domingo, setembro 30, 2007



A Energie do Sol

Antunes Ferreira
A
notícia vem em toda a Comunicação Social, a começar logo pela Lusa. A Póvoa do Varzim assistiu à inauguração daquela que será a maior fábrica de painéis solares do Mundo. É a Energie, empresa de capitais portugueses, que investirá cerca de três milhões de euros naquela instalação industrial. Cerca de 40 por cento da produção é para exportação. «Já não estávamos a conseguir responder à crescente procura, nomeadamente estrangeira, que tínhamos e só não estávamos a exportar mais por incapacidade de espaço», afirmou à agência noticiosa nacional Luís Rocha, o presidente da empresa familiar.

Boa! Sempre que o queremos, nós, os Portugueses somos tão bons como os outros. Por vezes, até melhores. Daí que aqui registe o acontecimento. A tão falada «crise», que ainda subsiste, vai, pouco a pouco, dando sinais de que está a desaparecer. Gostaríamos todos que fosse mais depressa. Mas, diz o Povo, Roma e Pavia não se fizeram num dia.

Transcrevo o essencial da notícia vinda a público. A primeira fase do projecto abrange uma área de 3.000 metros quadrados e um investimento na ordem dos três milhões de euros, prevendo-se que, para o ano, a nave industrial aumente para o dobro. A expansão da Energie começou a ser pensada em 2004 em virtude das inúmeras solicitação que chegavam à empresa. Em 2006 a primeira fase da construção da nova unidade, situada na Zona Industrial da Póvoa de Varzim, arrancou, com um investimento total de dois milhões de euros, com capitais próprios da empresa.



Deste modo, a dimensão das instalações triplicou, passando a ter, actualmente, uma área de três mil metros quadrados, com capacidade de produzir 12 mil painéis por ano para captação e aproveitamento da energia solar. O próprio aquecimento do edifício fabril é aquecido por 40 painéis solares naturalmente Energie.

Actualmente, a empresa canaliza para o mercado português 60 por cento da sua produção, exportando os restantes 40 por cento para países como a Espanha, França, Inglaterra, Bélgica, Irlanda, Luxemburgo e Estados Unidos. O México também se perfila para entrar nesta lista, que deverá receber novos países à medida do crescimento dela.

Aqui fica o registo, sem necessidade de mais comentários. Na frente da energia solar fica, assim, a portuguesa Energie. Só há que congratular-se e felicitar Luís Rocha e os seus.

sexta-feira, setembro 28, 2007

SOMBRA DA GUERRA


Voltar atrás…

Antunes Ferreira
C
avalga uma zebra às riscas brancas e pretas, aos solavancos, e no meio de um verdadeiro pandemónio. À sua volta cruzam-se elefantes, bisontes, girafas, leões e até corvos, montados por seres extra qualquer coisa que berram, impenitentes. Não se trata de um sonho – se o fosse deveria ser um pesadelo – mas também não sabe muito bem o que é. A noite desceu de repente, o poente, lindo, foi-se de apagão.

De repente, o tormento pára. E pára o zumbido tonitruante. Mais uma voltinha, meus senhores e minhas senhoras, só mais uma voltinha. Damas com cavalheiros (no caso deveriam ser cavaleiros, não fosse a má interpretação que poderia ser dada ao trocadilho brejeiro) só pagam meio bilhete. É mais uma voooooltiiiiinhaaaaa! Dá-se conta de que a Punta del Pazo está, como sempre, profusamente iluminada e os clientes, também como sempre, discutem as últimas do campeonato nacional.

Poderia ser a política o tema principal, mas não é. Está visto. É impossível. Um fabiano vai dentro se se meter nela. Aqui, em Luanda, em Lisboa, em Lourenço Marques ou no cu-de-judas. Há um provérbio sírio, muitíssimo mais velho do que as Cruzadas, mas que nesse estranho e longo período histórico era muito citado. Representa, na enorme sabedoria da civilização muçulmana, uma extraordinária maneira de dizer, contrária à nossa expressão – se não os puderes vencer, junta-te a eles.

Repetia-se nas vésperas de 1100, obviamente DC, quando os seguidores do Profeta se deparavam com os bandos de Franjs – assim chamavam os locais aos invasores brancos e de cabelos e barbas loiras, maioritariamente Francos. Face ao destemor, violência extrema e à valentia e crueldade desses inimigos do Islão, bem como à sua superioridade em trajes de guerra e armamento, não era possível dar-lhes grande combate.

O dito, sagaz, era: «O braço que não puderes partir, abraça-o e ora a Deus para que Ele o parta». Querem melhor, perguntava ele, Emanuel Crispim da Silva, natural da freguesia de São Sebastião da Pedreira, concelho de Lisboa, tal como constava do BI. Ao que acrescentava – mas não nascido na Alfredo da Costa. Em casa, na cama materna, assistida no parte pela menina Ermelinda, aparadeira de vão de escada, partos & desmanchos, SARL.

Vão perguntar de onde lhe vêm essas sapiências, a ele, segundo cabo amanuense, carteiro na vida civil e furioso do Atlético, não tivesse ido morar para Alcântara, ali ao Largo das Fontaínhas, quase pegado à refinaria a que os catraios chamavam a fábrica do açúcar. Mais uma coisa a reter: toda a malta era do Benfica, do Sporting, muitos do Porto, alguns da Académica, uns quantos do Belenenses e bastantes da CUF, para não falar já no Barreirense. Mas do Atlético?...

O vício da História

Pois muito bem. Crispim andara na Escola N.º 84, ao cimo da rua dos Lusíadas e tivera com professora a Dona Matilde da Purificação, viuvíssima de fel e vinagre, chata como a potassa, mas que ensinava como ninguém. Gramática, redacções, ditados, fracções, geografia e, sobretudo, história. O sobretudo era para ele, e não se tratava da peça de vestir invernal, que nem sequer tinha.

A virago injectara-lhe no sangue uma transfusão histórica e o Emanuel – não confundir com Manuel, leva um E no princípio do nome – dera em ler tudo sobre a disciplina, está bem de ver tudo o que lhe viesse parar às mãos sobre feitos e efeitos destes, não só da História de Portugal, mas igualmente de outros povos. E o seu tio Dionisio, professor primário em Marvão foi-lhe dando os seus livros, para que os lesse e os guardasse.

Uma biblioteca interessante, a do tio Dionisio. As obras completas do Júlio Verne, uma edição da Bertrand, do Emílio Salgari, desde o Sandokan até aos Corsários de variadas cores, o «John, o chauffeur russo», do Max du Vezit, os livros do Campos Monteiro e, sobretudo, umas quantas coisas de História, desde o Herculano até ao Mattoso. Entre estas, descobrira uma preciosidade: as crónicas de Ibn al-Qalanissi, um historiador de Damasco, a primeira das quais datada de 1099, altura da primeira Cruzada.


Vertidas para Português por um tal Fernão de Souza, corria o ano de 1623, o tio professor tinha-as em velho alfarrábio dos finais do século XVIII, publicado no Porto. Relatavam as Cruzadas vistas do lado dos Árabes. Coisa fina, a princípio difícil de ler para o Emanuel, mas, decorridos uns meses, já perfeitamente por ele inteligíveis. Tornara-se num verdadeiro livro de cabeceira, forrado a papel grosso pelo leitor empedernido em que o Crispim se tornara.

É estranho. Embrulhado na noite quente de Luanda, no terreno vago em frente ao Punta, do outro lado dos combatentes, onde assentam arraiais circos diversos, com os palhaços Botil & Pipoff e o Quinito, os trapezistas voadores Irmãos Gentili, os ilusionistas Dom Carlo e Gino Francescotti, os domadores Karl Schmidt e Tarzan Jones - o cabo Crispim envolve-se agora no carrossel dos irmãos Simões.

Que, além disso, têm ao lado o famoso Poço da Morte, onde o mano Francisco atinge «velocidades espampanantes» em redor das paredes cilíndricas do seu interior, montado na sua moto Leopard. Assim brada, de microfone em punho, o Martins das Ingombotas, apresentador oficial do «estrondoso sucesso», enquanto na barraquinha das bilheteiras o Jaquim Quizombo vai vendendo os ingressos.

O carrossel é um espectáculo de três em pipa. Entrem, senhoras, senhores, meninos e meninas, brancos, pretos e mulatos, tomem os vossos lugares que vamos dar início a mais uma corridaaaaaaaaaaaaaaaaa! Emanuel conhece o dono do divertimento, o Chico Perdiz, nado e criado em Tortosendo, mas levado até às últimas por Angola inteira com os seus jogos e os espectáculos de tudo o que seja visível.

Há que dizer que, para alem da História, o nosso segundo cabo é um aficionado ao mais alto grau de circos e correlativos. Já na Metrópole assim era, aqui reincide prazenteiramente. Mais nestas bandas, quiçá, como refúgio - ainda que transitório – das bolandas da guerra na mata, na chana, nas picadas. Quando saiu pela primeira vez numa coluna, o tal MVL, ao Quitexe, para servir de escrivão num auto de copo de litro, gozo com o auto de corpo de delito, ao voltar, ainda assustado, foi aos Combatentes aliviar-se. E não é que deu certo?


