quarta-feira, maio 23, 2007





Nome de gente

Antunes Ferreira
Podia ter sido completamente diferente se o sacana do padre não estivesse perdido de bêbado durante o meu baptizado. Diz quem assistiu que até ia caindo na pia baptismal, por mor de um bordo que levou o sacristão Josué de cangalhas. Se este não se tivesse encostado à parede e deitado a mão à batina do missionário teria sido o bom e o bonito.

Eu te baptizooo, soluço, em nome do Pppai, do Filho e do ‘Sprito, soluço, Santoooo. Com muitos arranques à mistura, língua entaramelada, arrotos repetidos. Os assistentes cochichavam aiué, o gajo está mesmo enrolado, manos, talvez bangasumo (1), talvez vinho de capacete, talvez uísque SBELL, quem sabe se não uma 1920, uma Mosca ou um Constantino, a fama que vem de longe. Houve até patrício que falou em cadingolo (2) ou quissângue (3), mas mandaram lhe calar. Aka!

O certo é que o oficiante, independentemente da dimensão da carraspana, decidiu que me havia de chamar Luís Miguel. Era um aficionado pelos touros e adorava, como mais tarde vim a saber porque me explicaram, o espanhol Luís Miguel Dominguín, toureiro de raça que casaria com a actriz italiana Lúcia Bosé. Vá lá, só fiquei com os dois primeiros nomes aos quais acrescentou de Carvalho, apelido dele, padre.

Os presentes pensaram que a coisa estava completa, até a Nha Júlia comentou em voz alta, nome bonito esse, nome de branco que fica bem também no preto. Mas o cura, entre gargolejos e em risco de adornar, não foi nisso. Toma. Juntou-lhe Hulatamba, do padrinho, vindo do quimbo para assistir na cerimónia.


Por causa do filho das putas fiquei sendo Luís Miguel de Carvalho Hulatamba. Nome esquisito, mais parece de mulato, porque mistura branco e preto. Quando fui na tropa, no RIL, pedi para que me mudassem o nome no cartão militar. Que nada, resmungou o Capitão Mascarenhas, goês de Pondá. Que no bilhete civil estava assim, assim ficava.

Hulatamba Perneta

No mato me chamavam só de Hulatamba. E eu que queria ser apenas Luís Miguel de Carvalho, sem sombra de matador – nem na mata, nem na arena - , nunca me habituei naquela coisa. Estúpido sacerdote, esse branco, além de burro e matumbo (4), gago e malcriado. Fui ferido na Pedra do Feitiço, me retiraram no Hospital Militar de Luanda, fiquei com a perna esquerda mais curta do que a direita, pela operação. E logo, Hulatamba Perneta. Para o que um homem está guardado.

Então, passaram anos, chegou a independência, esperança nova, a ver no que dava. Guerra. Acordos do Alvor e outros…Tudo se envolveu na porrada mais dura. Eu tentei passar ao lado, mas não dava, Outros andavam no capiango (5). Eu não era pra isso. Coisas da pessoa é mesmo da pessoa, não dá nem pra roubar. Na base do esquema, me desenrascava. Solteiro era, solteiro fiquei, umas meninas, namoradinhas, casar? Vai no tuje (6)!

Uma tarde, na rampa do liceu, me encontrou o Francisco Kalungo, meu colega na escola da dona Mariquinhas, ali junto ao Prenda, miúdo então do Quibaxe, não ia na tropa, lhe faltava um braço, desastre de motorizada na ilha, quimbanda (7) não presta. Você sabes que está a se organizar um grupo de amigos lá no Casa Branca. Grupo? Amigos? Para quê? Se eu lhe diz não contas nada a ninguém, me prometes? Lhe prometi.

Apoiar a UNITA. Já tem muita gente. Tem cabeça de pungo (8), tem chicoronho (9), tem cabinda (10), tem calcinha (11), tem bailundo (12), tem cabeça de peixe (13), tem essa gente toda. Até tem camanguista (14) de Malange. Você devias vir, mano. O Presidente Jonas lhe vai agradecer a sua ajuda. Eu anda nas lonas , espero ter melhor vida depois de ganharmos. Lhe assegurei que ia. No dia de São Nunca, à tarde.

Pópilas! (15) ‘Tava tudo estragado. Ia acabar toda a gente na porrada, nem pirão teria para comer. Muito menos moamba de capota (16) com quiabos, muito gindungo e funje de bombó (17). Jamais ia lhe ver de novo. U uekute, olongaiaua viossi viavola, diz em umbundo o provérbio: para quem traz a barriga cheia, toda goiaba tem bicho. Tudo estragado.

Meter em política, não. Política é coisa de rico ou de ambicioso de poder. Eu queria só viver em paz, ganhar para comer nem que fosse meia dúzia de bananas, ginguba (18) seca, eu sei lá o quê. Não queria puxar pelo Galo Negro, como não queria pelo Holden, nem pelo José Eduardo. Esses sim, andavam na concorrência, o Savimbi seria morto na mata. Tudo estragado.

