aparece em sonhos? O que é que ele lhe diz? Não acha que ele também precisa de ter sossego no outro mundo?”. Ou então: “Se tem fé em Nossa Senhora de Fátima, porque não lhe promete que irá ao Santuário logo que cumpra a sua obrigação para com a sociedade?” “A propósito: desde quando não vai a Fátima?”. A resposta surpreendeu-o: “Fui lá já depois que o meu homem morreu – levei uma vela de cera com a altura dele”. “Foi lá pedir perdão a Deus e a Nossa Senhora?”. A mulher não respondeu.

No dia seguinte, ao cair da noite, bateram à porta do meu gabinete. A porta entreabriu-se e o Adriano espreitou. Mandei-o entrar. Vinha emocionado, com os olhos marejados de água. “O que é que se passa?”, perguntei eu. “Já confessou, Senhor Dr., a Joaquina já confessou”.


Uma lágrima escorreu-lhe pela face, ao mesmo tempo que o tique lhe fazia subir e descer a maçã do rosto. “Porque é que está a chorar, Sr. Adriano?”, não resisti a perguntar. Olhou-me com surpresa: “É o meu trabalho, é a vida de um polícia, Senhor Doutor.”

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