sábado, dezembro 09, 2006
TECLADO QWERT
O pudim do Abade
Antunes Ferreira
Restaurante. Um grupo de senhores ligados ao foro despacha com a brevidade possível um almoço frugal, dada a escassez do tempo para deglutir. A audiência, interrompida há pouco, para esse debicanço quase espartano, vai recomeçar dentro de uma escassa meia hora – bem espremida. Abundam as sandes salvadoras e os sumos - para prevenir a sessão da tarde que se antevê longa e quiçá um tanto sonolenta.
Os empregados de mesa franzem os narizes. Tanto doutor junto, toga debaixo do braço e pasta a preceito, e a montanha está a parir um rato. Despesa de merda, confidenciam, não tão sussuradamente quanto é uso utilizar em tais ocasiões. Unhas-de-fome, judeus, avarentos são outros vocábulos entre dentes que correm entre travessas episódicas e pedidos tímidos.
Sentado a uma mesa, um causídico dá-se a destoar dos restantes. Receita uma suculenta omoleta de camarão e um branco seco bem fresco com o frapê enfiado na garrafa, há quem lhe chame gabardina com ar condicionado; outros mais afoitos e menos comedidos dizem que o artefacto é uma camisinha com a Vénus enregelada. Expressões.
E a tortilha que seja frita em azeite, com cebola e pimenta, alem do sal, naturalmente. E venha com picles, mais pepino que couve-flor, azeitonas verdes, de preferência pisadas e temperadas com azeite e sal, se tivessem uns coentros migadinhos eram de estalo. Já agora que há arroz de ervilhas, acompanhe com umas batatinhas fritas, às rodelas.
Os colegas de tribunal e de repasto, para eles sumário, ao contrário do processo que talvez nem se resolva na tarde que se antevê, pasmam e miram. Se assim acontece, é uma porra, porque assim, alguns, bastantes, terão de se meter à auto-estrada, portagens e marmeladas dessas, para voltarem no dia seguinte, uma seca, e para isso se está aqui a passar malzinho, pão com fiambre e queijo fatiado não é proposta que se coma.
Comida de plástico
Ainda se fora de presunto pata negra de Barrancos e queijo de Manteigas obviamente amanteigado, vá que não vá, em tempo de guerra não se limpam armas. Mas esta comida de plástico não vale a ponta de um chavo, quem sabe mesmo se não terá produtos incorporados daqueles que se diz que são cancerígenos. Ou transgénicos, apesar das normas europeias, aliás para o que lhes havia de dar. Aos tipos de Bruxelas, claro.
Os «outros» entreolham-se. Aquele colega não terá horário? Acaso o meritíssimo o dispensou do início da sessão? Se calhar só está como representante de parte interessada, tem tempo, está-se nas tintas para os ponteiros do relógio, que se lixem. Há malta assim, já nasceu com o cu virado para a Lua. É um pouco como o pilim que se tem. Para uns é macho, só se gasta; para outros é fêmea, cresce na carteira, espontâneo, que nem regado.
Há-de haver ali qualquer artimanha, lá isso há. Um comenta que uns são filhos e outros enteados, ao que um colega acentua que os homens são todos iguais, só que uns são mais iguais do que os outros. No entretanto, abocanham raivosos os pães recheados de coisas aparentemente insossas. Raio de sorte. O queijo nem de bola é; é fod, perdão, fundido.
Migalhas amontoam-se no balcão onde a esmagadora maioria abanca, uns quantos de pé, copo de sumo de tomate com cenoura e abóbora, especialidade que ombreia com o de laranja e tangerina. Há um senhor doutor baixinho, de óculos redondos e aros de tartaruga baque lítica que as apanha meticulosa e conscienciosamente.
Pindéricos de pechisbeque
Existe gente para tudo. Os empregados limpam sem entusiasmo as bandejas cromadas e continuam a cochichar. Quem os vira entrar sonhara com lautas ementas, vinhos alentejanos, reserva, gorjetas boas, avultadas. Agora saem-lhes uns pindéricos, nem pedem manteiga nos pães, quem sabe se pensam que custam mais caro, pelintras. Doutores de pechisbeque.
span style="font-size:180%;color:#3333ff;">Olham desmesurada e desorbitadamente o colega refastelado à mesa, toalha branca, de tecido, guardanapo igual, com o logo do estabelecimento num canto. Invejam-no? Odeiam-no. Quando chega o servidor, guardanapo no braço à moda antiga, dos ovos evola-se um cheiro a bem fritos que é um gosto. As batatinhas loiras são um chamariz.
