quarta-feira, abril 05, 2006

Panem et Circenses


Nos tempos da Velha Senhora, havia umas quantas asserções que os marcaram, para além de caracterizarem as fontes de onde provinham. Desde a minha política é o trabalho até ao boato é crime e fere como uma lâmina, eram uma caterva delas. Porém, para o autor, a melhor de todas era quem não é do Benfica, não é bom chefe de família. Politicamente correcta para a época, ela simbolizava bem o que o criminoso salazarismo pensava para os lusos: democracia – não, que eles não estavam preparados para ela; futebol – sim, pois enquanto entretinha os cidadãos, estes não pensavam (muito) na Liberdade que não tinham.
Nesse sentido, as duas vitórias dos encarnados na Taça dos Campeões Europeus foram cerejas gigantes no cimo de bolos enfezados de miséria. E o Eusébio, vindo do portuguesíssimo Moçambique, foi transformado no novo herói nacional, a par da Amália e da Senhora de Fátima. Era, recorda-se, o tempo da trilogia dos FFF: Fátima, Futebol e Fado. Então, «a felicidade garantida pelo Santuário» era suficiente, os filmes do António Lopes Ribeiro eram peras doces, o vinho dava de comer a um milhão de portugueses.
A casa portuguesa tinha como cortinas o luar mais o sol que batia nela; bastava um pouco, poucochinho pr’alegrar uma existência singela; não faltavam duas rosas no jardim e o caldo verde verdinho era a melhor vitamina para o povo. E se havia dois braços à espera dum honrado trabalhador, findas as nove horas de um dia de trabalho sem semana-inglesa, ainda se conseguia consumir o fiel amigo de quando em vez. Bendita bem-aventurança.
Hoje, as diferenças são abissais. Exceptuado no futebol. De ópio do povo, passou a realização portuga. São os êxitos internacionais do FCP, o quase sucesso da selecção nacional do senhor Scolari, com as bandeiras por tudo o que era sítio, a tangente do Sporting à Taça das Taças, no Alvalade Século XXI e assim.
Pasme-se: a Federação Portuguesa do Chuto na Canela veio, agora, a público verberar um anúncio televisivo da Galp porque ele é demasiado optimista quanto ao Mundial na Alemanha, que se aproxima a largos passos. Nada de euforias dizem os senhores capitaneados por Madaíl. O seleccionado lusitano vai bater-se que nem um leão – para o meio da tabela. Isto porque, na hipótese quase impossível (para eles) de chegar à final, lá estará o fantasma grego, com correntes e tudo.
Enquanto mais este episódio caricato se verifica, há razões para se especular. São os vermelhos no Nou Camp, na quarta-feira; é o clássico entre leões e dragões no sábado; é a luta cerradíssima – quer pelo título, quer pela sobrevivência - numa Liga que já foi Super e hoje nem se sabe o que é. Que os senhores das apostas na internet me perdoem. Sobre a firma deles é dificílimo de saber o que é; ainda não há decisão definitiva dos juristas a propósito do famigerado patrocínio; e a sua denominação cheira mais a pomada para as entorses do que a apostas desportivas.
Não haja dúvidas. O velho football é quase exactamente o que é o futebol hodierno. Com umas quantas alterações, mas no essencial sem grandes revoluções. As equipas continuam a ter onze jogadores em campo, sendo que um deles é o guarda-redes. Os árbitros ainda vivem em grupos de três elementos. Antes eram os fiscais-de-linha ou bandeirinhas. No tempo actual são juízes auxiliares. Os clássicos massagistas transmudaram-se em fisioterapeutas. Mas, bem vistas as coisas, são todos os mesmos.
Este mundo futeboleiro parece menos turbulento do que o político? Nada disso, Senhoras e Senhores, nada disso. Um está para o outro como a hipotenusa está para os catetos. E nem é preciso que estes últimos sejam ao quadrado, pois quadrados andamos todos nós. Com o estranho e caracoliticamente lento Apito Dourado. Com as arbitragens correctas e imparciais que por aí abundam. Com os excelentíssimos dirigentes que enganam quotidianamente quem os elegeu. Com os parasitas que volteiam em redor do esterco futebolístico.
Os negreiros, ora chamados agentes FIFA, UEFA ou quejandos, já nem precisam de chicote para levar os seus «representados» para as galés. Há tanta gente a esmifrar umas massas à pala do desporto-rei (sem coroa???...) que aquilo que hoje é uma das indústrias mais rentáveis do Mundo precisaria, para se endireitar, da tal alavanca que pudesse mudar a posição do orbe terráqueo.
Já nos finais do Império Romano, o maior poeta satírico de então, Juvenal, foi o autor daquilo de que o povo precisava para viver tranquilo: Panem et Circenses, ou seja, pão e circo. O futebol dá pão a bastante gente; quanto a circo – estamos conversados.

Antunes Ferreira

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