Cuecas castanhas

Regressa ao presente. Nada. Não. Tem de recordar o que lhe surgiu na cabeça durante a safada da coluna. Logo a caminho do Quibaxe, toma lá, uma flagelação com morteiros. Saltar da camioneta, alapar na berma, encolher-se em posição fetal ou quase, para tentar escapar à morteirada. Tiros dos de cá, tiros dos de lá, os gajos nem se deixam ver, só o silvar das balas mete um susto medonho.

No QG, o sorja Benevides tinha-lhe dito para levar cuecas castanhas. Na sua santa ingenuidade e desconhecimento das graçolas soltara um porquê subliminar. Risota geral. Quando te borrares de medo, já não se nota no castanho. O pior é o cheiro. O pessoal quase rebenta de tamanhos risos. Galhofa total. A juntar-se a uma tremedeira incipiente, veio a vergonhaça. Esperem-lhe pela pancada, resmoneou.

Mas os slipes cor-de-merda, ainda que não tivessem sido emporcalhados por qualquer descarga psico-intestinal, bem podiam ter tido a sua utilidade quando, no dia seguinte e depois de uma noite tormentosa, em plena picada de terra solta e seca, um estrondo se fez ouvir na frente da bicha de camiões. Enorme, acompanhado de nuvem de fumo a corresponder.

Mina! Mais disparos – dos nossos, principalmente, e diga-se, em abono da verdade, um tanto ao calhas – mais confusão, mais gritos, mais ordens desencontradas. Porra, se isto começava assim, o que seria o resto? O enxame de camuflado começou a voltar à colmeia, ainda que sem rainha. Os graúdos, deu-se a congeminar, ficavam sempre na ZIAC – a Zona de Intervenção no Ar Condicionado. Daí.

Foi-se a ver, a rebenta-minas improvisada numa Berliet carregada de blocos de betão e sacos de areia e o fundo por cima do eixo coberto de placas metálicas, o que tornava a viatura muito pesada, fizera realmente detonar um engenho criminoso. Nada de muito grave. Umas amolgadelas no camião, e umas esfoladelas nos dois militares que seguiam ao lado do condutor. Este – nem uma beliscadura. Porreiro.

Antes do diabo esfregar um olho, nova paragem de supetão, mais metralha, mais alarme total. Pela primeira vez Emanuel Crispim ouviu a troca de mimos entre os nossos e os turras. Vai na tua terra, portuga de merda, beijar o cu do Salazar, cruzando-se com venham cá a baixo, seus paneleiros, para nós os enrabarmos a sangue frio. E com muitos que te pariu e montes de coisas das mães de cada um, parecia um teatro de fantoches de feira.

Não era – mas era. Que mais seriam do que marionetas os tipos de um lado e do outro? Quem puxaria os respectivos cordéis? Só que os dons robertos de tenda de pano não morriam, nem matavam. Estes bonifrates, sim. Estes procuravam o sangue dos inimigos, de um lado e do outro, movidos sabe-se lá porque manivela.

Os que atacavam, faziam-no pela independência que tentavam conquistar; os que se defendiam atrás das viaturas, defendiam alguma coisa, também, para se sujeitarem a tais galopes. Os governantes regougavam que era em nome do Portugal uno e indivisível, do humanismo e da fé. Vá lá saber-se quem estava do lado da razão. Quem sabe se os primeiros?... E os lobos cerebrais continuavam a contorcer-se. Não haveria outra solução para esta cagada em três actos?

Outra solução

No meio de uma refrega enlouquecida e kafkiana, ocorreu-lhe de novo o islamita. «Os nossos e os vossos estão a morrer, o país enche-se de ruínas e a situação escapou-nos completamente a todos. Não achas que já basta?» contava o cronista que dissera Ricardo Coração de Leão a al-Adel, vali de Saladino, quando tentavam um entendimento pacífico para as carnificinas em nome da cruz ou do crescente.

Raio de altura para pensamentos históricos, mas, boa ou má, o certo é que assim congeminara. E continuava a remoer aquando da chegada ao Quitexe. Terra em que os sinais do ataque criminoso da UPA em 61, os branco é galinha, os amuleto nos livra das bala, e essas terríveis consequências dos canhangulos e das catanas - mulheres esventradas depois de violadas ao lado dos filhos decepados, à mistura com as cabeças dos bailundos «fieis», por mais que pinceladas a cal, continuavam presentes.

A guarnição – entre militares e civis - que defendia a povoação tinha os seus quês e os seus porquês. Nada mais justificado para quem se via em tal situação. No bar taberna «Os Cornos da Palanca» em cujas paredes se viam perfeitamente os buracos das balas, toscamente rebocados a cimento cinzento, remendos impassíveis, mas também impossíveis porque sem remédio, os homens discutiam enquanto engoliam Cucas ou Nocais tiradas do frigorífico a petróleo.

Era gente que, nesses dias lixados, se refugiara em Luanda para escapar da chacina. E que, logo que puderam, tinham voltado a casa, à sua casa, seres humanos que nem tendo nascido ali, mas antes bem longe, no Puto, tinham construído as respectivas vidas por tais paragens, de alguma forma inóspitas, mas proporcionadoras de bens e fazendas que, para uns quantos redundaram em fortunas.

Tudo contado – tudo perdido, ou quase. Emanuel admirou-os, ao mesmo tempo que os considerava uns «gandas doidos». Depois da avalanche de terror que tinham sofrido e vivido, a que, no entanto, tinham sobrevivido, era de gajos com tomates ali voltar, em busca do tempo perdido e das massas igualmente malbaratadas. Gente assim era difícil de encontrar. Mas, pelos vistos, havia-a.

Volta a cabeça aos Combatentes. Do outro lado da Avenida ergue-se a massa hercúlea do prédio de cujas lojas faz parte o café, cervejaria e restaurante, normalmente conhecido apenas pelo Punta. Ao seu lado, uma vidraria, cuja dona é a Marabunta, mulher que desembarcara em Lua com a finalidade de exercer a mais velha profissão do Mundo e, graças a ela e a outras manigâncias, enriquecera. Agora, chama-lhe senhora.

É um mastodonte de betão e outros materiais desde o tijolo até às madeiras que conquistou o seu espaço próprio na avenida, principalmente depois do cruzamento com a D. João II. Mais dois ou três prédios adiante, começa a estender-se um pré-muceque, com o seu casario de adobe e cubatas de pau-a-pique. Morre por lá o asfalto, entra-se no reino da terra batida, barrenta e avermelhada.

Lavar as vistas

Um camarada, também desarranchado, vive numa paralela, antes da Paiva Couceiro, alugou um quarto e também frequenta o Punta. Estuda à noite, para fazer o quinto ano liceal no Colégio Viriato, vizinho de paredes-meias. Há noites em que o Fogaça, Armindo Nunes dos Santos Fogaça, de seu nome completo, fica em casa para lavar os vistas. Com a vista que de lá tem. Crispim sabe a estória de fio a pavio.

No primeiro andar do monstro residencial – do outro lado da avenida há mais iguais ou quase, um deles chamado o Muceque Militar porque nele vivem só tropas e suas famílias – moram três jovens, empregadas nos Grandes Armazéns da Baixa, os Quintas & Irmãos, a que o povo chama de chacota, Quintas & Ladrãos, à Rua Direita. Singularmente, uma branca, outra preta cafusa e outra mulata: a Rosinha, a Matildinha e a Luisinha.

O Fogaça instalou, espanto, na sua janela um pequeno telescópio que o maricas do observatório da Mulemba lhe emprestou para poder ver as estrelas, como ele lhe dissera. Mal sabia o astrónomo amador e invertido, que as estrelas do Fogaça usavam sabonete Lux. E faziam grandes farras em casa, naturalmente à noite, pois de dia trabucavam nos balcões do estabelecimento.

Geralmente, têm parceiros entusiastas. Mas quando eles não estão, brincam as três, uma com as outras, outra com as umas, trocando entre elas posições e carícias. Nuínhas, claro, descascadinhas, mamilos e púbis ao leu, tudo, por cima dos divãs de casal que todas têm numa grande sala comum, pois o apartamento só tem mais cozinha e cada de banho. Mas também no chão, coberto com um espesso tapete a fingir de oriental, aos arabescos.

Parece, até, que é mais atractivo quando estão sozinhas na cena debruada pela janela aberto. Tem graça, pensa o Fogaça, se fossem três machos ninguém viria para os espreitar, a não ser que convidasse uns quantos mais pra lá do que pra cá. Nunca o faria, nunca teria instalado a luneta, nunca. Mas, tratando-se de fufas era um montão de candidatos à espreitadela. E ainda dizem que somos todos iguais. Pois.

