terça-feira, maio 15, 2007
VOLTAR À GUERRA
Vermelha, não; encarnada
Antunes Ferreira
Pingolejava. Escorrendo pelas ramas, pelas folhas, pelas lagartas, a água, findos os apoios, caía em gotas grossas no emaranhado verde que cobria um chão escorregadio e putrefacto. Se fosse na aldeia da Sobraleda, aquele húmus seria de erguer as mãos aos céus pela benesse que representava para os favais sem linfa e sem estrume.
Ali, pois, ali, as coisas eram diferentes. O verde, melhor, os verdes dos quais se evolavam vapores sulfurosos (seriam?) rescendiam a esterco recheado de miasmas. O carreiro aberto pelas botifarras dos militares desenhava-se apenas à passagem, e voltava a desaparecer na espuma esverdeada que, de tão densa, impedia de ver o chão. Cuidado com as cobras, alertou o sargento Simões.
O pessoal redobrou de cuidados. Já não bastavam os inimigos, as emboscadas, as minas, os fogachos de toda a ordem, já não sobrava nada para que o medo se instilasse pelo camuflado, pelos polainitos, pela derme suja a precisar de banho com muito sabão azul e branco (ou seria macaco? Ou seria sabonete lux, aquele que cada nove estrelas de cinema, em dez, usava, para a beleza realçar?) e basta esfregadela, já não contavam as saudades, e agora as cobras.
Puta de vida, esta de dar corda às botas e andar em busca dos gajos que faziam maka, no dizer dos pisteiros e dos tropas da Província, que realmente era colónia mas que não se podia dizer, proibidíssimo. À volta, os cortinados, eles também multi esverdeados, eram paredes opacas e densas que impediam que eles vissem a mais de uns escassos palmos das trombas.
Do outro lado dos reposteiros vegetais podiam estar os gajos, especialistas em planar sobre o terreno, por mais que pisassem caules não se ouvia um estalido, estavam em casa, na casa deles, a mata era sua cúmplice, os pássaros continuavam a cantar com eles por baixo, eram todos primos, nós é que as assustávamos, as aves que engoliam os gorjeios à nossa passagem.
E nós estava mesmo lá, kalashnikoves nas mãos, pisa aqui, pisa acolá, sem ruído, sombras de uma floresta amiga, camarada, mãe, amante. Eles bem podiam desconfiar – e desconfiavam mesmo, jura mesmo sangui di kristo – que nós estávamos lá, porque estávamos. Na primeira oportunidade eles ia saber, nós lhes saltava, lhes apertava o pescoço, lhes derrubava com uma bassula a preceito.
Eu foi no mercado de Quinaxixe como carregador de um portuga que vendia mangas do Mussulo numas quitandeiras que ali tinha banca. Vinha no cocuruto do camião, uma White de escape acima, ao lado da cabina. Era o Senhor Jorge, beata na boca, palavrão na boca, sempre armando maka. Ele tinha mais sete camionetas, até uma japonesa, o negócio era roubo, dava dinheiro. Me batia até com pau. Lhe estava a querer mal até demais. Pensava lhe podia matar. Um dia, o meu primo Adão me disse que os amigos estavam a lutar na mata pela independência e ele ia para lá. Eu também foi.
Guerra é coisa má, mesmo
Guerra é coisa muito má, mesmo. Se você podes resolver o assunto sem ter de ir na guerra, então resolve. Sangue demais, mortos demais, ferido demais, merda demais. Só que tem coisas que não se pode arranjar sem guerra. Libertar os nossos dos colono é muito importante. Por isso andamos por aqui, lhes impedindo de ter descanso, lhes metendo medo. Até das cobras.
Nós também tem medo das cobras. Tem cobra pequenininha que é venenosa, tem cobra grande-grande que engole um boi inteiro, tem cobra de terra, tem cobra de água. Diz que até tem cobra de mar, mas nunca ninguém disse que lhe viu. Os camuflados vêm aqui, deixam no puto as famílias, as namorada, os propriedade, essas coisas todas que fazem o homem ir no destino que lhe marcaram. Que não é a nossa terra, porque não é a deles.
Assim seguem, de um lado e do outro da manta pesada de verde tecida, mais suave ou mais pesadamente, soldados do exército portuga e guerrilheiros da libertação, a que os primeiros chamam turras. Como irmãos separados, como gémeos a quem o bisturi deu vida própria, correndo muitos riscos e passando muitas fezes. De cada lado pensando que no outro estão os inimigos prontos a eliminar os nossos.
Os nossos que igualmente seguem a passo, cada um considerando-se mais nosso e mais vivo, até que a ceifeira negra os reduza a carne queimada, retorcida, esburacada, a caminho da cova. Os uns e os outros, nossos à vez e ao mesmo tempo, destes e daqueles, olha lá ó Rodas, achas que os cabrões andam por aqui a tentar caçar-nos?
Camarada, os nossos está no ir, não faz barulho, que os outros estão à coca, esses não são maçaricos, já tem experiência da mata, já comeram o pão que o diabo amassou, como eles dizem e nós aprendemos deles. Escapam, não pisam no fio da armadilha, e os patrícios que lhes guiam também lhes ensinam como sobreviver aqui.
