sábado, dezembro 30, 2006



O FZ especial “Turra”

José Augusto Sacadura
Foi por esta altura... Foi entre o Natal e a passagem do ano, nos finais de 1968, e todas as unidades militares estacionadas em África encontravam-se em prevenção especial, tal como nas Instalações Navais da Ilha do Cabo – as INIC – em Luanda, onde eu prestava serviço militar como 2.º Tenente da Reserva Naval. Para além do oficial de dia, havia dois outros oficiais a assegurar os turnos da noite e coubera-me a mim o segundo “quarto” (das 4 às 8 da manha), substituindo o 1º Tenente J. a quem fora destinado o primeiro turno da noite.

Às três da manha acordei com o despertador, lavei-me, vesti a farda, coloquei o cinturão com a pistola – obrigatória em situações de prevenção como aquela – e saí para a Base com a qual a Messe comunicava directamente. Da Messe ao portão de entrada da Base onde ficavam as instalações do oficial de dia eram menos de dez minutos a pé e assim apresentei-me para receber o serviço cerca de um quarto de hora antes das quatro.

O Tenente J. disse-me então, estranhamente sorridente, que me deixava um berbicacho dos diabos .... E explicou-me: cerca de duas ou três horas antes o Sargento de serviço viera dizer-lhe que um fuzileiro, recém-chegado do Leste, bêbado ou fora de si, não queria esperar pela hora normal de abertura do portão (o que, em períodos de prevenção especial apenas acontecia de meia em meia hora) e estava a bater furiosamente às grades de entrada.

Tratava-se do Cabo FZ especial de alcunha “O Turra”, ganha em anteriores comissões de serviço designadamente na Guiné onde ficara conhecido como o “Terror dos Turras”. Na lenda da guerra atribuíam-se-lhe, não sei se com verdade, gestos de grande coragem a par de actos desmedidos de autêntica crueldade. Era conhecido como um típico profissional da guerra: tão experiente e destemido quanto desapiedado e excessivo.



Tendo concluído recentemente uma comissão na Guiné, oferecera-se como voluntário para Angola. Colocado no Leste, passara por situações de grande risco e enorme desgaste psicológico, pelo que, “cacimbado”, tinha sido evacuado para Luanda para tratamento no Hospital Militar. Chegara nesse próprio dia e estivera a “celebrar” com amigos o regresso à cidade.

Emboscadas e prisão

Aberto o portão, o Tenente J. chamou-o e, apesar do estado em que ele se encontrava, conversaram ainda durante alguns minutos até que o oficial lhe ordenou que se fosse deitar. Só que, em vez disso, o “Turra” deve ter achado que a Base se tinha transformado num campo de operações, pelo que desatou a fazer emboscadas sucessivas, aparecendo e desaparecendo entre a vegetação que ladeava o acesso ao interior das INIC, ora se afastando, ora voltando a aproximar-se da entrada.

O oficial chamou-o então e ordenou-lhe que se retirasse de vez para a caserna, ameaçando-o com a prisão se não obedecesse imediatamente. Ora, o Tenente J. era um homem inteligente, culto, bom conversador, na boa tradição da Marinha, com imenso sentido do humor, mas com alguns traços de um espírito militarista, muito especialmente no que à disciplina dizia respeito.

Assim, quando voltou a ver o “Turra” emboscado em frente do seu Gabinete, não se conteve, chamou o Sargento de turno e ordenou-lhe que, com duas praças, desse voz de prisão ao fuzileiro. Cumprindo a ordem, ladearam o “Turra” e levaram-no para o que, na Base, à falta de outra coisa, se qualificava pomposamente como “prisão” – um quarto sem quaisquer condições de segurança, a porta de acesso com uma fechadura rudimentar e, lá dentro, a armação despida de um beliche metálico.

Lá chegados, o “Turra”, que parecia já relativamente calmo, terá pedido que não o fechassem à chave. Todavia, o Sargento entendeu cumprir à letra a ordem recebida, fechou mesmo a porta à chave e deixou as duas praças a fazer a segurança à porta da prisão. Acto contínuo, toda a Base ouvia os berros do “Turra” que, fora de si, gritava: “O Salazar não tem culpa” e “Estes filhos da puta vão mas é acabar todos mortos”!!!

