terça-feira, julho 04, 2006




Oficial de Noite

Antunes Ferreira
Ter ido para Angola com a farda do Exército enfiada não me parecia bem. Antes do mais, porque eu não havia licitado, muito menos comprado, aquela guerra. Bem pelo contrário. Até defendia o direito inalienável à independência não só daquela colónia, mas de todas que Portugal matinha, alegadamente para defender a «civilização ocidental.» Para o que, de resto, ninguém o tinha mandato, sequer mesmo passado delegação.

Chegam-me aos lobos cerebrais estes pensamentos sem considerandos, enquanto faço por não dormir, na salinha de Oficial de Dia (porra, devia ser era Oficial de Noite e com insónia). Mesmo assim já passei por umas brasas apagadas, pois com a caloraça que faz, nem cinza quente, quanto mais carvão. Na Rádio Ecclesia (do padre Zé Maria) os Beatles vivem no Yellow Submarine. Pois que lhes faça bom proveito.

Deixem-me que vos diga: eu até gosto à brava dos Carochas de Liverpool. Mas no mornaço pesadão que nos envolve, encapuçado em cacimbo e de serviço na CCS/QG – iniciais que querem dizer Companhia de Comando e Serviços do Quartel-General – da RMA (mau; é a Região Militar de Angola, foda-se!) bem me importam os liquidificadores de corações imberbes de virgens & arredores.

Puxo umas fumaças tossicadas de um Hermínios. A malta chama-lhe o preto em maço... Sempre gostei de tabaco preto. Porem, o magro soldo de que sou vítima não me permite grandes folestrias. Gitanes? Excelentes, mas nem pó. No tampo da secretária, pacificamente metida no seu coldre, situa-se a Walther regulamentar, qual ilha no oceano de linóleo preto. Gotinhas de suor perlam-me a testa. O lenço ensopado é como a água com sal: já está saturada; já não aceita mais. Que filho da puta de tempo.

Indígena ou autóctone?




Depois de amanhã é Dia de Santo António. Já se estendem pela cidade, sobretudo por São Paulo, Quinaxixe e Ilha, uns quantos festões multicores, desmaiadotes, até mesmo uns balões/harmónio quase prenhes e serpentinas à brava. Preparam-se as sardinhas importadas em gelo, directamente do Puto ou da África do Sul. O sal, esse, é local, presumo. E, tanto quanto sei, o carvão é igualmente indígena. Alto. Indígena não, que o Acto Colonial já não está em vigor. Autóctone. Autóctone é que é. O Imposto de Palhota agora é Imposto Geral Mínimo. A bem da Nação.

Das casernas vem um rumor surdo e negro. A noite ajuda, está escura como a alma de um condenado à cadeira eléctrica. Os soldados revolvem-se nas tarimbas. Também eles sofrem com o calor que se infiltra por entre os lençóis e pela pele adentro, por mais carregada que seja. Quer metropolitanos, quer pretos sofrem dos mesmos males e das mesmas carências. E, se estas, qualquer mão de dedos apertados resolve, os outros fiam mais fino. E se a palma tiver pelos...

O santo casamenteiro é bivalve: tem duas conchas, portanto. Lisboa e Padova, que a malta usa dizer Pádua. Para nós, nados na capital do «falecido império, RIP» o gajo é alfacinha, sem margem para dúvidas. As bilhas das namoradas são de Alfama e ponto. Por tais bandas é que a festa é. Só de pimentos pr’assar, ó freguês, trouxe três sacos da Ribeira. E o tintol é do Cartaxo, daquele que tinge as malgas.

Por aqui, desconsoladamente, é de capacete, vem em garrafões de dez litros bem medidos, selado no bocal a gesso e, por vezes, recoberto por plástico, verde para o branco, vermelho para o tinto. Na recruta, sita à Mata da Marinha, Guincho, ainda não havia o meio caminho andado, corria que a vinhaça levava cânfora para impedir a tusa. Quem sabe? Quem sabe, até, se por estas bandas de quentura não acontece o mesmo com os do tal capacete?

