COM NOVO EMBRULHO
Que a Pátria vos contempla
Antunes Ferreira
Não havia como ele no que dizia respeito ao respeito, estima e consideração – e permita-se verdadeira adoração – por Sua Excelência o Senhor Professor Doutor Presidente do Conselho. De tal forma que, seguindo escrupulosa e ditosamente as excelsas determinações do Salvador da Pátria, honrava a memória, sublimava os desejos de manter a fé e o império, em resumo, tudo pela Nação, nada contra a Nação.
Feito o Serviço Militar, 38 meses, dois anos a defender o nosso Ultramar na Guiné, como soldado, Jerónimo Perpétuo da Silva era, agora, continuo no Ministério das Corporações. Como sempre, dedicado, trabalhador – cumprindo os estatutos da União Nacional a que pertencia «quase desde a fundação, da UN, não da nacionalidade – atento, venerador & obrigado, era um dos homens de confiança do Senhor Ministro. Alto lá: um dos, não; o homem de confiança, sem mais ressalvas ou dúvidas. E por isso, não hesitava: a minha política é o trabalho. Ponto.
Fazia parte Legião Portuguesa, naturalmente. Terço da Graça, junto ao Regimento dos Serviços de Saúde. E não enfileirara na Mocidade igualmente Portuguesa porque ainda não era nascido quando a prestimosa organização juvenil fora iniciada por Decreto-Lei em 1937. E ele só era da colheita de 47. Uma pena. A LP era uma milícia patriótica que estava sob a alçada dos Ministérios do Interior e da Guerra. O seu objectivo era "defender o património espiritual da Nação" e “ impedir a ameaça comunista”. Excelentes propósitos.
Contavam os mais velhos nacionalistas que durante a II Guerra Mundial a Legião fora o único organismo português que se colocara sem tergiversações ao lado das intenções de Hitler. Nada mais justo e justificado. Nos anos 60 que estavam a terminar, a sua acção caracterizava-se pela perseguição e repressão às forças oposicionistas, principalmente aos malditos comunistas. Para tanto contribuía e bem o seu Serviço de Informações e a sua vasta rede de desinteressados e patriotas informadores.
Na Organização continuava raso como fora na tropa. Um verdadeiro pau para toda a obra. Era diligente, activo, aprumado, disciplinado – mas não passava da cepa torta. Tinha aspirações, quiçá mesmo ambições – subir na vida. Tudo ali o empolgava, a farda esverdeada, o erviço, o apresentar armas. Acresce que, do que nela mais gostava era o hino, que, ainda que desafinado, cantava a plenos pulmões.
«Nós teremos que vencer, nada temos a temer, da invasão comunista. Já existe a Legião, ao vento solta o pendão, dá combate ao anarquista. Não voltamos ao passado, acabou o revoltado, disso temos a certeza. E mais tranquilos andamos, porque todos confiamos, na Legião Portuguesa. Reparai no seu marchar, os braços a oscilar, elevando a mão ao peito. Garbosos e aprumados, são verdadeiros soldados, da ordem e do respeito. Ele é um soldado unido, quer na paz ou quer no perigo, o seu lema é avançar».
E terminava, tonitruante: «Respeita o seu comandante, gritando sempre: Avante!, Por Salazar! Salazar!» Peito feito e cheio, orgulhoso e virtuoso, apenas tinha o senão atravessado – não ter chegado a amanuense, a terceiro oficial, sabe-se lá, a segundo. Mais do que isso, impossível. Um dia, encheu-se de ânimo, coragem nunca lhe faltara, e quando levou o cafezinho ao Senhor Ministro, deu-lhe conta da sua angústia.
Ó Jerónimo, isso resolve-se. Tu só precisas de fazer a quarta classe. Dás muitos erros de ortografia? Nada, alguns, poucos, uns zzz por uns sss, uns sss por uns ççç, coisa pouca, até fechava, assinando, todos os dias os livros de ponto. De contas, fazia as quatro operações e muito gostava de multiplicar. Ora bem. E de História? Aí é que a porca torce o rabo, com o devido respeito, Senhor Ministro. Vossa Excelência sabe, é tudo muito complicado, muitos reis, muitos marujos, muitas guerras, muita confusão.
Vais fazer o curso para adultos, iniciativa meritória da Situação, e se for caso disso, o Dr. Fonseca ajuda-te, explica-te algo de que necessites. O Dr. Fonseca era adjunto do Senhor Ministro – e assim foi. Horas a fio embrenhado no compêndio do José Relvas, decora aqui, esquece acolá, não entendo patavina desta porra, mas se é preciso, o que tem de ser tem muita força.