É tal o espectáculo que o Armindo cobra aos amigos e camaradas que vão ao seu quarto para encostarem o olho ao óculo. É ele que faz a focagem, cuidadosamente, que a bilheteira é cara. Cuidado: não se podem alambazar, muito menos praticar actos menos aconselháveis. «Punhetas são proibidas» diz a negro, traço grosso, um papel A4 branco colado na parede, à guisa de cartaz. Por baixo, mão malandra acrescentou ao impresso manuscrito insidioso: o resto também…

São assim, as noites dos Combatentes, com carrossel, circo ou quejandos, barraquinhas de cacusso seco frito, moamba de galinha-do-mato, feijão de óleo de palma, ou saca-folha de Cabinda. Ginguba, muita, com casca e sem, com sal e, ou gindungo, maçaroca de milho tenro cozida, caju do Golungo e até calulu de São Tomé. Com cerveja, vinho de capacete e uns brandes na moda, principalmente aquele cuja fama já vem de longe.

Crispim vai regressando ao quarto que alugou nas Ingombotas, em prédio a que a gajada chama quilombo, local de reunião de escravos, no Brasil. Não se apressa, que a noite está quente, mais a mais a Lua espreita, metediça, sem nuvens a ensombrá-la. E vai pensando naqueles gajos do Quitexe, em busca deles próprios, tentando denodada e decididamente recuperar um passado que eles quiçá saibam que – já passou.


De uma porta semiaberta sai a voz radiofundida do António Mourão cantando Ó tempo volta pra trás que é um êxito estrondoso. Nunca a dupla Manuel Paião e Eduardo Damas produziu um tal sucesso. «Mata as minhas esp’ranças vãs; vê que até o próprio sol, volta todas as manhãs…». Para a maior parte dos mânfios do Quitexe, o Mourão e o Paião e o Damas enganaram-se. No que respeita ao tempo, está bem de ver.

quarta-feira, setembro 26, 2007



Morreu o Magalhães Mota

Antunes Ferreira
M
orreu hoje o Magalhães Mota. Homem bom, conheci-o quando eu era um catraio e ele um quase homem. Tínhamos seis anos de diferença – era de 35 – e nessas idades era quase um século… Foi em Santarém, mais precisamente no Vale de Santarém, que pela primeira vez nos encontrámos e começámos aí uma Amizade que perdurou pelo tempo fora. Isto porque, ele era natural da cidade escalabitana e o meu Pai era do Cartaxo, ribatejano também, e a família tinha casa no Vale.

Estávamos a passar férias por aquelas bandas. Eu iria nos meus quinze anos espiga dotes. Logo, ele tinha 21. Apesar da «abissal» distância que nos separava, rapidamente nos entendemos. Já estava quase advogado, cursara a Faculdade de Direito da Clássica e terá sido um dos que me levaram a entrar para aquela escola. Passo pouco frutífero, diga-se.

Quando entrou na então Assembleia Nacional, já então apontado como integrante da chamada Ala Liberal (grupo de que constavam também Sá Carneiro, Pinto Balsemão e, depois, Mota Amaral) tive a grata oportunidade de o felicitar pelas suas intervenções no hemiciclo. Almoçávamos no João do Grão e ele acabava de participar, como um dos autores signatários, no Projecto de Revisão Constitucional nº.6/x.

Também subscrevera o pedido de não ratificação do Decreto - Lei 520/71, limitador da actividade das cooperativas, que ficavam reduzidas ao aspecto meramente económico, e esvaziadas de todo e qualquer conteúdo cultural livre, considerado perigoso pelo dito Estado Novo. Na sua última intervenção em que anunciara não regressar à Assembleia, denunciou, designadamente, a utilização de fundos reservados, pelo Ministério do Interior, e respectivo montante, e a actuação política da maioria da Assembleia Nacional.

Já fora sócio fundador e Presidente do Concelho Coordenador da SEDES. Durante o período que assumiu estas funções foi publicado o documento "O País que somos; o País que queremos ser", sobre a eleição presidencial.

Em 74, logo a seguir ao 25 de Abril (de que alguns ainda se vão recordando…), o Quim Jorge, o homem do cachimbo, como lhe chamava, fundou o então PPD, juntamente com Sá Carneiro e Pinto Balsemão. Corria já o mês de Maio. Não perdera tempo. Isto porque logo a 16 desse mês integraria o I Governo Provisório, sobraçando a pasta da Administração Interna. Participou, de seguida, no II, III, IV e VI governos, sempre como ministro. Deputado e membro preponderante do PPD/PSD, desgostoso com a actuação de Francisco Sá Carneiro, em 1979 abandona o partido e integra o grupo que criou a ASDI.

Tantas vezes falámos sobre o andamento da res publica em Portugal. Embora militássemos em partidos diferentes, jamais isso beliscou a nossa Amizade. Com Amigos comuns, muitas vezes abordámos coisas complicadas que, entre outros personagens redundariam em chatices. Entre nós – não. Aponto: as diferenças entre a social democracia e o socialismo democrático. Complicado, hein? Mas ele: olha, Henrique. O um és tu; a outra sou eu. Gargalhadas à solta. Um dia, o falecido Sousa Franco disse-me, em momento de boa disposição e de copos, que nós éramos a única água e o único azeite miscíveis…

O cancro matou-o aos 72 anos. Não irei chora-lo na Estrela, muito menos no cemitério. Porque aí, não dará a sua cachimbada da ordem. Principalmente por isso. E porque, um destes dias será a minha vez – e o Quim Jorge também não assistirá a tais preparos. Amor com Amor se paga. Adeus, Amigo.

segunda-feira, setembro 24, 2007




À RODA DOS DIAS

Setembro

Maria Lúcia Garcia Marques
E vão nove! O ano começa a declinar e Setembro cai, assim, no calendário, gentilmente, qual primeira folha de Outono, delicado e algo entardecido, como um vinho raro. Repare-se no próprio número que lhe coube – o mais abastado dos números naturais, na ordem crescente de valores, mas, no seu desenho, muito depurado e sóbrio: alto, com alguma fragilidade na haste de suporte, eu diria elegante, aureolado no topo – um número “com cabeça”. Ou não fora o titular da imorredoira “prova dos nove”, do fatal “noves fora nada!”, do acelerado “ir a nove!” (que lhe advém do facto de, nos eléctricos, a velocidade máxima se obter pela deslocação do manípulo nove pontos para a direita). E a confirmar o sofisticado do seu visual, a expressão “cheio de nove horas” a querer dizer cheio de delicadezas e mesurar, no pretensioso apuro nas vestes e ademanes.

Pois, ainda que sem estes últimos exageros, Setembro é um mês assim. Um porte de cavalheiro bem trajado, um tudo nadinha “retro”, um pouco adiantado na vida, maduro, “connaisseur” dos prazeres deste mundo “Música, mulheres e vinho!”.

Especialmente deste último, porque Setembro é o mês do vinho – a festa das vindimas, reconquista-lhe a juventude nas cantigas brejeiras, os lagares rescendem a mosto vivo, o ar ferve num Sol de Baco. E lembram-se então as estentóreas canções da estudantada:
Era o vinho, meu bem, era o vinho
Era o vinho que eu mais adorava (...)

ou o “heróico”:
Filinto Elísio,
Da velha França,
Enche-me a pança
Deste sabor
Malditas tripas
Que não comportam
Quarenta pipas
Deste licor


a escorropichar um copázio ao som das trovas


Primeiro atirador atira, atira (repetido até esgotar o conteúdo),
e quando acabava:
Mas que grande compinchão
Que bem comporta o seu quinhão!

e seguia a roda: Segundo atirador atira, atira..., até ao último.

Nesse tom se recorda também o fabuloso “Pranto da Maria Parda” que o nosso Gil Vicente escreveu verberando a subida do preço da canada de vinho (saudosa Aura Abranches, gloriosa Maria do Céu Guerra que a encarnaram em palco ...).

Mas o vinho do Setembro de que eu gosto é um vinho de casta, feito com amor e devoção como uma ária ou um poema, servido e degustado com unção e prazer, na intimidade e no silêncio de quem comunga da obra de Deus. Com traduções de um requinte que as faz verdadeiras odes: vejam como se “escreve” um velho Bairrada tinto: “Um Baga aristocrático. Fruto de cereja preto e muito mineral com notas balsâmicas de resinas e ervas aromáticas com algum cacau à mistura. Boca fina com taninos muito firmes de estilo clássico, medianamente secos e muito saborosos; sólido, amplo e muito elegante, termina longo e com classe”. Divino!

E é uma imagem bonita de um Setembro pausado e convivente a de Neruda na sua “Ode ao vinho”:
Amo sobre una mesa,
cuando se habla
la luz de una botella
de inteligente vino.

Setembro das últimas maturações, do ano a três quartos, das cálidas memórias ...
Setembro num hausto de maçã e canela sorvido num cálice de Porto.
À vossa!


SOMBRA DA GUERRA

Questão de apelido


Antunes Ferreira
Toda a guerra é um crime. Nem grande, nem pequeno; crime diz tudo. Chega. Mesmo a de libertação em que eu participo? Vou pela heresia: penso que sim. Lembro-me de ter lido, já não sei onde, que o Hemingway escreveu a dada altura que «a guerra é criminosa. Não acreditam? Perguntem à infantaria e perguntem aos mortos». Ou, quem sabe, talvez não o tivesse lido, quiçá tenha sido a Leonor que mo disse, citando, obviamente o autor.

