quinta-feira, dezembro 14, 2006





Se calhar…
Antunes Ferreira
Raios ainda riscam o céu negro como um tição. O ribombar dos trovões afasta-se, enquanto as bátegas vão esmorecendo, a caminho de uma pingadeira idiota. Na rua há heróis que se aventuram à tormenta a desfazer-se. Silhuetas difusas, embiocadas em gabardinas ou sobretudos, um que outro guarda-chuva.

Ricardo tudo mira por detrás da vidraça embaciada. Daí a seis dias é Natal. Ainda hoje ao almoço, ouviu o pai a comentar que agora já não era nem nada. Os putos fazem as listas do que querem e discutem preços apontados nas folhas policromas dos folhetos das grandes superfícies. Engenheiro de informática, ele sempre foi um tanto assim. Ricardo só tem dez anos, mas entende. E lembra.

No nosso tempo, as criadas saíam com a miudagem para a rua para que o menino viesse deixar as prendas. Eram os pais, os avós, os tios que se encarregavam de deixar os embrulhos ao pé da árvore, verdadeira. O infante horas antes nascido em Belém não nos dava folga. Bem tentávamos espreitá-lo, mas o gajo era espertalhaço, trocava-nos as voltas. Nos dias que vão correndo, já nem no Pai Natal, ersatz vindo das terras nórdicas há quem acredite.

A mãe espera um irmão para ele, já se comenta lá em casa que era muito giro ele nascer a 24. A ecografia disse que era um rapaz. O pai também comentou que já nem havia o gozo do mistério e da expectativa. É como o Google, disse, sabe-se tudo.

Mas o Ricardo tem uma consolação. No Natal, vêem os primos é a grande galhofa, brincadeira total. Ao desfolhar as ofertas, então, é um festival. Vale tido, minha gente. Rebolam-se de alegria.

E, de repente, dá por si a matutar numa coisa realmente estranha. Não percebe bem porquê, mas o Carlos, o miúdo filho do porteiro, não alinha nessas cenas. Também, há que dizê-lo, a madrasta não lhe dá muita corda. Dá-lhe, sim, porrada, sempre. E, quem sabe, se calhar, ainda que só tenha completado os oito anitos - não tem espírito natalício.

2 comentários:

Anónimo disse...

Vivó Natal, vivó Ano Novo!, vivó Carnaval! vivá Páscoa, vivó Etc.!

Espírito do Natal? Consultar Sociedade Espírita Portuguesa, SEP, vem nas páginas telefónicas.

Ó Sr. Dr. Ferreira: deixe-se de funfuns e gaitinhas natalícias; vá chatiar outra! Viva eu!

Anónimo disse...

A Excelentíssima Senhora Dona Mãe Natal tem carradas de razão. Este senhor doutor é perito em dar um mau fim ao que escreve. É uma no cravo, outra na ferradura. Está na sua e nada mais.

Já o saudoso Carlos Ramos cantava no seu fado "É Noite de Natal" em que um pobre menino dizia a Jesus que a melhor prenda que lhe podia dar era devolver-lhe a mãezinha dele que o Senhor lá tinha no Paraíso.

Choradinho por choradinho, prefiro o do grande fadista. Pelo menos não é infeliz e maldoso e o Dr. A.F. é.

Ainda assim, um Natal muito feliz em paz e família é o que eu desejo.