segunda-feira, setembro 24, 2007




À RODA DOS DIAS

Setembro

Maria Lúcia Garcia Marques
E vão nove! O ano começa a declinar e Setembro cai, assim, no calendário, gentilmente, qual primeira folha de Outono, delicado e algo entardecido, como um vinho raro. Repare-se no próprio número que lhe coube – o mais abastado dos números naturais, na ordem crescente de valores, mas, no seu desenho, muito depurado e sóbrio: alto, com alguma fragilidade na haste de suporte, eu diria elegante, aureolado no topo – um número “com cabeça”. Ou não fora o titular da imorredoira “prova dos nove”, do fatal “noves fora nada!”, do acelerado “ir a nove!” (que lhe advém do facto de, nos eléctricos, a velocidade máxima se obter pela deslocação do manípulo nove pontos para a direita). E a confirmar o sofisticado do seu visual, a expressão “cheio de nove horas” a querer dizer cheio de delicadezas e mesurar, no pretensioso apuro nas vestes e ademanes.

Pois, ainda que sem estes últimos exageros, Setembro é um mês assim. Um porte de cavalheiro bem trajado, um tudo nadinha “retro”, um pouco adiantado na vida, maduro, “connaisseur” dos prazeres deste mundo “Música, mulheres e vinho!”.

Especialmente deste último, porque Setembro é o mês do vinho – a festa das vindimas, reconquista-lhe a juventude nas cantigas brejeiras, os lagares rescendem a mosto vivo, o ar ferve num Sol de Baco. E lembram-se então as estentóreas canções da estudantada:
Era o vinho, meu bem, era o vinho
Era o vinho que eu mais adorava (...)

ou o “heróico”:
Filinto Elísio,
Da velha França,
Enche-me a pança
Deste sabor
Malditas tripas
Que não comportam
Quarenta pipas
Deste licor


a escorropichar um copázio ao som das trovas


Primeiro atirador atira, atira (repetido até esgotar o conteúdo),
e quando acabava:
Mas que grande compinchão
Que bem comporta o seu quinhão!

e seguia a roda: Segundo atirador atira, atira..., até ao último.

Nesse tom se recorda também o fabuloso “Pranto da Maria Parda” que o nosso Gil Vicente escreveu verberando a subida do preço da canada de vinho (saudosa Aura Abranches, gloriosa Maria do Céu Guerra que a encarnaram em palco ...).

Mas o vinho do Setembro de que eu gosto é um vinho de casta, feito com amor e devoção como uma ária ou um poema, servido e degustado com unção e prazer, na intimidade e no silêncio de quem comunga da obra de Deus. Com traduções de um requinte que as faz verdadeiras odes: vejam como se “escreve” um velho Bairrada tinto: “Um Baga aristocrático. Fruto de cereja preto e muito mineral com notas balsâmicas de resinas e ervas aromáticas com algum cacau à mistura. Boca fina com taninos muito firmes de estilo clássico, medianamente secos e muito saborosos; sólido, amplo e muito elegante, termina longo e com classe”. Divino!

E é uma imagem bonita de um Setembro pausado e convivente a de Neruda na sua “Ode ao vinho”:
Amo sobre una mesa,
cuando se habla
la luz de una botella
de inteligente vino.

Setembro das últimas maturações, do ano a três quartos, das cálidas memórias ...
Setembro num hausto de maçã e canela sorvido num cálice de Porto.
À vossa!

3 comentários:

Anónimo disse...

Esquecidas as férias, aqui estou de novo a aplaudir e a agradecer a esta autora tão brilhante. É um prazer lê-la!

Anónimo disse...

Mais uma pequena maravilha! Ainda por cima eu sou de 18 de Setembro de... não posso dizer a minha idade, porque assusta. Continue, mimha querida.

Anónimo disse...

Original e muito interessante. Fiquei cliente.