Furriel Jonas, o sem baleia

Pronto. Lá vem o Morfeu-de-trazer-por-casa lixar-me a mona. Estou quase a ressonar, já se me semicerraram as pálpebras. Meu alferes! É o Jonas, furriel miliciano, sargento também de dia e de noite, mal comparado, uma criada de servir, ou uma mulher da vida. Então, ó meu grandessíssimo sacana: que se passa para me vires interromper o discurso do método às duas da matina?







Tinham chegado uns tipos para passar à disponibilidade. Os gajos querem pôr-se nas putas com a maior rapidez, diz o Jonas que, de tão amarrotado, deve ter vindo directamente da doca da baleia bíblica. E que tenho a ver eu com isso? Vossa Senhoria – o «profeta» é um bardino, sem respeito pelo galão e pelo tratamento correspondente – nada tem a ver, a não ser um cabo a quem falta o dedão do pé direito e, pelo ar da cicatriz, que deve ter-se pirado recentemente.

Homessa! Tu julgas que eu sou ortopedista ou quê? Meu alferes; neste caso devia ser pediatra, de pé. Olá, o safardana galhofa. Bem, se tanto insistes e a pedido de diversas famílias, vamos lá ver essa famosa extremidade de pata. Que o pôs, torna o Jonas, gandulo da Rua da Misericórdia, e por estas bandas frequentador assíduo do Bairro Operário e do muceque Rangel. Gajas, claro.

Vamos. Na parada, aliás estreita, há um som gutural que por ali plana, entrecortado de risos e de fumo de cigarro de palha – ou de liamba, tudo embrulhado em humidade q.b.. Os homens, uns vindos da mata outros do Hospital Militar, reunem-se em pequenos grupos, cochichando e antevendo as delícias da vida civil. Um pouco mais afastados estão uns quantos de cócoras, jogando à lepra. Quase nem dão por nós. O Jonas adianta-se e chama.

Tu, ó 18647, chega aqui ao nosso alferes e mostra-lhe o teu pé. O soldado assim faz. Falta-lhe, realmente o dedo grande e a cicatriz tem poucos dias. Não me contenho: Então como foi isso? Não te preocupes que não te lixo. Tu passas à peluda e está feito. O cabo arreganha a beiça, o teclado brilha na noite. Foi os bandido na mata, meu arfere. Porra! Explica lá.

Eles atacou a nossa coluna. Mataram muitos nossos. Quase todos. Sarvo eu que ficou vivo no meio dos mortos. Sangue – bué. Os bandido desceram na picada e começaram de tirar as arma dos soldados farecidos. Chega um a mim e diz que esse parece que está vivo. Eu, de olho aberto, nem respira. Outro lhe responde que está morto. Para ver se eu está morto mesmo, o homem escarça o meu bota e o meia e com uma dentada me arranca o dedão.

E tu? Eu guentou meu arfere. Morto-vivo tem de guentar. Senão, está futido....

5 comentários:

Anónimo disse...

Carissimo Ferreira:
Como tu, também nao fui eu que encomendei e muito menos que começei a guerra em Angola.
Como tu, eu também pensei ser possivel que um dia Angola - onde nasceram os meus filhos - se tornasse um pais independente, género Brasil onde todos, brancos, pretos, mestiços, angolanos, nao angolanos, besugos e nao besugos e até maçaricos, pudessem viver em paz e contribuir para o engrandecimento do Pais. E dai o facto de, muito ingenuamente, ter ficado em Angola com a mulher e os filhos até à ultima da hora...sempre na esperança de ficar em paz e de integrar a nova ordem social e o novo Pais. Infelizmente conhecemos o resto da historia...
Mas ao contrario de ti, a mim sempre me pareceu correcto estar em Angola com a farda do Exercito Português que enverguei com muito orgulho e respeito.
Mas nao foi necessariamente para te dizer isto que escrevo.
O que eu pretendo dizer-te é que durante todo o tempo em que eu estive na CCS/QG/RMA, onde conheci três comandantes- Sampaio Nunes, Mario Cesar Teixeira e Moutinho Machado- nao me lembro, nem pouco mais ou menos, de alguma vez ter a CCS recebido soldados vindos da mata ou do hospital militar para passarem à disponibilidade ou às delicias da vida civil, como tu dizes.
Na realidade a missao de base da Companhia de Comando e Serviços era a de garantir um apoio logistico ao Quartel General fornecendo-lhe viaturas, impedidos, ordenanças,condutores, faxinas, enfim, o pessoal e material necessarios.
Que eu me lembre, em Luanda, a Unidade cuja missao era a de receber os soldados que passavam à disponibilidade ou em transito com destino às unidades operacionais ou em consulta externa no Hospital Militar ou aguardando julgamentos no Tribunal Militar, era o Deposito de Adidos de Angola, onde eu fui o comandante da 2a. Companhia, depois de ter deixado a CCS.
Ao ler o que tu escreveste e por mais voltas que dê ao meu bestunto(que ja foi mais cristalino) nao me lembro dessa particularidade da CCS/QG/RMA.
Sorry !!
Um abraço do ex-tenente Bandeira, Capitao na reserva.

