sexta-feira, março 02, 2007




QUID JURIS?
Tiro nos cornos…

O Ricardo Charters d’Azevedo volta a atacar… Desta feita, o senhor gajo mandou-me este naco de prosa, verdadeiro mimo inserto na Jurisprudência indígena, que já está registado nos Anais de Bem Ler, Escrever e Interpretar a Língua Pátria. Para além do evidente assento na Colectânea que também se indica.

Para quem entenda que o Fernando Pessoa, para além do seu absinto no Martinho da Arcada e dos heterónimos e da Mensagem e de todas essas coisas importantes, escreveu a frase que se tornou lapidar, a nossa Pátria é a Língua Portuguesa. E o resto é paisagem. O recurso que o Ministério Público entendeu fazer, face à sentença inicial do magistrado da primeira instância, vingou – e bem.

Os Desembargadores lisboetas encheram-se de brios. E produziram um Acórdão que bem merece divulgação, mesmo muito para além e naturalmente do âmbito deste blog. Os Portugueses e, naturalmente, as Portuguesas bem andam necessitados de aprender a nossa língua. Já não se trata da odiosa tarefa dos meus tempos de moço: dividir as orações dos Lusíadas e passar por cima do Canto IX do poema, aliás «inexistente» para a censura moralisto-salazarista. A Ilha dos Amores era indecentemente pornográfica…

Fiquemo-nos por aqui. Não sem encomiar ainda o trabalho do João Simas, de Évora, que enviou o primoroso excerto do documento exemplar ao meu Amigo Ricardo. Nem faço ideia de quem seja; mas tem de ser um tipo porreiro, isto é, um senhor tipo porreiro. Esteja atento, João Simas, esteja atento, como agora demonstrou estar. Continue. Descobertas destas, pelo menos, cabem no Travessa do Ferreira. E em muitos mais lugares. A.F.

Por conseguinte, e com a devida vénia, transcrevem-se a seguir extractos do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9 de Abril de 2002, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVII (2002), tomo 2, página 142 e seguintes.

O Ministério Público deduziu acusação pela prática de crime de ameaças porque " durante uma discussão, o arguido ameaçou o ofendido, dizendo que lhe dava um tiro nos cornos". "Com tais palavras o visado sentiu intranquilidade pela sua integridade física".

O Juiz (de julgamento) decidiu não receber a acusação " porque inexiste crime de ameaças (…) simplesmente pelo facto de o ofendido não ter «cornos», face a que se trata de um ser humano. Quando muito, as palavras poderiam integrar crime de injúrias, mas não foi deduzida acusação particular pela prática de tal crime ".



O Ministério Público recorreu da decisão, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa acolhido o seu recurso, dando-lhe razão, remetendo-se o processo para julgamento, entre outros, pelos motivos que de seguida se descrevem, em breves extractos.

"Como a decisão (recorrida) não desenvolve o seu raciocínio – talvez por o considerar óbvio -, não se percebe quais as objecções colocadas à integração do crime. Se é por o visado não ter cornos estar-se-ia então perante uma tentativa impossível? Parece-nos evidente que não ." "Será porque por não ter cornos não tem de ter medo, já que não é possível ser atingido no que não se tem ?"

"Num país de tradições tauromáquicas e de moral ditada por uma tradição ainda de cariz marialva, como é Portugal, não é pouco vulgar dirigir a alguém expressão que inclua a referida terminologia. Assim, quer atribuindo a alguém o facto de "ter cornos" ou de alguém "os andar a pôr a outrem" ou simplesmente de se "ser como" (…) tem significado conhecido e conotação desonrosa, especialmente se o seu detentor for de sexo masculino, face às regras de uma moral social vigente, ainda predominantemente machista ".

"Não se duvida que, por analogia, também se utiliza a expressão "dar um tiro nos cornos" ou outras idênticas, face ao corpo do visado, como "levar nos cornos", referindo-se à cabeça, zona vital do corpo humano. Já relativamente à cara se tem preferido, em contexto idêntico, a expressão «focinho» ".

"Não há dúvida de que se preenche o crime de ameaças (…) uma vez que a atitude e palavras usadas são idóneas a provocar na pessoa do queixoso o receio de vir a ser atingido por um tiro mortal, posto que o local ameaçado era ponto vital ".

Ora vivam, Senhores Desembargadores! A Justiça é vendada – mas não é cega.

5 comentários:

Anónimo disse...

Gostei muito. Mandem mais destas. E ainda dizem que a Justiça nacional anda de rastos... Palmas para o Senhor Desembargador.

Anónimo disse...

Assim é que é. E quem discordar, leva um tiro nos cornos!... Estou com o Tribunal da Relação de Lisboa. Gostava de saber quem seria o Desembargador...

Anónimo disse...

Meus senhores, há por aí muita gente que devia levar um tiro nos cornos deles. E viva o senhor dezembargador.

Anónimo disse...

Que o Fernando Pessoa frequentava o Martinho da Arcada, já sabia. Agora que fosse fã do absinto, para mim é novidade. A ser assim obrigado Dr. Ferreira

Anónimo disse...

Como jurista - sou advogado, como digo - fiquei muito satisfeito com esta atitude de um Desembargador da Relação de Lisboa. No meio de tantas ralações com a Justiça (muitas, justas, outras, poucas, menos...) um homem da Relação com tanto siso e bom senso, é de aplaudir. Desculpem-me o trocadilho. Pena é que não se saiba o nome deste magistrado a sério.

Cada vez mais visito este blog. Tem muitíssimo interesse, é variado e, caso raro, bem escrito. Tenho de felicita-lo, Dr. Antunes Ferreira. Julgo saber quem é - um Homem com H grande. Não somos da mesma família política, mas não me importo, muito menos me preocupo. Obrigado a si e aos seus Colaboradores