Ora bem. Fora isso mesmo. Recordo-me agora como se tivesse sido há meia hora. A memória tem brancas que, de repente, desaparecem. O caso. Estavam sentados a uma mesa da esplanada da Cantina da Cidade Universitária, corria 1965, as «coisas» do Dia do Estudante já tinham três anos; os dois, mais o Gonçalves, o Martinho, a Adélia e o Paulo. As miúdas de Letras, eles de Direito. Regra geral era assim. Havia, até, quem dissesse que namoricos só entre as duas faculdades.

Eu, que viera de Angola, mais precisamente de Luanda, do Salvador Correia de Sá, não me admirava do ensino ser misto. Na Metrópole – como então se dizia – os liceus eram separados para que eles e elas não caíssem em tentações da carne. Mandava a Santa Madre Igreja, mais precisamente o Cerejeira, nesse particular mais do que o Salazar. Um preservativo legal e quase radical. No caso vertente, também se comentava que, bem vistas as coisas, a carne não era fraca – era boa. A das meninas, óbvio.

Na Cidade Universitária, se alguém perguntasse o motivo porque, ao longo do dia, tanta malta dos estudos jurídicos atravessava a terra de ninguém, que separava e unia simultaneamente essas duas escolas da Clássica, logo surdia a resposta calina: para irem fazer com as belas das letras uns bons empernanços de pestana. E estava tudo dito. Mais do que isso, sob a vigilância tutelar da recém construída Reitoria, era impossível. Já noutras paragens…

Na Cantina Nova, que em 62 fora palco de acontecimentos muitíssimo importantes – verdadeiramente subversivos para o Regime – encontrava-se o grupo, sendo que, naquele dia do final de um Dezembro solarento, não estavam a Olga e o Fagundes. Discutia-se o Sartre, falava-se da Rive Gauche – quem me dera ir lá passar uns dias – das mortes do Somerset Maugham e do Roger Vaillant e dos OVNI’s que a base da aviação da marinha norte-americana de Maryland garantia terem sido detectados.

Muito mais importante do que essas merdas todas foi o VI Congresso do Partido, que decorreu na União Soviética, adiantara o Martinho, confessamente (para os amigos) comunista. A Adélia nem hesitara – estou-me borrifando para o teu PCP. Alguém falou na abertura, finalmente, do Planetário da Gulbenkian, ali em Belém, ao lado dos Jerónimos, pegado com o mosteiro e sem o desfear?

Fora eu que, de repente, com a voz perigosamente baixa e modelada, mau sinal de perigo para quem me conhecia, e até para mim próprio, lançara trunfos para a mesa metálica. Népia. Esqueceram-se do Vietname. Pouco antes, o cabrão do Johnson autorizara os bombardeamentos de napalm. E vocês recordam a morte do Rimski-Korsakov, enquanto deixam de fora a detenção do Luther King e o assalto à casa do Malcom X…

Gerara-se a habitual confusão das controvérsias. Porém, embalado pelo que afirmara, elevei a voz, impondo assim algum sossego aliás diminuto na ordem dos trabalhos. Estamos aqui no belo paleio e vocês não se dão conta de que eu sou tão preto como esses dois – com a diferença apenas de que isto é Portugal e o que lhes acontece é nos democráticos Estados Unidos da América.

Lembrem-se, meus caros, de que continua uma guerra selvagem em Angola que já ameaça a Guiné e Moçambique. Para defender o Portugal uno e indivisível, dizem, e concretizar a Pátria plurirracial e multicontinental que este País se orgulha de ser. Mas, olhem só: a Leonor é apontada a dedo por andar com um preto. Comigo. Ainda estamos numa sociedade machista que diz que um branco com uma preta é natural, agora o contrário é ultrajante. E calei-me. Já falara de mais.

Estava, porem, entre amigos. Não sabia, no entanto, se dentre a restante malta que se acantonava noutras mesas não haveria um bufo miserável. Eles estavam em toda a parte. Salazar sabia tudo (ou quase) os que o rodeavam e adulavam igualmente. A PIDE não era de modas. Os esbirros espalhavam-se como mancha de azeite derramado.

Leonor agarrou a minha mão e apertou-ma suave mas firmemente. Não soltou um pio, mas esse gesto era muito mais forte e fraterno e solidário do que um discurso de afirmação. Correndo o risco de algo eclodir, ela inclinou-se para mim e beijou-me ao de leve nos lábios. Os companheiros de mesa e de cavaqueira compreenderam. O Paulo até dissera: se cá estivesse o Fagundes, enviava já uma moção de apoio à mesa. Gargalhada geral. Mas, eu destapara a caixa de Pandora.

Nessa noite, na Mexicana, o Viriato Oliveira Nassanga perguntou-me o que é que eu dissera na Cantina que toda a gente comentava e um tanto por tudo o que era sítio. Contei-lhe sumariamente. Ná, camarada, relata tudo, com todos os pormenores e todas as minudências. Pensei para mim que era a primeira vez que ouvia tal palavra. Não dei parte de fraco e embalei na descrição da cena.

Era no café da Praça de Londres que nos juntávamos os poucos angolanos que tinham vindo para a Universidade. Em Luanda, após as promessas do Adriano Moreira, abriram logo em 62, os Estudos Gerais Universitários de Angola. Mas que não tinham Psicologia; por isso eu estava em Lisboa. Chamávamos-lhe o nosso QG, porque era, na verdade, o quartel-general do que muitos apelidavam dos escarumbas.

Vais ter maka com os pides. Não te deste conta do que estavas a provocar, mas vão-te tramar. O Mateus de Sá da Bandeira, que tinha uma bolsa da Mocidade, acabara de sentar-se e assentira com a cabeça. Meteste-te num ninho de marimbondos. Tás codilhado. O que ele está é fodido, reforçara Viriato que se batia denodadamente com o cachimbo tipo inspector Varatojo.

Assim, de supetão, dei conta da trampa em que me enterrara. Mas, já não havia nada a fazer. Mateus, o Tundavala, alcunha resultante da falha gigantesca na serra junto ao seu quimbo, sentenciara, em surdina – tínhamos baixado as vozes, o medo instilara-se e instalar-se em nós – que o melhor que eu tinha a fazer era dar de frosques para a nossa terra.

Levantámo-nos e decidimos ir até à Pensão Flor, na João do Rio, ali à Almirante Reis, onde o mais velho vivia num quarto com serventia. O mais velho era o Januário Martins, aliás Kissombe, que alegadamente estudava Germânicas desde meados dos anos cinquenta. A si mesmo se chamava o profissional da sebenta, de longe a maior mentirola que todo o Mundo ouvira, mas que desculpava.

Acabara de adormecer, disse ele, estava em pijama, um artefacto ridículo, amarelo com estrelinhas cor de burro quando foge, nem roupão botara pelas costas, só de começar a ouvir-nos, eu primeiro, os compinchas depois. Na nossa comunidade, sempre que surgia um qualquer problema recorria-se ao Januário. Tinha quase cinquenta – dizia ele – mas viera para a Metrópole com a ajuda da Caixa Postal de Salazar, a cidade, que não o Botas.

É o caralho, Joaquim, é o caralho de uma situação lixada. Aqui nem pensar em ficar. A bófia deita-te a luva no esfregar de um olho. Nem sabes como elas te mordem. Mas nós vamos arranjar milongo para isso. Ainda não foste à inspecção militar, pois não? Só para o ano, já saíram os editais, é ali para a Avenida de Berna, no Distrito de Recrutamento.

Não vais. Não vais porque vais para a nossa terra. Bilhete de avião arranja-se. E quem paga?, perguntei eu, a medo. Alguém há-de pagar, não te preocupes. Trata mas é de arrumar as tuas imbambas e depressinha. Quero-te a voar depois de amanhã. Se lá chegares em liberdade, pressagiara. Não havia tempo a perder, realmente.

Tudo de jacto, até o avião. Passei sem dificuldades de maior no controle pidesco, sentei-me no meu lugar de Económica, encostei a carapinha ao banco e acordei em Luanda. Com que então, o menino volta prá cubata, disse-me o gajo que registava a minha escassa bagagem. Não vens de férias, nesta altura do ano, a não ser que seja para passares o Natal com a famelga.

Nada, que tinha o meu pai a morrer, com um cancro, no Hospital Maria Pia. Ah, tu és calcinhas? Respondi-lhe por monossílabo. Então que o encontres melhor, quero dizer, que morra tranquilamente e sem muito sofrimento, que estas cabronas destas doenças são lixadas. A morfina ajuda. Boa sorte. Agradeci-lhe e pirei-me dali para fora. Cagaço que chegue.

Não fui em casa, dirigi-me ao Sambizanga, ter com um tipo que o Januário me indicara, um tal sapateiro de nome Francisco. Que me acolheu no barraco, deu-me um prato de funje com caldo frio de peixe seco, nem me apresentou à família. Amanhã, antes das seis da matina, falamos. Falámos. Se eu queria ficar pela capital, a decisão era minha, o problema era meu. Se queria ir na mata, ele trataria de tudo.

