sexta-feira, julho 07, 2006



Uma Pedra do Feitiço


Antunes Ferreira
C
hove. Chove muito. Chove em catadupas. Uma verdadeira Niagara. Um bando ignóbil de meteorologistas mancomunado com um tal Pedro, porteiro celestial encarniça-se contra mim. Os pulhas por certo abriram as comportas da barragem das Nuvens. Trata-se de traição oriunda de tais conluiados, ao pé dos quais os Quarenta do João Pinto Ribeiro são (foram...) criancinhas de infantário.

Venho de Santo António do Zaire, ou mais precisamente da Pedra do Feitiço a que chamam também Emídio de Carvalho, nome de tenente. Da cidade da foz do rio fui até lá para transportar uma peça de artilharia – sem munições. Esta puta desta guerra tem singularidades que não lembrariam nem ao mais pintado. Dou por mim a pensar com os meus botões que a peça em causa é mais de teatro... que de militança.

Porém, os estrategas militares entenderam que um canhão desactivado, desactualizado, degradado, até mesmo depravado, plantado na Pedra seria um excelente argumento para «dissuadir o IN que por ali tentasse passar» – e passava. Vá-se lá dizer-lhes que não... Anote-se: IN em língua castrense quer dizer inimigo. Na picada, o tuga quer lá saber dessas subtilezas fardadas. É o turra e ponto.

O Zaire é um rio majestoso. Subi-lo de Santo António até Nóqui, já na fronteira com o Congo Kinshasa, dizem-me ser uma viagem inesquecível, pela grandeza dele, mas também pela beleza selvagem da mata que o abraça, pelos matizes de verde, enfim. Os tipos da Marinha andam por lá, no troço angolano, eu vi-os, nas suas lanchas, com nomes fora do habitual, a Rigel, a Pollux, a Espiga, a Régulus e outras. Disse-me o segundo tenente da Reserva Naval Pires Martins que os percursos vão das muílas ao canal internacional e as ilhas.

É da Pedra que trago no MVL – creio que já desvendei a sigla, mas, na eventualidade de..., são as colunas de reabastecimento, Movimento de Viaturas Logísticas – um grupo de Flechas e um prisioneiro alegadamente pertencente à UPA. Os Flechas são uma verdadeira tropa negra, auxiliares da PIDE, com pré a sério e direito a saque. Temidos pelos patrícios, são terríveis em combate.



Um prisioneiro de joelhos

O
preso, vem no camião número 12 da bicha de veículos que, incluindo os burros-do-mato e os jipes da tropa, regista 28 viaturas. De joelhos, (em permanente oração?) tem os pulsos bem atados aos tornozelos não vá o diabo tecê-las. O Mendes, que é o subinspector da polícia política naquelas bandas é baixote. Chamam-lhe o Mendinho, trocadilho com o dedo mais pequeno. Recomendou-me a maior atenção ao homem que diz chamar-se Sabonete João, mas não tem bilhete de identidade a confirma-lo. O sacana, bem apertado, vai cantar que nem um melro. Em Luanda sabem da poda, disse-me o mini-pide.

O MVL pára no Caxito, onde está sediada uma companhia comandada pelo capitão miliciano Baltazar, meu colega no Camões, fiteiro, amante de copos, muitos, e de mulheres diversas, cada cor seu paladar como se diz dos chupa-chupas. Estamos em Novembro. Faz um calor filho da mãe proporcionando à gajada um banho de suor, de imersão. E à borla.

No lado direito de quem entra na parada do quartel, há um embondeiro que luta desesperadamente contra a canícula e, assim, proporciona uma sombra aveludada que, assim, serve de refrigério aos que se cansam, justificadamente, da torreira do Sol. O pessoal salta da caixa da Berliet, e um dos Flechas pergunta-me se pode pôr o preso Sabonete à sombra. Não vejo nenhum inconveniente, no que sou acompanhado pelo Baltazar.

Eu fica na guarda do gajo

Mas, o lançador de sugestões não se fica por aqui. Se o meu tenente não lhe vê inconveniente eu mesmo fica na guarda do preso... Que maricas de inconveniência. Pois que fique – e que lhe fique bem. Viramos-lhes as costas, a caminho do comando, em busca de fresco e de whisky com dez quilos de gelo e muita soda. O deserto do meu céu-da-boca, na expectativa do refrigério, já nem o sinto, com tal receita a escassos metros.

Ainda mal eu começo a perguntar ao Baltazar que tal vão as coi... e um grito desumano, faz-nos olhar para trás. Não quero acreditar no que vejo. Horrendo e verdadeiro. O preso esperneia aos arranques, parece um repuxo, jorram-lhe golfadas de sangue da garganta, que já se espalham pelo chão, qual vampiro sequioso. Ao lado, o Flecha, direito, na boca uma massa vermelha e branca, pingando também sangue em abundância.