Se se encontrarem vai ser uma porra. Mesmo que não entendam exactamente porquê, só lhes restará apontar, carregar no gatilho, tirar o anel de segurança, lançar a pinha metálica em arco, agachar-se para não dar alvo, ou para apontar o morteiro. Borrar-se e vomitar do cagaço que os invade, conquista fácil, quem tem cu tem medo, a vida são dois dias e a morte é coisa certa, a única que a vida tem. Ou não tem.
Sei lá se chego ao Natal…
Tomara que desta vez sigam trilhos separados e divergentes. Ó Sousa, abre-me bem os olhos, incluindo o traseiro, o sacana do tempo não anda, fodam-se os relógios, andou uma mãe a criar um filho prá desgraça. Vem-lhe à cabeça uma frase que viu gravada na porta desconjuntada da latrina, no quartel: Quanto tempo demora um minuto a passar depende muito de que lado da porta da cagadeira um gajo se encontra.
O Lemos, pasteleiro na vida civil, que quer passar à peluda em Luanda, Angola é que é, do outro lado já deu o que tinha a dar, diz muito em surdina, os filhos da mãe têm ouvidos de tísico, agora o que caía bem era um bolo-rei. Está parvo, ou quê? Estamos em Junho, o bolo é do Natal, como as filhós, o presépio e o pinheiro. E o Pai da época. Sei lá se chego à consoada…
O negro Julião Kitombe é o mano da RPG a que os brancos chamam lança granadas foguete, ou bazuca. Ele a trata com carinho, lhe afaga o cano como quem acaricia mama de mulher de bico esticado e duro pelo cio. José Oliveira é mulato, filho de um frequentador de sanzala da Huila e de menina de ventre liso e aconchegador. Tem uma mauser de telescópica ou assim, lhe deu o pai pra caçar elefante, ela caça branco na picada.
Ao longe ouve-se a trovoada, faíscas ziguezagueiam no céu, abrem-se as comportas lá de cima, despejam águas quais quedas do duque, em bátegas que chicoteiam a noite entretanto caída. Caralho, aqui nem se dá por que o dia acabou. O sol põe-se sem a gente se aperceber, a não ser pelo vermelho dele. Alto lá; vermelho não, encarnado que, para o caso é mais alaranjado. E a tropa prossegue, encharcada até aos ossos, a chuva e a lama entra-lhe pelo pescoço e aninha-se nas botas cardadas.
Vamos embora, compadres, eles já não chegam no nosso caminho, outra vez será, hoje não tem guerra, não estava marcada, nem tem livro de ponto como a Diamang tem. Nós voltamos no quimbo, é mais acampamento, aiué, tem lavra no lado, não se preocupa, eles não vai lhe obrir, está bem escondido.
Salazar e Neto
Salazar e Agostinho Neto tornam a divergir nas ideias e nos percursos, aqui mergulhados nesse magma verde-verde que assentou praça no definido das mafumeiras. Interrogam-se as duas partes: mas que cagada de guerra é esta, feita de ludíbrios, de truques, de cartas na manga e muito viciadas? Nenhum sabe responder.
Os soldados nem sabem o que é essa trampa do colonialismo, meteram-nos no ventre ajoujado dum navio a abarrotar, depois de os terem treinado em escasso tempo para matar e morrer. Em nome de quê? A maioria deles nem se apercebe de que não percebe. Falem-lhes no Estado Novo - em que já nasceram – ou na Oposição e não sabem nada. Uns poucos, talvez, os que mais sabiam já desertaram a salto para a estranja.
Essas coisas não são com eles. O Benfica do Eusébio, a Amália Rodrigues, a Senhora de Fátima, até mesmo o Sporting do Seminário, o Juan, não o dos padres, o Porto do Pedroto, a Madalena Iglésias, o António Calvário, esses, sim dizem-lhes coisas, têm-nos nas cabeças e mesmo nos corações. Reuniões secretas? Onde? Pelos cartazes apenas sabem que o boato é crime e fere como uma lâmina.
E os nacionalistas? Talvez saibam – quiçá porque lho disseram – que estão a combater pela terra deles, o que, de qualquer forma, é muito mais importante, até mesmo empolgante, do que a pergunta que os tugas se fazem: porque raio estamos nós aqui? Muitos guerrilheiros (para os brancos são terroristas) vieram para a floresta por escolha. Mas outros também estão em comissão de serviço, como os seus adversários.
Não fosse a estupidez de Lisboa e a sua intransigência alvar, a ganância das famílias milionárias, a demência da clique salazarenta - e outro galo cantaria. Não fora o desejo de libertação, à mistura com interesses rebuscados e recônditos, a aspiração de tomar o destino nas próprias mãos – e o mesmo galo cantaria, claro, de forma diferente.