Fiquei de pensar. E, por via das moscas, resolvi nem ir visitar a minha malta. Apenas fiz um telefonema, de uma cabina da Mutamba, para o meu velho, que trabalhava ali mesmo na Fazenda, como contínuo. Ele veio cá abaixo, abraçámo-nos, corriam as lágrimas dos olhos dos dois. Resumi-lhe a situação e ele: combater por combater, antes com os nossos. Foi a última vez que o vi. Morreria meses depois com o cancro que não sabia que tinha – nem ele, nem eu, apesar do que dissera no aeroporto. Sacana de vida.

Samba Manuel vive no Prenda, dizem as más-línguas que é chulo, tem várias meninas por conta, no Casa Branca, no Rangel, ali mesmo no Prenda, na Ilha e até nas Ingombotas. É homem de negócios, usa cachucho no dedo anelar da mão direita, grossa aliança no da mão esquerda e mais uns quantos espalhados pelos restantes. Fuma cigarrilhas com filtro e bebe do fino.

Não faço a menor ideia do motivo que levou o Francisco a mandar-me ir ter com ele. Acolhe-me de mão estendida, um sorriso esmaltado na beiçola. No meio do piano branco, uma tecla de oiro. Parece bem. Oferece-me cadeira, enche-me o copo, você veio da Metrópole, disseram-me, e precisa de ficar fora da circulação por uns tempos. Ou seja, fazer um estágio, de preferência remunerado, não é? É.

Primeiro, vai comer uns camarões com muito gindungo ao Cacuaco. Fica lá dois dias, morfando mariscadas. Aproveite, pois serão as últimas que lhe passarão pelo estreito – até à vitória final. Ao terceiro, arranja lugar no maximbombo que o levará até Cambambe, para tirar umas fotos na barragem. Se lhe apetecer, leve uma moça, sempre fica bem. Tem uma que eu conheço e que orienta as das mesas no João Cachucho. Chama-se Leonor. É branca, da Cela, mas é das nossas, sem dúvidas nem suspeitas. Depois da barragem, o resto é consigo, claro, com todo o nosso apoio. Não é favor: muito raro ter uma incorporação como a sua. O Partido precisa de si. Angola precisa de si.

Logo me havia de sair na rifa outra Leonor, e ainda por cima, branca. À minha Leonor nem um beijo lhe dera, porque não dera despedida. Nem tempo, muito menos disposição, quanto mais desvario. Podia ser perigoso para ela – mas também para mim. Tinha-os na peugada e não podia dar-me ao luxo de fazer cair comigo alguém como a Leonor Mendonça. Deixara-lhe, tão-só, uma mukanda por intermédio do Viriato: adeus amor.

Enfronho-me numas bocas de caranguejo de Moçâmedes, com muitas Cucas à mistura. O cozinheiro esmerou-se no picante, puxa que puxa a cerveja estupidamente gelada, como dizem os locutores brasileiros quando anunciam o chope da Brahamas. Há pouca clientela, reabriu recentemente a marisqueira, ainda mete algum susto ir ao Cacuaco, embora por ali não se registe qualquer actividade militar. No entanto, nunca fiando.


Tenho a certeza de que ela, a Leonor branca daqui, me está a observar por trás do balcão. É uma loira um pouco roliça, mas com tudo nos devidos lugares. Agora estou eu certo de que ela sabe quem sou eu e que a analiso. Quase sente o meu olhar um tanto lúbrico a percorrer-lhe as curvas gostosas e bem delineadas do seu bronzeado natural. É menina para isso, e para muito mais. É boa pra cacete, também dizem os brasucas. E ela sabe.

Desenrosca-se lentamente como uma verdadeira boa que acabou de digerir um boi, e avança até à minha mesa. Disseram-me que quer falar comigo. Quem o mandou? Que pretende? Apoia a mão esquerda numa anca torneada e as calças justas que usa revelam tudo o que tem. E mais que fosse. Convido-a a sentar-se, depois de lhe informar que venho da parte do Samba Manuel. Falou com o senhor Samba? E os olhos semicerram-se-lhe como se pretendesse avaliar-me melhor.


Ocorre-me, de golpe, a história do Capuchinho Vermelho, dos olhos do lobo mau, grandes para melhor ver a pseudo-neta melhor, antes de a comer. Mau. Lá começamos com os trocadilhos. Vontade de a comer não me falta, mas não igual à do lobo péssimo. Será ela, porém, que me deglutirá? Como? O jogo apenas começou, mas as cartas já estão marcadas e cada um de nós está certo de que ou é trigo limpo, farinha Amparo, ou vai ser um descarrilamento de truz.

Passo adiante. Sucedeu o que tinha de suceder e ponto. Deixo outra Leonor com o meu carimbo. Saio de madrugada, alegadamente para a barragem, num land rover a cair de podre, preso por arames e em nove horas estou na base da guerrilha. O condutor é um preto, preto, como o carvão. Olha camarada, até parece que sou da Guiné, mas sou de Nova Lisboa. Os meus pais me fizeram numa noite escura. E ri-se. Eu, também.

Pelo caminho, e que caminho, trilhos que nem picadas são, vou descobrindo umas sanzalas queimadas, gente churrascada, mais à frente o esqueleto enegrecido de uma camioneta de passageiros, tem ossos e caveiras lá dentro, ó meu, lhe acertaram um RPG, queimou tudo, metal e pessoas. Ainda encontro mais uns quantos restos sinistros.

E o gajo contando, incansável, que acolá se tinham descoberto umas cabeças de patrícios, degolados pelos filhos das putas da UPA. Mais além as piças e os tomates de um branco que fora capado, espetados em paus enterrados no chão. Paramos. Olha camarada, você ainda podes reparar se olha com cuidado no castanho do chão. O sangue se entranhou, ficou. Seco.

Esses bandos do caralho, cheios de vinho e de liamba, por ordem do Holden Roberto, nem os seus irmãos pretos respeitaram. Porquê? Porque eram bailundos? Porque tinham vindo na tonga do café, ajudar os tugas a roubar o nosso? Não justifica, camarada. Há brancos sacanas, há pretos sacanas, mas preto que mata preto só por causa de merda pequena, é assassino e criminoso, não achas, camarada? Claro que sim, acho.

Daí que comece a pensar no crime que a guerra é. Sempre foi, é e será. Tem problemas que não se podem resolver de outra maneira, infelizmente. Mas que é um crime, é. Se o Salazar e os outros filhos da puta que o rodeiam e incensam tivessem tido o bom senso de aceitar as propostas do Agostinho, do Cabral e do Mondlane, outro galo teria cantado. Mas não, preferiram salvar o império e a cristandade e deram isto. E nisto.

Chego calado - ruminando essa qualificação de crime - à base, na base, como diz o condutor, apresento-me e bebo água mais ou menos fresca de uma cabaça pendurada na ombreira do que foi uma casa de roça para os contratados. Ou seja, os escravos. O comandante recebe-me. É um jovem dos seus trinta e picos, um pouco mais velho do que eu. Trata-me logo por tu. Nem te pergunto como aqui chegaste. Estás cá, é o que importa e se vieste foi por tua livre vontade. O tipo sabe. Mas quer marcar o território, como fazem os leões, só que estes mijam para depois o reconhecerem pelo cheiro.

Chama-se Amadeu, mas tem o nome de guerra de Canhoto. Apelido? Ignora a interrogação que deixo apenas no ar, pois não a enuncio. Eu apresento-me, Joaquim Marques Oliveira, vindo de Lisboa, perseguido pela PIDE. E logo: bom, perseguido, perseguido, ainda não, em vésperas de o ser. Prefiro falar verdade logo de início, se ficar alguma suspeita entre nós é pior do que picada de marimbondo que dói, mas dá, sobretudo, comichão.

À noite, de tão cansado e amachucado pela viagem, não tenho sono. Cacimba e um friozinho vai corroendo os mais que habituados ao calor. Sento-me de pernas cruzadas debaixo do corpo, á maneira de Buda. Uma fogueira faz dançar as ramas das árvores, numa estranha coreografia surrealista.

Vem-me aos lábios Nureyev. Ainda que ele seja siberiano, nada a ver com Angola nem na Leba há frio assim tão frio. Mas bailarino e coreógrafo – não tem rival. Como disse uma vez o Fagundes, ele é tão bom que até se lhe desculpa ser panilas. Foi o que ele sentenciou, eu assisti e ouvi.

Canhoto sai da sua barraca e chega-se ao braseiro. Pergunta-me se fumo, ao que lhe respondo negativamente. Fazes bem, camarada. O tabaco é quase sempre um empecilho. Numa emboscada não se pode fumar, ainda que se rebente de vício. Na mata, no carreiro, na picada, também não. Aqui na base, só para espantar os fantasmas da má sorte. Mas, não creio que resulte por aí alem.

Agacha-se ao meu lado e diz-me, olhando-me fixamente, iluminado pelas chamas bailarinas: tu não estás muito calhado para isto, pois não? Tu és mais de cidade, de Lisboa, sei lá, de Paris, Luanda já nem te chega, não é? E vai gravando a canivete – com a mão esquerda - uns entalhes num ramo de árvore que previamente descascou. Tu não gostas da guerra, meu.

