quinta-feira, abril 27, 2006

Consultar o veterinário


Antunes Ferreira
Aquele homem que, durante o dia todo, é activo como uma abelha, forte como um touro, trabalha que nem um cavalo e que ao fim da tarde se sente cansado que nem um cão... deverá consultar um... veterinário. É muito provável que seja um ganda burro.

Já não sei onde li isto, vão uns anos. Creio que na revista brasileira semanal O Cruzeiro, mais precisamente nas páginas Pif-Paf, assinadas pelo grande Vão Gogo. Aliás o meu Amigo Millôr Fernandes – Millôr Viola Fernandes, de seu nome completo – um dos maiores humoristas do País Irmão, é capaz disso e de muito mais.

Agora, foi o Norberto que me trouxe a frase lapidar. De recordação em recordação, venho despejar-me na actualidade. Por vezes é-nos difícil saber porque sim e porque não. As coisas ocorrem e enquanto decorrem a pergunta sente-se no ar: porquê? Não se sabe muito bem, nem muito mal. O Cruzeiro não foi, de nascimento, original. Tratou-se de parto duplo, diferido no tempo.

Na verdade, a revista Cruzeiro, ainda sem o O inicial começou na primeira década do século XX. Teve o seu sucesso, mas, o tempo inexorável fê-lo cair até atingir a irrisória tiragem de 13.807 exemplares em 1928. Em Novembro desse mesmo ano, Assis Chateaubriand adquire o título. Chatô, como já então era conhecido, comprara a sua primeira publicação, o matutino O Jornal, quatro anos antes.

O futuro magnata tinha então 32 anos. O periódico será o primeiro de um império que chega a ter 40 jornais e revistas, 36 estações de rádio, 16 emissoras de TV, uma agência de notícias e uma empresa de publicidade, então chamada propaganda, formando o império jornalístico conhecido como os Diários Associados.

Mal acaba de comprar a revista que passará a intitular-se O Cruzeiro, Chateaubriand apresenta ao então ministro da Fazenda, Getúlio Vargas, o projecto de uma revista com papel de qualidade superior, muitas fotos, intelectuais do melhor nível, assinatura de todos os serviços estrangeiros de fotografias e notícias, a ser rodada a quatro cores em rotogravura. Com tiragem semanal inicial de 50 mil exemplares (nos anos vinte o máximo chegara aos 27 mil), circularia em todas as capitais e grandes cidades do país. Isso serve como uma luva para os planos políticos futuros de Getúlio que, mais tarde chegará a Presidente do Brasil.

Era uma outra época, senhores, muito outra. Em que não havia computadores nem se temia a SIDA. Em que aos restos da Grande Guerra se começavam a juntar os ameaços da II Mundial. O nazismo despontava. Benito Mussolini ainda não encontrara Clara Petacci; mas Hitler já rascunhava o Mein Kampf. Franco, o general de Pacotilha, anão e barrigudo, estagiava sobre milhares de mortos para Caudilho.

Ninguém conseguiria imaginar, sequer, a Internet, o mail e os endereços informáticos. A propósito, contou-me a Sandra Barrosa, jurista e minha querida colega de trabalho, que tem uma senhora conhecida, já de certa idade, que, muito pouco acostumada com as linguagens cibernéticas escreveu a uma amiga que o seu endereço era guilherminav alfarroba jimeile. Come.

Si non e vero, e bene trovato. O ridículo é só comparável ao do ajudante de camionista de empresa de mudanças que, referindo-se a uma velha casa de onde ajudara a retirar o recheio para ser levado a nova habitação, «ali era tudo ilustres e patifarias». O que o homem, na sua santa inocência e no seu analfabetismo congénito era que «ali era tudo lustres e pratarias»...

Eu bem avisei. Para quê e porquê? Esta prosa insípida e revivalista veio a propósito de nada. Que, quer se queira, quer não, não é propósito que se veja, nem nada. Não quero, no entanto, deixar de registar aqui – e ainda reportando-me a O Cruzeiro – os nomes de António Accioly Neto, durante décadas seu director e os dois da vida airada, David Nasser ao teclado da Underwood e Jean Manzon à objectiva da Rolleiflex. Os maiores criadores de reportagens sensacionais – e mentirosas, porque inventadas.

Feche-se o escrito. Já deu, de resto, o que tinha a dar. Mas, sem que antes volte à asserção com que ele, pobrezito, começou. Um destes dias também o copista tem de ir consultar o veterinário. Desta feita, por ser um grande camelo.

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