Dante e o Inferno

Ah meu grande cabrão, atiro-lhe enquanto o agarro pela gola do camuflado. Ah meu grande cabrão! Que te deu na mona para fazeres uma tal cagada?! Voa-me a mão direita para as trombas dele, e não se defende, limita-se a apanhar, com a boca ainda cheia de carnes, traqueias, laringes, eu sei lá que mais. O Baltazar agarra-me, ó pá não me copules, ainda matas este filho de uma carrada de putas e depois és tu que te fodes.

A maralha vai-se juntando à volta, numa expectativa próxima do linchamento, de olhos desorbitados do espanto comum. O preso, esvaído, já não esperneia, ainda peado, mas já nem se mexe. Morreu. De morte macaca. Dos lábios grossos do Flecha, continua a pingar um misto de sangue e cuspo. Cospe para o lado, atirando fora os gorgomilos do assassinado que arrancou com uma só dentada.

Mais calmo, ou menos histérico, volto a perguntar-lhe, enquanto o Baltazar lhe apreende a G3 e outros apetrechos bélicos, porque raio que o parta fez aquilo. A imagem entra-me pelas pupilas dilatadas e anicha-se algures, em mim, que não localizo nem me dou ao luxo de o fazer. É um pouco como uma célula cancerosa. As metástases estão difusamente por lá, mas nunca se sabe bem onde.

O Flecha, que nem uma seta: «Meu tenente, eu fez nele o que o bandido fez no meu pai, no nosso sanzala, em Sanza Pombo, no ano da grande maka: Ele atacou com catana, eu fugiu na mata, era miúdo, deu pra safar. Vi, dentro do capim, esse bandido fazer o que eu lhe fez no soba que era o meu pai. Lhe arrancou as goelas com uma dentada. Eu tinha só oito anos, mas viu. Jurou mesmo que se algum dia lhe apanhasse, lhe faria o mesmo. Hoje, lhe apanhei!»

Dante Alighieri enganou-se quanto ao Inferno. É hoje, aqui.

3 comentários:

Anónimo disse...

Carissimo Ferreira,

Como deves saber, quando estive no "mato", a minha zona operacional era formada pelo quadrilátero Sazaire, Benza, Sumba e Pedra do Feitiço.
A leitura do teu artigo fez desfilar na minha memória a uma velocidade vertiginosa imagens,acontecimentos,pessoas, lugares, factos, enfim, uma série de coisas, na maior das desordens cronológicas e sem qualquer limitação.

Quisera eu ter botado no papel o conteúdo dos cagagésimos de milésimos de segundo que durou o filme, e seriam necessárias umas boas horas se não mesmo dias.
A porra é que eu sou um preguiçosao inveterado, ou por outra, só faço o que obrigatoriamente tenho de fazer. Incluindo escrever. Infelizmente.

No entanto a extraordinária precisão e claresa das imagens fizeram-me retornar ao passado e reviver momentos vividos com uma intensidade tal que até me surpreendeu.

Queria incluir neste comentário algumas fotos mas não fui capaz de o fazer. Vou mandar-tas via e-mail e tu poderás incluir algumas se quiseres.As outras guarda-as porque
quando, ou melhor dizendo, se um dia eu conseguir vencer a preguicite crónica e escrever umas pequenas memórias da minha "guerra", tu ja terás as fotos.E depois eu mando-te outras.

Um abraçao do ex tenente miliciano, engenhocas , mestre, preguiçoso e actuamente reformado. Porra que é muito...

Anónimo disse...

Li, com interesse, o seu relato do acontecido, e tal como ao Fernando Bandeira aconteceu, também comigo se passou.
Mil recordações da época e do lugar PEDRA DO FEITIÇO, minha morada por cerca de dois anos (1960/1952), cujo Posto Administrativo chefiei.
Tem este comentário o fim de o cumprimentar pelo relato, e serve para corrigir um pequeno erro (que até pode ter sido ocasionado por gralha de digitação.
O Tenente (da Aeronautica) que deu o seu nome ao antigo Posto Administrativo, era, na verdade,EMÍLIO DE CARVALHO, e não EMÍDIO DE CARVALHO como por lapso refere.
Um abraço do antigo Chefe de Posto do Quadro Administrativo de Angola (hoje, aposentado a viver na Bahia -Brasil)
JORGE ALBERTO R. MARQUES PINTO
jarmpinto@uol.com.br

Anónimo disse...

foryphyTambém a mim me trouxe várias -e muitas- recordações o node PEDRA DO FEITIÇO.
Entre 1960 e 1962, fui lá o Chefe do Posto Administrativo, cuja área era conhecida por EMÍLIO DE CARVALHO 9 e não EMÍDIO DE CARVALHO, como certamente por gralha de digitação escreveu.)
Este EMÍLIO DE CARVALHO, foi um Tenente (da aeronautica) que, tripulando um TECO-TECO, aterrou na ilha existente entre BOMA e a povoação da PEDRA, para demonstrar aos "belgas" que a reivindicavam como território do seu CONGO.
A partir daí, estava lá hasteado o Pavilhão Português, quer de noite quer de dia....
Era isto só que pretendia dizer-lhe.
Um abraço.
JORGE ALBERTO R. MARQUES PINTO
jarmpinto@uol.com.br