Explico-lhe que continuo a pensar na guerra e no crime e que não há maneira de os dissociar. Olha Canhoto, não há guerras justas. Cito-lhe Hemingway. Conhece a frase e até sabe o livro em que ela vem. Continuo. Esta que nós fazemos destina-se a dar a liberdade à nossa Pátria, e para isso temos de vencer os colonialistas. Fazemos o que temos de fazer, o que devemos fazer. Se é preciso matar inimigos – pois que se matem. Mas, tens razão, amigo. Não gosto das guerras. Se houvesse outra maneira…

Há, Joaquim, há e tu sabe-lo. Mas, a corja dos politiqueiros e dos ricaços do Puto não a quer. Precisam dos tiros, das granadas, das armas, de tudo o que vendem aos subdesenvolvidos, aos párias, aos gajos como nós. Somos para eles, apenas, cifrões. Ganham dinheiro e estão no poleiro. Para eles o sangue é barato. De borla, mesmo. Estendo-lhe a mão e ele faz o mesmo. Eu a direita, ele a esquerda. Com uma risada. Agora já sabes porque me chamam Canhoto. E num sussurro: Não digas nada, pá, o meu apelido é Salazar. Mas não tem nada que ver com o cabrão. Abrenúncio.

sexta-feira, setembro 21, 2007




SOMBRA DA GUERRA

Um novo atoleiro

Antunes Ferreira
O
camião, uma GMC da Segunda Guerra Mundial, está atolado na lama barrenta da picada. Vinha carregado de cunhetes de munições para diversas armas, pesadíssimo vinha, o que ajudara a enterra-lo no solo empapado em água. Até meio dos pneus foi engolido numa armadilha quase fatal. Quase? Verá-se, como diz o ceguinho. Daí que o pessoal tenha descarregado, à unha, o material. À mistura, uns caixotes de uísque e gin. Guerra é guerra.

Manuel Martelo é condutor do Metro de Lisboa. Aliás, o único comboio subterrâneo. Meses depois dele ter sido inaugurado, ou seja em meados de 1960, ele era um gandulo que vinha do liceu e apanhava o animal para regressar a casa. O grupo era porreiraço e os seus elementos entretinham-se durante a curta viagem. Estava na moda uma canção do Marino Marini, El telegrama. Quando o senhor da cabina avisava pelos altifalantes «a próxima estação é Rotunda», logo eles cantavam em coro o refrão «Ya lo sabia, ya lo sabia…»

Daí lhe viera aquela ideia peregrina de vir a ser condutor do Metro. Que, a bem dizer, era tão pequeno que o pessoal graçolava sobre o ir apanhar o centímetro. O Costa, Joaquim, filho do Costa dos Frangos, Eleutério, que, depois das aulas, ajudava o pai a churrascar os bichos, ainda o tentou demover. Que merda de vida seria a sua, sempre debaixo do chão, como as toupeiras.

Qual quê?! Concorreu; o progenitor Martelo, Raimundo, meteu uma cunha de peso a um Senhor conhecido do primo Rogério, o Ximbica, que era pessoa grada na empresa. Ficaram apurados, ele e mais 27 gajos. Empenho? Ná. Ele nascera para aquilo, sem empurrão entrava – sem empurrão entrou. Ainda que as más-línguas, sobretudo da família, dissessem que sem o Ximbica…

Começou a namorar com a Jacinta, dactilografa, dos escritórios de Sete Rios. Onde passeavam, onde haviam de passear? Pois, no Metro, de mão dada, os túneis eram escuros mas as carruagens muito iluminadas, nem um beijinho ao de leve podiam trocar. Quando havia lugar, sentavam-se lado a lado, o calor de um passava para o outro, era quase orgástica a situação. Moravam na mesma rua, isto é, ela na da Aguada, ele na da Aguada, mas Travessa da.

Vingavam-se no átrio das escadas da moça, esconsas, a lâmpada do tecto apagara-se, se calhar fora ele dizia a vizinhança, era um fartote. Mão na mão, mão na coisa, coiso na mão, coiso na coisa é que não, dizia a Ritinha apanhadeira, uns anos bem puxados, 43 sussurrava ela, upa, upa, somassem-lhe mais uns, largotes, em cima. De resto, em cima gostaria ela que se lhe pusessem, mas isso já fora. Ninguém lhe queria já saltar para a espinha.

Aqueles momentos de êxtase ninguém os via. Mas já corria na rua comum, que muita gente sabia dos combates amorosos sem luz. Um dia, quando vinham da estação, uns tipos que se diziam amigos do Martelo entraram de cantar trova muito em voga na boca dos do Ouro Negro. O Milo e o Raul, acompanhados de coro, avançavam num «É só marmelada, é só marmelada» que caíra no goto. Era isso que essa gajada entoava com requebros sacanas.

Tinham jurado reciprocamente que, com o rebentar da guerra do Ultramar (havia quem disse colonial, citando que até havia um Bairro das Colónias), se ele fosse para África, o mais provável, ela esperaria por ele para, na volta se casarem. Coisa que ficou rigorosamente entre os dois, não fosse o diabo tecê-las. Os pais dela - nem pensar. Não queriam um chofer de cano de esgoto para a filha, que até fizera a Patrício Prazeres e com boas notas.

Os Martelos – tanto se lhes dava. Se a Jacintinha fizesse feliz o Manel, estava tudo bem. Ainda que a Dona Benvinda tivesse as suas dúvidas, uma mulher que trabalha com homens num escritório, não sabe fazer umas pataniscas e um arroz de feijão, não passa a ferro umas calças a precisarem de vinco, não passaja, pior, não prega um botão. Mas isso era lá com ele. Quem boa cama fizer, nela se há-de deitar.

Vai daí vieram as sortes, apurado para todo o serviço, mal parecia que assim não fosse. Na bicha de homens nus, tinha à sua frente um tipo alto, esgrouviado, com ar de pacato e um coxo, um perneta, pois lhe faltava o pé esquerdo. Este sorria, na perspectiva da escapadela por mor da deficiência. O coronel da Junta, mesmo antes da pronúncia dos médicos – este está apurado para os Serviços Auxiliares.

Interrogações pairaram no ar? Sem um pé e apurado? E um dos médicos, por certo miliciano, arriscou, ó meu coronel, mas o homem não tem um pé. Deixe-se disso, doutor. Na recruta fica dispensado de marchas e formaturas. Depois, no quartel, sentadinho a uma secretária, não precisa das patas para escrever guias de marcha e outros papéis. Na vida militar há soluções para tudo. Só para a morte é que… Mas disso, encarregam-se os cangalheiros - e já está.

Entreolharam-se os actores daquela estúpida comédia. Muito mal deviam ir as coisas para que tal acontecesse. Na tropa, tudo se resolve, ou quase. Ao mancebo alto o sargento do livro de registos, esferográfica à merceeiro, atrás da orelha, perguntou se sabia nadar. Sei. Então vai para a Marinha. E o calmeirão: porquê? Já não há barcos? Vais ver se há ou não há, fuzileiro nas bolanhas da Guiné. A ameaça saiu qual rajada de Breda.

Resumindo e concluindo: ali fora parar, a Nambuangongo, que só se dera conta o Martelo de que tal existia, lá no cu do Mundo, através da RTP e das fotos de um tal Fernando Farinha. Ouvira contar os feitos do coronel Maçanita, já lendários, que comandara a coluna saída de Luanda e reconquistara aos cabrões da UPA a localidade. Agora, está ele, Manel para os amigos e camaradas de armas. Nesta situação inconcebível tempo atrás, mas real, palpável e preocupante.

O pessoal afadiga-se no afã de safar o camião da enrascada em que se metera. Soldados, camionistas e ajudantes destes bem empurram, assoprando pelo esforço desumano. A besta metálica, porém, à tona da terra movediça quase tanto como as areias, não se move. Pelo menos, não aparenta. Nem faz nada por isso, na sua inércia ferrugenta. Parece.

Já se tentou com os macacos hidráulicos de diversas viaturas do MVL, se calhar de todas. Mas o atoleiro não permite apoios. Resvalam e há o perigo da camioneta cair pela ribanceira que tem de um lado. Estão agora a tentar meter sob os pneus (?), se lá se conseguir chegar, ramos de árvores e os tapetes de outras viaturas da coluna. Para o rodado se agarrar e não girar em vão, atabalhoadamente.

Na frente está uma Matador, velhíssima, o cair de podre disfarçado pela tinta de camuflagem. Mais provecta do que a GMC, talvez da guerra dos cem anos, quem sabe. Pelo menos, das invasões napoleónicas... Que, porem, possui um guincho potentíssimo, a correntes. Um camionista mais engenhocas conseguiu arranjar um cabo de aço, fortíssimo, ainda que fino. Mas maleável. Enrosca-se o mesmo na argola da frente da corrente e logo surgem as cordas mais diversas que vão cobrindo e manietando o engate.

C’um escafandro, recomeça a chover. Aumenta o chiqueiro. Não aumenta. Foi só uma ameaça, uns pingos mais gordos, chuva passageira, vá malta, arriba, vamos tirar esta merda daqui. Range o guincho em sons metálicos de arrasar ouvidos sãos mas incapazes de aguentar tamanhos decibéis. O motor da Matador rosna violentamente e há mais três camionetas a puxar pela GMC ao mesmo tempo – ou quase.