Vai comento pausadamente, mastigando sem pressas, sorriem-lhe os olhos, desde as papilas gustativas. Frade mais rotundo e satisfeito não é nada se comparado com o jurista. Alguém pensa onde está o auro do santo, sacana, só lhe falta mesmo a aureola. Pode ser que a tenha, certo será, mas invisível. O preparo é quase obsceno, pelo menos é um pecado. De gula e não só. Não existirá sacerdote que se preze que o vá absolver, isto para usar língua judiciária.
O homem de leis refastela-se na cadeira, pede palitos, traça a perna que dança por cima do joelho sobreposto. Vocelência quer café e digestivo, certamente. Óbvio. Mas antes, diga-me uma coisa. Os «outros», já de saída, estacam à porta giratória, expectantes. Que mais lhes irá acontecer? Porca de vida madrasta para quase todos, madrinha para os eleitos.
Aquele doce que tem ali na montra do balcão é o quê? Saiba Vocência que é pudim à Abade de Priscos, uma delícia, só de falar nele já me cresce a água na boca. E não assobio porque tenho um dente cariado e faz-me doer. É a mãezinha do patrão, a Dona Olinda que o faz com as mãozinhas dela. Caseiro, absoluta e garantidamente. Só não tem selo porque parecia mal e, alem disso, a CEE era capaz de chatear-se e chatear o senhor Marcolino. E a progenitora, quiçá.
Um espanto
Pois que seja. Para mim tem muita pinta. Avance. Já o solícito se volta em direcção ao balcão, espere aí, mais uma perguntinha. Pois não, faça-a Vocelência que eu lhe responderei se souber e puder, com muito gosto. O pessoal já nem ao ralenti parece. Parou como nos filmes, em contraplongê. Entre a hora judicial e a curiosidade, vê-se quem ganha.
O senhor empregado pode dizer-me se tem meias doses? É o espanto. Do atendedor e dos estáticos advogados e correlativos. Então o doutor, depois de um regalo daqueles, satisfação hasteada na face redonda, barriga farta, colete desabotoado, resigna-se à humílima condição da metade da fatia que se antevê lauta do pudim do Abade? Quem iria imaginar? Maricas. Tragalhadanças.
Não costumamos. Mas se Vocência assim o quer, assim o terá, garanto-lhe. E nem preciso de perguntar ao boss Marcolino. É tiro e queda. Nada, nada, meu amigo, deixe-se de maus pensamentos. O que eu quero é que me traga dose e meia.
O seu a seu dono
NA – A invenção, desta feita, não é minha, lavo daí as mãos, nunca enganei ninguém, sobretudo os que ainda têm paciência e coragem para me lerem. A história foi-me ontem contada, à mesa do almoço, uns picantes da minha Raquel, para filhos e convidados.
Destes, um casal porreiríssimo, se trata. Ou melhor, que me perdoe a Isabel (mas onde raio é que eu a conheci, se foi a primeira vez que nos vimos? Reencarnação?) mas é do amantíssimo esposo, o Miguel, que a coisa surgiu. Passo a explicar.
O Miguel Moura Elias é advogado e colabora com o meu filho Luís Carlos, ele também jurista. Trata principalmente de acidentes de viação, vejam lá para o que lhe havia de dar. Mas, no caso vertente, outra foi a participação dele neste rocambolesco episódio que foi a nossa mudança de casa. Os dois, conhecedores de códigos e regulamentos, levaram a bom termo a ciclópica tarefa – eu já ouvi isto… - e eis-nos em casa nova.
Tinham de vir conhecer o apartamento, pois que o Miguel só o descortinara na planta, em suporte de papel, portanto. E vieram. E abalançaram-se aos calores da cozinha goesa – e gostaram. Pelo menos, assim se confessaram. Foi o doutor Eira que contou a estória, entre reparos sportinguistas, dos seis à mesa só éramos leões cinco, apenas a dona de casa destoava lampionicamente. Prova provada de que ninguém é perfeito.
Por isso, o seu a seu dono. Fico, agora, aguardando que o ilustre causídico se digne colaborar neste blog. Nem precisas de convite, ó Miguel. Foste adoptado, foram adoptados que a Isabel não pode ficar de fora, mais a mais com jornalistas na família, incluindo o pai Goulão. Para casa e para o travessadoferreira. A.F.
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3 comentários:
Enfim, alguém que percebe que o prato principal de uma refeiçao é a SOBREMESA ...
Tem muita piada a história. E você conta-a com muita graça, alem de, como sempre, escrever muitíssimo bem. Os meus parabens, extensivos ao seu amigo Miguel Eira
Estava à espera de ler umas linhas do tal Miguel Eira. Mas não senhor, não ~há nada para ninguém. Claro, o direito ao silêncio é sagrado. Alem disso, estamos no Natal, tal qual.
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