Democracia – no Puto

Hoje vivo na Falagueira, bazei de Luanda, muita maka, muito tiro, muita confusão. Falam agora de democracia, o povo lhe aplaude, mas não sabe mesmo o que é. Democracia só aqui no Puto. Angola tem muito que aprender. Eu vivia no bicanjo (19), lá para os lados de Catete, arredor assim mais calmo que a cidade. Quando começaram na zaragata, peguei nas bicuatas (20) e comprei o bilhete do avião, só ida, volta não, e alem disso era mais barato.

No aeroporto de Luanda foi tudo complicação, só na base do esquema me safei, paguei no polícia uma grade de Cuca inteirinha. Já em Lisboa as coisas foram mais fáceis, tinha o meu BI renovado na Embaixada portuguesa, era cidadão nacional, vinha conhecer a minha terra e, se possível, ficar por cá. Não era estrangeiro, me deixaram passar, nenhum impedimento.

Mais. Fui no Distrito de Recrutamento central, tirei uma certidão do tempo de serviço em Angola (naquele tempo era nossa, do Salazar, do Portugal) três anos, quatro meses e dois dias, as horas não fixei. Com ela fui procurar emprego. Um senhor me disse para ir na obra dele, esta a construir um prédio de dez andares na Reboleira, com licença da Câmara para oito, alvará e tudo. Lhe disse que não era trolha. Ele insistiu, fui.

Comecei de transportar areia e tijolo num cangulo que aqui chamam carrinho de mão. Depois trepei no andaime, na ajuda aos pedreiros e me fui habituando a pegar na colher e a usar ela. O mestre que se chama Fernandes me disse que eu tinha habilidade para esticar a massa e levantar paredes. E assim foi.

Daí a estucador foi um pulo. Outro fez-me chegar a apontador de obra. E mais outro a encarregado. Poucos meses depois, o Senhor Álvaro Fernandes me convidou para mestre-de-obras e me deu sociedade, o que aceitei. Entretanto ia catrapiscando uma menina cafusa (21) de maminhas empinadas, bicos castanhos, carapinha em cima, carapinha em baixo e bunda pequena, o que não sendo normal em africana, ainda que clara, me atraiu definitivamente. Casámos de papel e tudo. Na igreja e no registo. Em dois anos e meio, dois filhos. Hoje são seis, um morreu no parto, escapou a mãe. E oito netos. Suku onene. Deus é grande.

A minha princesinha

Tenho a minha casa, uma vivenda boa, eu lhe construí com as minhas mãos e a ajuda dos amigos.



Vou nos sessenta e poucos. A carapinha salpicada de pimenta e sal. O bigode também está embranquecer. Os filhos e as famílias estão muito bem. Os netos são uma perdição, principalmente a Carla, com sete anos, avô vamos ao futebol? Vamos. Como essa menina, Deus a cubra de bênçãos, sabe do Estrela da Amadora – e dos outros!

O pai dela, o meu filho Arnaldo jogou no Belenenses, era ainda um puto, ponta-de-lança, cada vez há menos, mas uma lesão no menisco lhe impediu de continuar uma carreira que se antevia muito boa. A minha princesinha não jogou, mas sabe muuuiiiito. Uakuata kessindê kandi lovava, também se diz em umbundo. Mas tem igual em português: filho de peixe sabe nadar.

Ludovina, a Vina, minha mulher, já nascida cá no Puto, natural da Cova da Piedade, disse-me que gostava de ir em Luanda, conhecer Angola, os pais eram de lá, está com cinquenta e picos, mais picos que cinquenta, queria lhe dar essa alegria. Euros, tenho. Mas não tenho vontade, não tenho desejo. Um dia será, quem sabe quando…

Uma informação, só: agora continuo a me chamar Luís Miguel de Carvalho Hulatamba. Na Conservatória dos Registos Centrais me disseram, ainda ontem, quando lá fui pela vez trinta ou mais, que para mudar o nome tem de ter novos padrinhos, certidões muitas, declarações ainda mais. Reparem só. A minha Carla é só de Carvalho. E os outros também. Hulatamba não tem. Só eu.

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(1) «Vinho» de abacaxi
(2) Aguardente de palma
(3) Aguardente de milho
(4) Provinciano, saloio
(5) Roubo, andar a roubar
(6) Vai à merda
(7) Feiticeiro, curandeiro
(8) Natural da Gabela
(9) Natural da Huila (Sá da Bandeira)
(10) Natural de Cabinda
(11) Natural de Luanda, emproado
(12) Natural do Sul
(13) Natural de Moçâmedes
(14) Traficante de diamantes (camango), especialmente de Malange
(15) Porra! Chiça!
(16) Galinha do mato
(17) Mandioca
(18) Amendoim
(19) Biscates
(20) Bagagens
(21) Preta muito clara

8 comentários:

Anónimo disse...