Assim, restam as rajadas, as explosões, a pólvora, os amuletos, as pagelas do Santo Padre Cruz, as G3, as facas de mato, os canhangulos, as catanas. O que é quase nada, porém suficiente para que os homens se chacinem as mais das vezes sem descortinarem porquê. O ideal seria que os donos das tropas, de uma e da outra parte se sentassem, conversassem, discutissem e evitassem a sangria. De sangue, não de vinho. Mas, infelizmente…
Dos dois lados da fronteira entaipada a verdes ambos se afastam. Os nossos e os nossos. O sangue tem de esperar nova oportunidade. A metralha ficou esquecida no canto da gaveta de terra vermelha. Vermelha, não; encarnada...
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6 comentários:
O Chefe está de volta às grandes prosas. Ainda bem!
Um abraço do JS
Concordo com o joliva_santos. O Chefe é mesmo bom! E mais uma crónica de se lhe tirar o chapeu. Imparável!
Dr. Antunes Ferreira
Você escreve realmente muitíssimo bem. Tem de pôr na rua um livro, se é que já não o fez. Porem, creio que não, pois eu sou um amante da ficção e frequentador de tudo o que é livraria, e não me recordo de ter visto alguma obra sua.
Mas, tem de o fazer. Uma tal prosa viva, elegante, sonora, perfeita, deve ser posta à disposição dos muitos leitores que ainda existem. Faça-o, meu caro Amigo. E muitos parabens. Não se admire se lhe disser que o Senhor está, para mim, ao lado de um Jorge Amado, de um Craveirinha, de um Luandino - ou do Saramago, da Lídia, sei lá, do Eça.
Mais um bom escrito.
Um magnífico texto ou o HAF no seu melhor!
Já to tenho dito: as tuas histórias da guerra de África justificam - melhor, impõem - publicação em livro.
Um abraço amigo.
Mais um bom artigo da sua prosa,parabens.
Depois do regresso da guerra, participei nos anos 70 num núcleo de um Casa de Pessoal e escrevi um pequeno artigo sobre a Guerra Colonial,passado comigo,para ser publicado no Boletim da Casa de Pessoal, que me permito incluir no seu Blog.
"Um buraco na Mata"
Naquela madrugada carregada de cacimbo, em que as espinheiras nos fustigavam o rosto, nenhum de nós poderia imaginar o desfecho da operação que nos foi confiada.
Na vespera uma pequena reunião no gabinete do Comandante de Companhia, meia dúzia de milicianos tinham sido incumbidos de sair, pela calada da noite, na companhia de um sub-inspector da pide e de um guerrilheiro capturado, com a finalidade de reconhecer o local habitual de reunião dos elementos do MPLA, que reuniam nas margens do rio Bengo, apenas a 85 Kms de Luanda...
Os preparativos foram rápidos e bastante cómicos, pois era de "morrer a rir", vendo estes milicianos, já velhinhos com 20 meses de comissão no lombo, equipando-se para sair e de que maneira.
Pois era necessário enganar o inimigo, por isso o calçado eram ténis e sandálias e até se aproveitou a existência de dois furriéis de cor para irem descalços, isto com a finalidade de confundir o adversário, no caso descobrisse o nosso rasto.
Ao fim de duas horas de marcha, já nós próprios nos interrogavamos acerca do que ali faziamos, pois o guerrilheiro esperto que nem uma onça, lá nos ia levando sempre em volta do mesmo morro. A manhã surge e Sol começa aquecer.
- Merda para isto! lá vai refilando o bonacheirão do Victor, que farto de mata e minas, só desejava regressar ao sossego do seu quarto, na companhia de um CUCA e da sua da bela mulata.
O guerrilheiro, esse decerto que no seu íntimo ia gozando com os militares, pois as voltas ao morro lá se iam repetindo e o calor cada vez apertava mais.Uma operação que foi planeada para duas ou três horas, já ia em perto de seis. Os pés escaldavam tanto como as nossas cabeças e a língua parecia um pedaço de cortiça. Quanto ao pide, esse de tempos a tempos, ameaçava que matava o "cabrão do negro", se não nos levasse ao objectivo.
Ao fim de oito horas de luta contra o cansaço, a sede e a teimosia do pide, os ilustres militares chegaram à conclusão que estavam perdidos!
E toca de recorrer à rádio, para nos safar daquela embrulhada toda. Depois foi o regresso, com o guerrilheiro às costas (ele era coxo,ferida velha feita pela nossa tropa em tempos) e o pide com as suas ameaças...
Dois ou três dias depois, o furriel de serviço foi dar a sua volta habitual pelo quimbo e pelo posto civil e qual não é o nosso espanto, quando ele entra de rompão pela messe e sentando-se na primeira cadeira que encontra, nos informa apavorado:
- É malta então o cabrão do pide levou o guerrilheiro para a mata, obrigou-o a abrir um buraco e depois enfiou-lhe um tiro na cabeça, só porque daquela saída que fez connosco nos levou à certa.
Angola/Catete 1970
Perry da Câmara
P.S. Já nos encontravamos no Grafanil para embarcar para o "puto", quando tivemos a noticia que o pide, daquela operação tinha sido promovido e tinha ido para Luanda comemorar e no regresso a Catete já bem bebido, enfiou-se contra um camião de um MVL e "bateu as botas..."
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