Anónimo disse...

Bandeira Amigo

Antes do mais, muito obrigado pelo teu comentário que representa, sobretudo, a Amizade que existe (e existirá) entre nós. Depois ainda, pela circunstância de te saber, assim, leitor deste miserável blogue.Finalmente para comentar o teu comment.
a) As ideias são para ser trocadas e discutidas em Liberdade. É o que estamos a fazer. Às claras, não com o receio que sentia (mos? Creio que sim...)de estar a ser ouvidos por quem quer que fosse. Principalmente pela PIDE que ainda não era DGS...
b) Temos - se calhar não tanto - opiniões diferentes àcerca de alguns acontecimentos que se verificaram em Angola, como por toda a parte do Mundo. E é óptimo que assim seja.
c) Também eu enverguei com muito respeito e orgulho q.b. a farda do Exército Português. Aliás, se assim não fosse teria desertado, o que não fiz.
Para quem, como eu, a «secreta» salazarista proporcionara já incómodos diversos - penso que não vale a pena estar aqui a enumerá-los - a guerra não tinha razão alguma de ser. Tivesse o ditador de Santa Comba estado atento à História e tê-la-ia impedido, se tivesse tido a sensatez e a perspicácia de saber conversar e não dizer em desespero de causa - Para Angola, já e em força!
d) Assim, a descolonização não teria sido a que foi - e que era a possível, ao fim de tantos anos de asneiras, muitos mas mesmo muitos anos antes da salazarenta figura.
e) Mas, finalmente, acabou o pesadelo que tantas mortes causou entre soldados, guerrilheiros e, sobretudo, a população. E feridos. E amputados. E traumatizados psiquicamente.
E isso, quer se queira quer não, deveu-se à clarividência, à lucidez e à honra das afirmações sempre feitas por muita gente. À Democracia.
f) Por alguma razão saí, logo em Setembro de 74 de Angola, como sabes, com a Raquel e os três filhos. Não era apenas o receio do que se iria passar depois. Que tinha, pois não nasci para herói, como já escrevi.
Era a necessidade de voltar ao Portugal em que nascera e ali (aqui) poder escrever sem censura, falar sem ver se algum informador me escutava, votar sem chapeladas e de livre vontade.
Por isso ainda, nada me importei de me (nos)terem chamado da UFA (a União dos Fugitivos de Angola, sigla estúpida que depois se viria a generalizar - à força...)
g) Finalmente quanto aos soldados em causa. Também, como o sabes pois vivemos na CCS/QG o tempo suficiente para estabelecermos esta enorme Amizade que nos une e nada fará, sequer, oscilar, tive dois comandantes ali: o «Careca» do «deixa meu cabelo em paz» Mário César Teixeira, um outro Amigo com caixa alta e o Mário de Carvalho Moutinho Machado, um dos oficiais mais educados que conheci nas fileiras ao longo de cinco anos de serviço militar obrigatório. E uma alma, se é que esta existe..., muitíssimo boa. Mais um Amigo. Com ambos já me encontrei depois do imbróglio castrense e muito falámos da asneira política a que me referi. E não lhes vi grandes discordâncias comigo.O César Teixeira também se recordou do episódio que contei.
Ora bem. Tu saiste da tropa e da CCS/QG antes de mim. Eu ainda lá fiquei um tempo. O que escrevi aconteceu, creio, sem tu estares já lá. Mas que aconteceu - aconteceu. Não preciso de testemunhas para o corroborar. Mas o Franciso Jonas da Silva (hoje proprietário de dois restaurantes e três cafés-bares em Queluz, Massamá e Queijas), está aí felizmente vivo e com uma vida boa, para o confirmar. Os irmão Violas, nossos sargentos, um corneteiro, lembravam-se perfeitamente do caso. Já mo disseram. Hoje, não sei nada deles, se vivos, se mortos.
O antigo Sargento Eugénio Santos, estive com ele em Macau, e muito conversámos e comentámos a ocorrência com Amigos que ali estavam e alguns ainda estão. Creio ser suficiente para te «matar» as dúvidas, que não suspeições. Estou seguro que foram apenas as primeiras que te levaram ao comentário.
Não costumo mentir, com também o sabes. E ainda que uma crónica apenas o seja e por isso acolhendo o espírito criativo e criador de um seu autor, pois pode assim ser em termos de literatura, estas que até hoje publiquei sobre a guerra colonial são verídicas. Se continuar pelo tema - o que creio farei - pode ser que escreva ficção.
Bom, Fernando, aqui fica um abração tão grande como sempre. Nunca me poderei esquecer do que vivemos e passámos. Até depois da volta ao torrão natal e da tua ida para o Québec. Nunca se me apagará a tua tristeza quanto à malfadada bipolar que me entrou pelo bestunto cristalino. Nunca olvidarei como me acompanhaste e quão feliz ficaste quando me recompus. Tu e a tua Nanda, obviamente. Outro Abração queridos F&F
Henrique Antunes Ferreira