Eu de África não conhecia nada. Só o medo que tive do meu irmão na guerra - e mais os primos, os amigos do peito, os noivos das amigas, os conhecidos do bairro. Voltaram todos, graças a Deus, mas para mim África continuava a ser coisa de literatura e cinema. Até agora, à prosa óptima do Senhor Antunes Ferreira. Vou começando a conhecer a África-de-verdade nas suas letras. É bom e suculento. Bem haja.

Anónimo disse...

Eu sou Angolano preto. Há quem diga «de côr». Qual? Só se for castanho... Ou negro. Sempre me ensinaram que negro é o carvão. Vivo em Portugal vai para uns 22 anos. Aqui estou feliz com a minha família. E também sou Português, com muito orgulho.

Bendito seja o Senhor Doutor Antunes Ferreira, que já conhecia de «A Palavra» do Renato Ramos de Luanda, do Rádio Clube, da Rádio Ecclésia do padre José Maria, da Província de Angola do Jaime de Figueiredo, do «Miau», (que será deito do Chico Orta?), do «Lacrau» e de mais alguns da Angola do antigamente.

Bendito seja, repito,Senhor Dr. pela crónica que acabo de ler e me fez chegar as lágrimas aos olhos já cansados, com 7,5 e 6,5 dioptrias. Parece que me estou a ver ao espelho.

Que bem escreve, Senhor Dr. E que bem usa a Língua Portuguesa à nossa maneira. Quantos anos esteve por essa terra riquíssima mas desnorteada? Penso que muitos, pois apanhou tudo, inclusivé os termos, os ditados, mesmo tudo.

A história da minha vida é igualzinha a esta que o Senhor Dr. inventou esplendidamente. Acho que oseu nome se devecolocar a par de um Pepetela, de um Luandino, de um Cardoso, e de tantos outros.

Pelos vistos, sem ser faccioso nem aviltante nem pender para qualquer dos lados da desgraça angolana. Se foi para isto que se lutou pela Independência, podem limpar-se aos mãos às paredes. Nem colonialismo nem ditadura dos filhos da terra.

Tenho continuado a lê-lo, no DN na Bola e noutras publicações. A ouvi-lo na TSF e a vê-lo na RTP e na TV2. Também lhe segui os passos no Ministério das Finanças. Tudo aquilo em que se mete (ou o metem) tem-no feito de forma exemplar.

Só lamento que seja do PS. Mas, ninguém é perfeito... Fico à espera de um romance seu sobre a nossa Angola. Caté.

Bem haja, grande Jornalista!

Anónimo disse...

Xi patrão. Você é bom mesmo. Desculpe-me a ironia, Antunes Ferreira. Nem pensar em escrever como você o faz - e com conhecimento de experiência feito. Parece-me ter voltado à Angola do tempo colonial, mas também de hoje. Gostei muitísimo.

Anónimo disse...

Com estas coisas o Senhor faz-me recordar as sandes duplas do Tarik, o Punta del Pazo, na Combatentes, os Negoleiros do Ritmo, as bifanas dos Humbertos, pai e filho, na Marginal, os manos Silvas do Poço da Morte, o restaurante da Mulemba, osunaleiro do Café Gelo, a Portugália, Quinaxixe e muito mais - para só falar em Luanda.
Há 33 anos aqui no Puto, eu que sou camundongo baptizado na Sagrada Família, vou-me esquecendo pois os anos são implacáveis.
Por isso tudo, muito e muito obrigado, Antunes Ferreira.

Anónimo disse...

Muito bem escrito, como sempre.

Anónimo disse...

Comparo-o a um dos filmes que mais me impressionaram: África Minha. Estou a lê-lo e a dar testemunho de duas coisas:
a) sabe do que escreve e muito bem;
b) Tem uma prosa excelente, do melhor que conheço.

Anónimo disse...

Olá amigo.
Mais um bom artigo sobre a realidade da actual Angola.
O povo vive em muceques, em casas de colmo, madeira e telhado de zinco quando têm...
Não tem água potável, muitas vezes nem luz e gaz.As ruas estão uma desgraça, com o lixo acumulado por todos os lados, não existe recolha de lixo e as doenças espalham-se pela cidade.
Mas os ilustres membros do Governo
vivem em boas casas e com segurança privada...
Por fim o democrata Presidente José Eduardo dos Santos, encomendou mais um avião de luxo, no valor de milhares de $USA!... Para as suas passeatas ou então Jpara a esposa ir ao Brasil, às compras...
Perry da Câmara

Camilo disse...

Para Mateus Adão Casombo...
Fiz milhentos desenhos para o "MIAU"... e para o "Notícia".
Vi nascer "A PALAVRA" desse grande jornalista (maluco) Renato Ramos.
Sou o Camilo.
Um Abraço.