Uma chinfrineira monumental, a que se juntam as pragas do pessoal, os incitamentos, agora é que é, puxem seus macacos. Os pneus da enterrada continuam a girar em vão, fazendo saltar sobre a gajada pedaços esponjosos de lama. Vendo que a gente está quase a baixar os braços e desistir, o Manel solta um grito: desencavem-na que eles chegam. E, no meio da confusão, dispara umas rajadas para o ar.

Entre a fuga e o desenterro, os homens, cientes de que, de uma ou outra forma podem ser trucidados pelos turras, incham peitos e respiram fundo – e puxam, porra!, como puxam. A Matador estremece. Será que o guincho se vai soltar de tanta força e podridão? A GMC treme, oscila, arfa-lhe o motor que o Zequinha seu condutor ligou e calca o prego a fundo.

A enorme caranguejola parece animar-se. Os pneus, prenhes, tentam agarrar qualquer coisa. E um dos ajudantes, o Chipande, mete-se-lhe por baixo e bota uma lona de cobertura. Um estrondo e um brado: a puta mexe-se! Mexera-se a prisioneira do lodo pantanoso e vem penosamente para fora dos enormes buracos que abrira no chão. Malta, não a deixem escorregar! Ninguém arreda, muitos escorregam – mas a GMC não.

Quando param e a camioneta está salva, aí lembram-se todos do chegam eles! Fazer segurança, seus sacanas, que os capados tramam-nos. Prás valetas, já, armas destravadas, culatra atrás. Só o Martelo, consciente do que fizera, não entra na contradança. O alferes que comanda o MVL dá-lhe um berro: alapa, capado! Estás que te borras! Nem te mexes!

Porem, o capitão Salzedas, do SGE, lateiro como lhe chamam, curtido de muitas vidas, levanta a voz: ó nosso amigo (não se pode dizer a patente, nem trazer galões ou divisas) não grite mais. Se safámos a viatura – e de que maneira! – foi graças a este senhor gajo. E, na calma dos seus 51 anos, explica o artifício do Manel, o chegam eles como empurrão último para se atingir o objectivo: desenterrar a GMC.

Há um suspiro de alívio, tão fundo que se deve ouvir no aquartelamento de Nambuangongo, ali a uns doze quilómetros. O furriel Castanho até comenta que o desabafo da adrenalina foi mais ruidoso do que o cagaçal feito para exumar o camião. Voam pelo ar gargalhadas, muitas nervosas, foda-se, assim é mais porreiro. Eles não chegaram, nem vão chegar. Não andam por ali.

Gente, se andassem estava armada uma maka de três em pipa. Teriam limpado o sebo a toda a malta, empenhada no esforço hercúleo, as canhotas abandonadas no capim, segurança uma ova. E eles nem esboçariam um arremedo de defesa. Seriam caçados como coelhos à boca da lura. Teriam sido, sim senhores, mas, felizmente não foram.

Acalmados os ânimos, refaz-se cuidadosamente a coluna – os filhos da puta não vêm por ali, definitivamente – e ala que se faz tarde para Nambo. Onde, três horas depois, são recebidos com palmas e hurras. Salvaram a GMC e salvaram-se eles. O coronel comandante vem cumprimentar o alferes Figueiredo pelo feito, mas este chama o Martelo que se chega e faz a continência.

Vossa Excelência, meu Coronel, saiba que foi este homem que nos safou. O coronel franze o cenho. Junta-se ao grupo o capitão Salzedas e à compita com o Figueiredo, quase se atrapalhando um ao outro, contam, tim-tim por tim-tim, o feito do Manel. O comandante ouve. Puxa uma fumaça do cachimbo que, entretanto se apagou – caso raro com tal proprietário – remexe no fornilho, chega-lhe um fósforo dos grandes, Quinas.

Ouve, cada vez com mais atenção, no meio do silêncio que se fez, a malta esbodegada calou o vozear e segue, impressionada, o relato sincopado, mas perfeitamente perceptível. Os kikos que andaram pelo ar, estão agora nas cabeças dos seus donos ou nas passadeiras dos ombros das fardas. Um soldado fuma no côncavo das mãos para disfarçar, porque não pedira licença ao coronel para o fazer.

As vozes dos relatores vão subindo de tom, acicatadas pelo entusiasmo de ambos. Nem o Amadeu José de Freitas, a relatar um Benfica-Sporting na final da Taça de Portugal, no Estádio Nacional, chegaria a tais exaltações. Vão chegando ao fim os cronistas daquela batalha. Salzedas, que passou com mérito o seu exame para oficial na Escola Central de Sargentos, em Águeda, já lá vão uns anitos, sorri.

Admirador confesso do Fernão Lopes, do Gomes Eanes de Zurara e afins, até do Mendes Pinto, grande inventor, revê, naquelas frases encomiásticas que ele e o Figueiredo usaram, a escrita de tais autores. Quase se sente – não em Nambuangongo – mas na corte, com o rei sentado no trono, o queixo apoiado numa mão, escutando os feitos contados pelos historiadores. Que, naquelas alturas, ainda não sabiam o que eram bem, muito menos que ficariam para a História. Estórias.

Jacinto Figueiredo, aluno de Económicas do ISEF, alferes miliciano atirador, está mais cansado do discurso do que estava aquando da cena na picada. Talvez não seja bem assim, mas parece-lhe. Esfumam-se os últimos arranques e a soldadesca rompe em aplausos agora próximos da loucura. O coronel Machado levanta-se e do alto do seu metro e oitenta e muitos, manda que se faça silêncio.

Que cagada, pensa o furriel Castanho, nem se pode aplaudir um sacana com eles no sítio. A tropa é mesmo assim, nem uma bufa baixinha se pode soltar. E pensava ele que o comandante não dava essa impressão, mas era um gajo pachola. Agora, porém, manda e a maltosa obedece. Quando voltar à vida civil, ele que é cafuso do Lobito, vai deixar o escritório onde trabalha, da Companhia Nacional de Navegação, e pira-se para Benguela, onde entrará no Rádio Clube, a estagiar como locutor.

Então, sim, então já não estará às ordens dum filho da mãe de um coronel qualquer, e poderá dar largas ao microfone de elogios ou de críticas. Claro, com conta, peso e medida, para que a Censura não o trame. E imagina-se nas ondas hertzianas, a dar verdades, só verdades, nada como o Ferreira da Costa que arrota quotidianamente excrementos de mentira no seu «Rádio Moscovo não fala verdade». Seu, dele. Que cabrão! Ele, não, ele dirá tudo o que puder. Mas, sem falar, obviamente, no direito a ser indendente que a sua terra tem. Porra!


O coronel abre, finalmente a goela, ao mesmo tempo que dá um passo em frente e, sem cerimónias, abraça um Martelo aparvalhado. És um gajo valente, esperto, inteligente e oportuno. O soldado, meio envergonhado, retribui o amplexo, enquanto o oficial lhe dá palmadinhas nas costas. Vou propor-te para a Medalha dos Serviços Distintos, de oiro e com palma.

E, claro, vais gozar uma licença alargada, quase uma graciosa como as dos funcionários públicos. No Puto, está bem de ver, bem a mereces. Para já, vou mandar-te ao nosso general CEMRMA, em Luanda, para que ele te conheça. Martelo, liberto dos braçorros do comandante, se tivesse um buraquinho de formiga ali ao pé, enfiava-se pelo chão dentro.

Carago, ele não fizera mais do que desenrascar-se a si próprio e ao pessoal e à GMC e à Matador e às outras camionetas da coluna. Fora só isso. Pede autorização ao comandante e diz-lho mesmo. Ó meu safado: ainda por cima és modesto, nada de emproanços, para ti foi tudo simples, apenas uma artimanha. Foi, mas muito bem engendrada, rápida e coroada de êxito. Oportuna. Tens de ser recompensado, ó Martelo.

Já o trata pelo nome, deixou de ser o 1674/68, mais um bocadinho era de 69, sabe-se lá para o que um homem está guardado. O coronel volta-se para a maralha: bebidas à discrição. Nada de Mosca, Constantino ou L34. Hoje emborca-se o uísque e o gin que vinham e vieram na GMC. Graças ao Manuel Martelo. Não quero bebedeiras! No entanto, os que se enfrascarem não dêem nas vistas. Metam-se nas casernas, xixi e cama.

As sentinelas e o piquete bebem só umas pinguinhas. Serviço é serviço, conhaque é conhaque. Voltam os vivas! Castanho rectifica rapidamente o curso do pensamento. Afinal, o nosso comandante também se emociona. Quase jura que lhe viu os olhos embaciados, mas, pode ter sido da chuva miudinha que voltou. Sempre tinha razão, o homem era outra loiça, afinado, duro, mas competente. Humano.

Um homem, mais a mais coronel, não chora. O Martelo também não chorou, nem chora. Gajo com um par de tomates maior que os do padre-inácio. Em tempo de guerra não se limpam armas e o tipo provou-o. Quem sabe, se calhar nem se deu conta do que fizera. O oficial chama-o. Ó Castanho, venha ali ao meu quarto que vou fazer a informação e o despacho e você tem jeito para isso, embora seja atirador. O furriel faz, muitas vezes, esse serviço, Machado tem absoluta confiança nele.