Anónimo disse...

Senhores
Isto está cada vez melhor. Uma polémicazinha nunca fez mal a ninguem, muito antes pelo contrário. Eu pelo-me por estas coisas. E ainda por cima sobre a guerra em Angola.
Senhor ex-tenente Bandeira, capitão na Reserva: tudo indica que o Senhor Antunes Ferreira é homem de palavra e não fala mentiras. O Senhor ex-tenente e capitão na Reserva deve ter sido miliciano. O meu Pai foi. E tudo o que conta assegura que é a pura vedade. E eu acredito.
Senhor ex-tenente Bandeira: já teve a sua conta. Com os meus mais sinceros cumprimentos e felicitações ao Senhor Antunes Ferreira

Anónimo disse...

Carissimo Ferreira:
Entao eu sempre tinha razao...Por mais voltas que desse ao meu bestunto (cristalino apsar de tudo)nao conseguia lembrar-me desse episodio que tu descreveste. Pois nao. Como tu dizes, isso aconteceu ja eu nao estava na CCS ou até mesmo na tropa e portanto, como nao tive conhecimento dessa ocorrência, nada estava registado no meu disco duro.
Curiosamente, nao foi a trincadela decepadora do dedo que me surpreendeu na historia.
O que nao balançava na minha cabeça ( espirito cartesiano de engenheiro)era o facto desses soldados se apresentarem numa Companhia de comando e serviços, para passarem à disponibilidade.
No entanto,pensando bem, até é normal se os tais soldados pertenciam ja à CCS antes de terem ido para o mato.
Enfim, esta esclarecido o imbroglio e, como conclusao, quero dizer-te que, como tu, tenho em enorme apreço a nossa Amizade.
Um abraço do sempre Amigo
Bandeira, ez-tenente.

Antunes Ferreira disse...

Tudo que acaba em bem, acaba bem. Não devia citar este estranho ditado «franciu», depois do que se passou na quarta-feira em Munique. De franceses chauvinistas estou até aos cabelos. E do Zinedine e seus penaltis - ainda mais.
Não posso, porem, deixar de me congratular com o Amigão/irmão Fernando, o Bandeira pela nobilíssima atitude que se regista neste blogue. Dele, não podia eu esperar outra coisa. Foi realmente a cerveja, digo, a cereja no cimo do bolo.
O ex-tenente/engenhocas é - como sempre foi e será - um Homem com «caixa alta». Isto quer significar em linguagem tipográfica: uma letra maiúscula. Que o mesmo é dizer com H grandalhão.
Ó Fernando. Neste momento em que uma vez mais o nosso País se encheu de Bandeiras Nacionais, tu tens uma ganda vantagem, meu malandro. A tua já está em teu nome. Não precisas de te pôr em sentido...
À volta, cá te espero. Na cidade de Ulisses e neste mal enjorcado blogue. Depressa!