Contactado pelo Tenente J., disposto a medidas drásticas para acabar com o “festival”, um dos médicos de serviço ao Hospital Militar prescreveu um calmante forte, em dose dupla, a injectar ao preso. Tarefa árdua que mobilizou quatros homens só para o segurarem, além do enfermeiro que comentou que “nem um cavalo ia continuar acordado depois de levar uma dose daquelas”. E, na verdade, durante alguns minutos, houve paz ...


Onde está o filho da puta?

Mas as tréguas foram de curta duração. Dali a pouco, e se possível ainda com maior intensidade, recomeçaram a ouvir-se os berros e as ameaças do detido. Foi com esse som de fundo que o Tenente J. me passou o serviço, desejando-me “as melhores felicidades”... (!?)


Quase de imediato, o sargento de serviço veio dizer-me que o “Turra”, depois de arrombada a porta, lograra fugir da prisão, dera dois empurrões nos marinheiros postados à entrada, fora à caserna buscar a sua G3 e dirigia-se armado a caminho do meu gabinete. Fiquei à espera do evoluir dos acontecimentos ... e não esperei muito.

Mal me sentara à secretária, vejo o “Turra” aparecer à janela, sem vidro, dispondo apenas de rede-mosquiteiro, que ficava metro e meio à minha direita. Só nessa altura o conheci. Vinha de tronco nu com a G3 pendente. Não era alto, mas era muito musculado, peito tisnado pelo Sol e uma farta barba preta que contava largos meses de campanha. O todo era manifestamente agressivo, o olhar frio e determinado. Os fumos do álcool pareciam ter desaparecido.

Olhou-me, atónito, e perguntou: “Onde está o filho da puta do oficial de dia?” Respondi-lhe que o oficial de dia estava a dormir no quarto ao lado e, percebendo a razão da sua perplexidade, disse-lhe que o ia chamar. Fui, por isso, acordar o Engenheiro T., que dormia o sono dos justos. Levantou-se estremunhado, vestiu, sobre as cuecas, a camisa com os galões de Capitão-tenente maquinista naval, enquanto, num minuto, eu tentava explicar-lhe o essencial da situação.

Voltei ao gabinete, seguido pelo Eng.º T., oficial, já então, com o cabelo todo branco. A estupefacção do fuzileiro aumentou. Tinha na sua frente dois oficiais bem diferentes daquele que lhe dera voz de prisão. Encarando-me, perguntou novamente: “Onde está o filho da puta do oficial de dia que me mandou prender?” Respondi-lhe que o oficial de dia era o Comandante Tomás e que eu estava a fazer o meu turno de serviço.

O fuzileiro ainda proferiu mais duas ou três ameaças, mas, visivelmente, a convicção e a fúria interior iam diminuindo. Disse-lhe então, pausadamente, que não fizesse mais disparates e que me entregasse a arma. Vendo-o hesitar, dirigi-me para a porta, abri-a, saí e encontrei-me com ele, de G3 sempre pendente, à esquina do gabinete. Ainda hesitou um pouco, murmurou algo que não entendi e, muito lentamente, levantou a arma e entregou-ma. Verifiquei depois que tinha uma munição na câmara.

Recolheu à cadeia militar na cidade, onde ficou sob prisão. No dia seguinte, questionado por um fuzileiro amigo, que lhe perguntou o que teria feito se tivesse dado de caras com o oficial que o mandara prender, ainda respondeu: “Enfiava-lhe uma rajada entre os cornos”! Redigindo a ocorrência no Livro do Oficial de Dia, reflecti, fazendo o balanço do ano que findava, que o tempo não passa nunca sem deixar rasto. Desse ano ficara-me pelo menos uma hora de sorte e uma história para contar.

O “Turra” foi evacuado para a Metrópole e nunca mais soube o que foi feito dele.

3 comentários:

Anónimo disse...

Sim senhores. O Senhor Sacadura é um tipo catita e sabe escrever. Ainda bem que também entra neste excelentíssimo blogue do Senhor Antunes Ferreira. Parabens aos dois. Feliz Ano Novo!

Anónimo disse...

Ó carissimus Rikus e querias tu fechar a loja ... e privar-nos destes escritos.
BOM ANO para todos

Anónimo disse...

Para começar bem o ano novo, as minhas felicitações, o meu apreço e o meu muito obrigado ao Sr. J.A. Sacadura