Exame na Escola 37 ali à Pampulha. O Senhor Ministro dissera-lhe na véspera, que as provas escritas, sabia ele, tinham sido boazitas, agora só faltava a oral. Nada de nervoso miudinho, nada de tremuras: o examinador já sabia quem ele era, estava certo de que lhe facilitaria a vida, mesmo com uma ou outra calinada, a coisa daria para o certo. O próprio Dr. Fonseca falara com o professor e dera-lhe conta do interesse ministerial.
Pelas nove da manhã, ei-lo na carteira de examinando, ciente de que iam ser favas contadas. Bom dia, Senhor Jerónimo Perpetuo da Silva. Sei muito bem dos seus dotes morais, do seu empenho, da sua perseverança. Do seu apegado amor à Causa. Do seu patriotismo. E da sua esperança de melhores dias profissionais. Vai tê-los, estou certo. Não se precipite, pense antes de responder.
Então quem foi o descobridor do caminho marítimo para a Índia. As engrenagens cerebrais, de tanto trabalharem, quase se ouviam na sala apinhada de gente, a maior parte verdadeira claque de apoio, mas respeitosamente calada. Foi o Senhor Professor Oliveira Salazar.
Olhos franzidos, os do mestre. Não se preocupe, não se enerve, respire normalmente, descontraia-se, aqui ninguém lhe quer mal, a começar por mim. Bom, mas uma falha, qualquer um tem. O Senhor Presidente do Conselho é um Homem imprescindível, a maior figura de Portugal, mas daí a ter descoberto o caminho marítimo para a Índia. Adiante. Quem descobriu o Brasil? Pense bem, foi um navegador, foi o Pedro Álvares Cab… Salazar! Quem poderia ser mais?
Bom, paciência, prossigamos, o examinador bafejou as lentes, limpou-as ao lenço de assoar, não estivesse o gajo cunhado e bem, de cima, do poder, outro galo cantaria. Pensamento, apenas, porque da boca saíra mais uma benevolência, ó Senhor Perpetuo, isto aqui não é um tribunal (antes fosse, o sacana já estaria a ver o sol aos quadradinhos), responda-me agora, sem medos, tem o tempo que quiser.
Quem foi o rei restaurador da Independência Nacional, contra os espanhóis que tinham usurpado à traição o trono português durante sessenta anos? Recordo-lhe os quarenta conjurados, o Dom João Pinto Ribeiro. Com quem começou a IV Dinastia, de Bragança. Compreendeu? Um aceno que sim, com a cabeça, aparentemente rectilíneo, dúvidas afogadas. E, de novo – Salazar.
O professor não espumou por vergonha e contenção. Assim, não vamos lá, senhor Pacífico – Perpetuo, se faz o obséquio, Perpetuo – assim não leva o diploma por que tanto anseia. Uma última questão, simplicíssima, se não lhe responder correctamente terá de voltar cá no ano que vem. Mas, espero que tal não seja necessário. Quem foi o primeiro rei de Portugal?
E o digno examinador, para com os seus botões, esta não é simples, é simplicíssima, qual é coisa qual é ela, cai no chão fica amarela e é a galinha que o põe? Nem o mais obtuso ignorava que se tratava do Afonso Henriques, que começara tudo, toda esta confusão lusíada, mal começada, de resto, com um filho a bater na mãe. Jerónimo abriu-se num sorriso, desarrolhado a língua, escancarados os lábios. Essa ele sabia. E, sem quaisquer vestígios de dúvidas, hesitações ou tibiezas – Salazar!
Terminou o seu exame. Infelizmente terá de voltar cá. Está chumbado. Chumbadíssimo. Nem todas as cunhas do Mundo, nem a intercepção da União Nacional unida e inteira, nem as recomendações do Senhor Ministro, nem as palavrinhas do Dr. Fonseca. Nada.
Jerónimo Perpetuo da Silva chegou à porta da sala de exame, parou por uma fracção de segundo, virou-se para trás, encarou o mestre como forcado a encarar a besta cornúpeta e desfechou, alto e bom som: Comunista!
terça-feira, janeiro 01, 2008
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2 comentários:
Incrivel ... como por via de uns erros menores e sem importancia, se estraga uma carreira !!!
Casos como este deviam ser denunciados. Raul
Estou der acordo com o Raul Anónimo. São apenas erros menores os do sr.Perpétuo... Claro que cometidos no antigo (e «odiado») regime, hahahahahaha!
De qualquer forma, o Sr. Antunes Ferreira, que continua a escrever muitíssimo bem, podia ter outra maneira de pensar, uma ideologia diferente. Para si, Sr. AF, apenas o falso eng.º Sócrates está certo. Olhe que no tempo do Senhor Professor Oliveira Salazar, ainda que tudo não fossem rosas, estávamos muito melhor do que hoje estamos. Havia Ordem, Progresso seguro, Respeito, Moral e Patriotismo. Se viesse um novo Doutor Salazar, outro galo cantaria.
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