sexta-feira, janeiro 11, 2008



GOA, AMOR MEU



Cataratas e camaradas

Antunes Ferreira

O jeep salta sobre um caminho de cabras que me faz recordar as picadas de Angola, onde, por vezes, passei por momentos angustiantes, com a adrenalina em explosão, no receio de uma outra, mas esta de mina armadilhada na terra vermelha ou no capim. Aqui não há bombas. Há um solo pedregoso, esburacado de crateras, plantado de calhaus, debruçado sobre ravinas, atravessado por cursos de água limpidissima.
E o verde matizado numa paleta gigante da mata que nos abraça e nos acaricia.

Partíramos de Panjim com a finalidade de visitar algumas coisas interessantes do interior de Goa. Em especial, a Cascata de Dudhsagor, uma das maiores da Índia. Em Konkanim significa "mar de leite" (dudh=leite e sagor=mar) que se encontra no distrito de Sanguém, na fronteira com o estado vizinho, Karnataka.


Cedinho para, no caminho para a catarata, chegar logo que possível onde nos desse a realíssima gana. Ao volante do Tourist Taxi o seu proprietário
o Premanand, de apelido Pednekar. É uma carrinha Maruti-Suzuki, pequenota mas agradável, escrupulosamente limpa, o que já começa a ser vulgar por aquelas bandas. O nosso condutor é um tipo simpatiquíssimo, hindu. Ele diz orgulhosamente que é goan. De Fattawada, Bardez. Um dia inteiro – oitocentas rupias. Carro e condutor, sem esmiuçar as quilometragens. Pouco mais de 13 euros. Leram bem – treze.

Em casa os pais, agora falecidos, falavam Português. Por isso entende umas coisas, o que lhe permite exibir um teclado impecavelmente branco na boca aberta, rodeada por pele morena escura. Quando apanha uma palavra, uma expressão mais fáceis. Ri-se, assim, quase continuamente, o que não o impede de conduzir excelentemente, num tráfego que se pode caracterizar por um só qualificativo: caótico. O meu Pai sempre me disse, filho não troques um Amigo por uma punhada de rupias. Concordo. Bom Pai.

Percorrer as estradas do mais pequeno estado da Índia não é muito aconselhável para quem tenha o coração maricas, não habituado a tais trotes. As vias são, normalmente, estreitas, para não dizer mesmo muitíssimo apertadinhas. Quando estive pela primeira vez, lá vão 27 anos, na antiga colónia portuguesa, já então parte integrante da Índia, foi um susto permanente que se apossou de mim. Durou dois dias.

Ao terceiro – ponto final, parágrafo. Já me habituara à confusão desorganizada do trânsito. Disse-me então um familiar de minha mulher, natural de Raia, Margão, Salcete, como consta de certidão de nascimento que refere ainda, do sexo feminino e raça ariana, que era preciso entender o que ali se passava. E explicou-me que havia terras em se circulava pela direita, outras pela esquerda e em Goa… pelo centro. Palavra de honra que nunca conduziria naquelas paragens. Ainda para mais, o que não me abunda são qualidades de condutor com o volante… à direita.

Experiência adquirida em múltiplas viagens à Índia, levou-me a concluir que essa desorganização organizada das roads do país era regra geral. A partir daí, paciência, resignação, desprendimento e impassibilidade q.b. polvilhados de laivos de cagaço à vontade do freguês, tornaram-se na minha bíblia rodoviária. Matso upcar cor, façam o favor de acreditar.

Passamos por Pondá, a caminho de Molem. É ali que deixamos o Premanand e o seu táxi para tomarmos um todo-o-terreno bom. Com molas a preceito, para se ultrapassar cursos de água – naturalmente a vau – ou atravessar para a outra margem por diminutas pontes que não sei se vos diga se vos conte. Para arrostar com as crateras do solo, para pisar os calhausões do mesmo. Uma viagem interessantíssima, o condutor e guia são magníficos, estabelece-se de imediato uma cumplicidade sem fronteiras. Esta malta de Goa é bué de fixe, diriam os meus netos. E é, acrescento eu. Excelentes camaradas


Chegados ao estacionamento antes da cascata – que se vê ao longe, escorrendo pela montanha, posso sentir o seu espumar como se estivesse junto dela, há que seguir um trilho a pé. Vão minha mulher e um Amigão, o António Guimarães. Eu, gordo, King Kong size, receoso da circulação duvidosa (pior que a das estradas) das minhas pernas – e das minhas banhas – não me aventuro, fico-me ao pé de macacos brincalhões. Faço uns bonecos com a digital. De Dudshagor, à distância. Confio nos valorosos aventureiros para ultrapassar a falta de mais fotos motivada por este descanso. Preguiça é o que é.

O guia, que ficou a acompanhar-me, vai-me falando da ponte do caminho-de-ferro que passa por cima das quedas. Sublinha que foi feita no tempo dos Portugueses, aliás para recordar, sempre foram 451 anos que estes pequenotes do extremo sul da Europa por ali andaram, por ali viveram, por ali casaram, por ali fizeram filhos, por ali repousam no solo eterno.


À volta, os goeses – bons camaradas – cantam um mandó, que minha mulher acompanha numa toada de mais ou menos. Para a música, Raquel dixit, tem pouco ouvido. Nenhum, acrescento. Esqueceu praticamente o Konkanim, mas vai readquirindo alguma coisa, pequena. Diz ela, bastas vezes, que eu sou mais goês do que ela, nada e criada naquela terra bendita. Feitios. Respondo-lhes com É uma casa à Portuguesa, com certeza, cuja música eles sabem de cor. E até algumas palavras. Cenas de um quotidiano gargalhado e sensacional.

Eis-nos de regresso. Premanand volta a sorrir abertamente, voltámos safe and sound, sãos e salvos, comenta no seu inglês muito aceitável. And in good shape, acrescenta. Respondo-lhe Deu borem korum, muito obrigado, e ele atira um de nada acompanhado de sonora gargalhada. Ainda dá tempo para passarmos por um templo da altura da dinastia Kadamba, que hoje é título dos autocarros de uma transportadora que usa esse nome.

Vamos até Margão, para fazer visita de médico a primas da minha mulher. Que nos têm preparado uns bojés com chutney de coentros e, espanto para quem não está habituado, croquetes à boa maneira portuga. Eu estou e por isso não me atendo a frioleiras e avanço nuns e noutros. Elas, que já me conhecem de ginjeira nem se admiram com o meu gosto – e apetite – por picantes. Sou mesmo um pacló goês.

O sol vai caindo no poente, a caminho de um descanso que só terminará na alvorada do dia seguinte. São lindos os poentes de Goa. Como é tudo lindo por aqui. Deu bori ratt dium, boa noite. Diziam os antigos que quem viu Goa não precisa de ver Lisboa. Para um lisboeta empedernido mas um tanto farto desta cidade das sete colinas, a antiga Gomantak é na verdade um paraíso. E não é preciso os guias turísticos e as agências de viagens carregarem na tónica. É que Goa é mesmo.

E o Premanand à despedida, face à ausência de programa para o dia seguinte: amanhã não tem. Em bom português. E, vejam lá, sorri. O malandro não perde pitada.

(Fotos do António Guimarães, as boas, e minhas, as menos boas. Cada um é pró que é e não vás sapateiro alem da chinela)


2 comentários:

Anónimo disse...

Que belo aperitivo - a provocar apetite para ir ao prato forte!
Quem é grande, tem grande pena!
Viva!
Grande abraço

Anónimo disse...

HAF...brilhante como sempre e uma delicia de sentir. Não se atreva a parar.