Assim fazem. Mário Machado dita e João Castanho começa a escrever. Meu comandante, isto já é tarde, também não é dado e arregaçado. Não há pressa. O Martelo não segue já. Vá-se deitar, durma, sossegue. Foram muitas e alterosas emoções, que eu bem vi. De uma só vez. Não é por mim, sabe que estou sempre pronto e, nomeadamente com uma pessoa como o meu coronel não se pode dizer que não; eu, pelo menos, não posso. E veja, não lhe estou a passar a mão pelo pêlo.

Sei, Castanho, sei. Já lhe tenho dito que você é insubstituível, embora saiba que os cemitérios estão cheios desses insubstituíveis… Mas, sabe, eu não gosto de deixar para amanhã o que posso fazer hoje. E, inesperado, uma confidência: desde miúdo que aprendi isso com o meu avô, depois com o meu pai e depois ainda com a minha mãe, já viúva. Vá, continue e se tiver algumas dúvidas do que eu disse, corrija-as e venha mostrar-me para assinar.

O furriel acaba os apontamentos, ele sabe alguma coisa de estenografia, assim é mais fácil. Estranho, o gajo ditou mais depressa do que o Manuel Faria a correr e a ganhar a São Silvestre de São Paulo. Não é costume. Mais pausado, mais pensado. Mas, que se lixe. Assim quis o comandante, assim se faz. Manda quem pode. Sai e vai passar à máquina do Canelas, esse sim, escriturário, mas que dá erros que são barbaridades. O sacrista diz que é da máquina de escrever, uma Remington, que tem as teclas tortas. Olha lá, bandalhote: um mau dançarino diz sempre que o soalho está inclinado.

Volta. O Coronel lê, concorda e assina com a sua letra cursiva e regular. Castanho cobre o nome com o carimbo da ordem, meio azul meio roxo, a guerra não dá pra mais. Pra armas sim, agora pra carimbos de borracha… Despede-se, pede licença para se retirar, vai meter a papelada no malão respectivo e entra na farra que está ao rubro. O Vat69 e o Gordons escorrem pelos gorgomilos que é uma festa. E o Boresford e o Jonnhy Walkers, até o Monkies.

O Martelo aproxima-se, um tanto zonzo mas não encarraspanado. Alegre. Ainda. Ó Castanho – tratam-se assim, de tu, tinham feito serviços, guardas, emboscadas, golpes de mão, sempre juntos, daí o terem deixado cair o meu furriel da ordem – achas que isto é um sonho ou quê? ‘Da-se, não é sonho nenhum. É uma realidade bem verdadeira. O nosso coronel já assinou tudo. Podes emborrachar-te à vontade… Vais ver a tua Jacinta, com medalha ao peito, os teus futuros sogros ainda tiram uma foto de braço dado com o quase genro herói. Vais ver.

No dia seguinte, de manhã, como o comandante se atrasasse para o mata-bicho foram dar com ele estendido na cama, um meio sorriso na face fria. O Capitão Salzedas, chamado a correr, comentou em surdina, coitado, acordou morto. O médico da Força Aérea, o tenente Castilho mais não fez do que confirmar o óbito. Foi ataque de coração enquanto dormia. Dispenso a autópsia.

Castanho está desesperado. Compreende, de repente, quanto gostava do coronel, quase um segundo pai, para ele. E rumina. Se tivesse ficado um tempo mais com Mário Machado, talvez lhe tivesse podido valer, sabe-se lá, a sorte é uma puta desmiolada. Um copo de água, uma aspirina LM, um uísque e poderia ser que o comandante tivesse escapado. Guardou para si o pensamento e não disse nada. Descanse em Paz.

O Martelo, esse, nem quer acreditar. Lá se vai tudo por água abaixo com o falecimento do nosso comandante. Chiça!, ele bem sabia que não fora mais do que um sonho, os prémios, a viagem, sabe lá ele mais o quê. O Castanho sossega-o. Está tudo escrito, assinado e carimbado. Às duas da tarde o heli leva-te a Luanda. Depois da visita da praxe ao nosso general, o Boeing leva-te para Lisboa. Não te precipites. Não te amofines. Ainda não levas a medalha, mas lá chegará.

Ora bem, sendo assim, ainda ia pensar se tirava ou não a fotografia com os pais da Jacinta. Sim, isto porque um herói é um herói e um cão é um bicho. E, calha bem, talvez eles nem ficassem no boneco.


quarta-feira, setembro 19, 2007





ORA TOMA...

Lisboa «deambulada»
pelo Victor Nogueira

Antunes Ferreira
O Victor Nogueira é impagável – e imparável. No seu blogue ao (es)correr da pena (que já recomendei, recomendo e recomendarei) vai, desde há uns tempinhos deambulando por Lisboa. É obra, minhas Senhoras e meus Senhores. O nosso homem não pára. Tudo o que encontra nesta capital que é nossa, vá de registar. Constrói, assim, uma cidade de muitas colinas e muitas obras de arte e outras, até nas artérias.
Este apontamento é uma homenagem a Lisboa, mas também ao Victor que no-la traz de forma airosa, interessada e interessante. Recria-a perante os nossos olhos, o que - pelo menos para mim, alfacinha e orgulhoso de o ser – é cometimento para longa duração porque longo é o caminho a percorrer, sedimentado pelo já percorrido. Vai em frente, Victor. Não te alerto para eventuais distracções – porque tu não te distrais. Vai, Victor, vai. Continua.

quinta-feira, setembro 13, 2007


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O APANHA BOLAS

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¡Qué puñetazo!


Antunes Ferreira
Hoje pela uma da tarde, entrei numa loja da Plaza Mayor. Madrid ia começando, um tanto sorumbática, a ver-se invadida pelas folhas pré-outonais, com quem os homens da limpeza lutam denodada, mas um tanto improficuamente. É assim por toda a parte desta Europa dita unida, por que bulas não havia de ser na cidade do medronheiro e do urso?
«Buenos días caballero. ¿En que puedo servirle?» «Yo quiero una gorra de esas de marinero, sin embargo impermeable, para el invierno». «¿Como no? Las tenemos en Teflón, no hay lluvia que les preocupe, por supuesto». «Vale». «¿Y Usted - donde?» «Yo soy Portugués». Don Fernando Vasquez não acredita. «No puede ser…» ¿Quiere que le enseñe mi carnet d’ identificación?»
«Pues que sí. ¡Tiene Usted un entrenador de fútbol, el brasileño ese, el señor Scolari que ha pegado un puñetazo ayer en uno de los nuestros! Ni hablar…» «¿Cómo de los vuestros? El tío es serbio, no es español…» «Pero fíjese que Drago es jugador del Sevilla. ¿Sabe lo que le digo yo? Scolari tiene que ir de entrenador de boxeo…»
É isto, Vou a correr comprar a Marca, traz a fotografia do puñetazo de Scolari. Sem comentários. Chego a Lisboa, à tarde, e o taxista que me traz do aeroporto diz-me que o Scolari já pediu desculpas – mas que desculpa não cura. Também acho.
Só nos faltava esta. Scolari? Que venga otro, aunque sea español. Mas que não seja o Luis Aragonés. Para tristezas – já basta.
(A capa do Record de hoje é prova flagrante do desvario do brasileiro. E o título: um achado. Com a devida vénia ao diário desportvo aqui a reproduzo.)

sábado, setembro 08, 2007


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O APANHA BOLAS
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Ou oito ou oitenta

Antunes Ferreira
Ora cá temos o célebre duche escocês. Perante a multidão que enchia literalmente o estádio da Luz, e com o jogo aparentemente controlado, tudo parecia serem rosas no regaço dos Portugas. Mas, eram espinhos. O público, tipicamente lusitano, nos momentos difíceis cala-se, ou, pior, assobia; nos de alegria transfigura-se euforicamente. Ou oito, ou oitenta.

Veja-se o comportamento dos três mil polacos que se encontravam nas bancadas: o apoio à sua selecção, sobretudo no período em que se viram em palpos de aranha face à endiabrada pressão dos lusos. Pareciam 300 mil. No entanto, após o golo milagroso de (quem havia de ser) Cristiano Ronaldo, o pessoal começou a cantoria calina: só mais um! Só mais um! E os polacos fizeram-lhe a vontade…

Não interessa aqui acusar o Ricardo de ser frangueiro, tanto se tem dito, repetido, tripertido a anedota. Não me detenho aqui a criticar Scolari porque devia ter posto o Quaresma desde o primeiro minuto, porque devia ter convocado mais um ponta de lança, porque tardou nas substituições. A selecção nacional podia ter ganho – mas não ganhou. Nem perdeu, só para acompanhar o Amigo Banana. Empatou.

Parece que nos especializamos em ser uns empatas. Nos relvados e noutros locais e horários. Louve-se uma circunstância: muito fizeram os nossos para alcançarem a glória. Ficou-se pelo insípido 2-2. Como dizia o rifão, adaptado, ontem, na segunda circular, há dias em que não se pode sair de casa… à noite.

(Foto Maisfutebol.iol.pt)