segunda-feira, julho 17, 2006



O dia dum Senhor

Antunes Ferreira
Sursum corda. Habemus ab Dominem. Gratias agamus te. O som chega-lhe remoto, como que desenterrado do fim do Mundo, pela voz aflautada do padre Hipólito, acolitado pelo Maneiras, antigo menino de coro e, por estas bandas, sacristão camuflado, sem opa, vermelha ou branca não interessa. O capelão é de Moncorvo, o ajudante de Pias, terra de bom vinho. As hóstias são da autoria do Martins «Tremeliques», padeiro ao quadrado, ou seja na vida civil e nesta trampa da tropa.

Aos domingos é assim, o capitão Hipólito vem de Unimog, acompanhado de uns quatro soldados e um sorja, Gonçalves, mais conhecido por Bolinhas, de G3 aperradas, que a picada não é para folestrias. Brincamos – ou já chegámos à Madeira? Anda por aí um tal Simões, Júlio Carvalho Simões, furriel miliciano desertor, mulato claro – houve já quem dissesse que o sacana é preto cafuso, não liguem, na outra linha – que se dedica à caça de oficiais. Filho de um roceiro do Uíge, o pai oferecera-lhe, quando as borbulhas já lhe rebentavam, uma carabina Mauser, levíssima e de mira telescópica.

Para caçar tudo, até elefantes, dissera-lhe o mais velho, até elefantes. A roça, ubérrima, estendia-se por quilómetros, cafezal atrás de cafezal, sob a rama das árvores protectoras e a vigilância das mafumeiras altas e esguias. Juleco, aos 15 anos, já atirava como se profissional do gatilho fosse. Primeiro em mamões, depois em tudo que mexesse. A mãe Benda Maria se lhe recomendava calma minino, calma, que essis arma lhe deu seu Pai só pra matar pacaças e palancas. De nada servira a prevenção materna. Deu-se a caçar homens.

Cervejas e bifes

Ite, missa est. O pessoal ajoelhado para a bênção final, já se levanta, em busca de Cuca geladinha, da arca zincada. Geladinha – assim, assim. Melhor que nada porque cerveja quente só os ingleses, ao que dizem. Poça, gajos mais estranhos, os bifes. Quem se havia de lembrar de cerveja ao natural. Nem pra tremoços, que é o marisco preferido do Eusébio. Cabrão, que viera lá do cu de Judas de Moçambique para o Sporting e, pela porta do cavalo, arregimentara no Benfica.

Debaixo da copa do embondeiro, o Jacinto, nosso alferes, acamarada com o outro miliciano de galão único, o Tomaz com z mas sem h, a ser assim ainda seria da família do merdas do almirante. Afanam-se em tarefa mais do que meritória: dar cabo de uma garrafa de Monkeys, um uísque de estalo, a botelha é de louça, é só estilo. Nenhum deles assistiu à missa, já foi tempo em que não falhavam um dia do Senhor.

Gelo de barra esmigalhada e água Castello – é assim que vem no rótulo, com dois l – ajudam a enganar a caloraça. Hipólito, desparamentado num ápice, também não tem muito para tirar, abanca à sombra da árvore guarda-sol. Trata-os por tu, eles são mais pelo padre isto, padre aquilo. O capelão é um gajo baril disse uma vez o Tomaz com z e bastou. Boa praça, diriam os brasileiros. No caso presente, bom capitão, ainda que sem usar galões por via das moscas.

Serve-se a eito e sorve uma golada ainda meio-quente. Ó padre, deixe derreter o gelo, porra! O Jacinto excomungado comunga porem na amizade ao cura capitão. Mete-se com ele a todo o momento, é a forma de lhe mostrar o apreço que lhe tem, o valdevinos. Vocês continuam a faltar à missa dominical. Saíram-me uns bons safados. Diga uns filhos da puta, fora as mães, digno sacerdote castrense, não lhe faz mal nenhum e enche a boca.



Esta é a forma mais gozada de acometer Hipólito. Sacerdote castrense. Mas ele próprio entra no gozo, melhor seria filhos da mãe, já não seria preciso isentar as progenitoras. E enche um segundo copázio. Safados e ímpios. Tu, meu grandessíssimo Jacinto até foste leitor de epístolas, nos Jerónimos, era prior o Felicidade Alves, do meu curso do Seminário.

É isso, padre. Fui católico – ou julgava sê-lo – mas curei-me. Nem precisei de aspirina LM. Tomaz, sempre com z, solta tal gargalhada que quase se engasga com pedra de gelo quase virgem. Meus queridos filhos. Graças a Deus, muitas; graças com Deus, nenhumas. Parece que está a falar a sério, ó padre Hipólito... E estou mesmo. Vocês já estão cacimbados, tantos meses aqui no mato, desculpo-os. Não precisam de brincar com o nosso Pai.

Óqueijo, óqueijo, padre. Vá, meta mais gasosa, the last for the road. Assim, sim, assim são vocês, camaradas, amigos, filhos meus. A manhã esvai-se por entre os dedos da malta. Almoça connosco? Pergunta idiota. Hipólito vai sempre comer na sede do batalhão, onde, antes, rezará também missa. Boa viagem e poucos furos, digno sacerdote e castrense. Vá pela sombra, que o sol cresta...

Minutos depois, já com os garfos em punho para a salada de atum, ouvem um matraquear metálico, uns estrondos, uma gaita! O padre está a ser atacado, grandes cabrões. Vamos a eles. Motores a ferver, malta em calções ou em cuecas, a espingarda e as munições é que contam, avia-te ó Marques bazuqueiro. Eles fodem-nos se nós não chegamos depressa. O tiroteio prossegue, cada vez mais próximo, à medida que se aproximam em velocidade tresloucada.

Nisto, o silêncio. Ominoso e impotente. Acelera, Guimarães! Caralho, isto está a cheirar muito mal! Os êmbolos esgalgam-se, os travões morreram. E o sacana do silêncio – que se ouve perfeitamente. Se tal dissesse nas aulas de Português, o doutor Leão já lhe teria chamado pleonasmo vivo – ou és mais burro do que a Santa Madre Igreja te permite! Aqui, porem, o silêncio ouve-se, come-se, engole-se, mas não se digere.

Desembocam num buraco no meio da picada. Buraco feio, grande, debruado a pólvora queimada. Os militares jazem, espalmados, há sangue em barda, a folhagem chamuscada já não mexe. Agarram os homens, todos mortos, o sargento Gonçalves tem uma órbita obscenamente vazia, de onde ainda escorre a seiva vermelha que o recheava. Todos mortos.

Pela pontaria, pelos orifícios das balas, pela precisão do tiro, foi o Simões. Repara Jacinto, tem a marca dele, não engana. Mas Tomaz, quero lá saber se com z, o mestiço não matava toda esta gente, um a um. E, alem do mais, há a cova da mina rebentada. O Simões é mais artista, não entrava numa selvajaria destas, nesta carnificina. Pessoal, onde está o nosso capelão?





Aqui, amigo, aqui. Morto e bem morto. Os alferes aproximam-se, as lágrimas embaciam-lhes as retinas, mas não correm. Um homem é um homem e um gato é um bicho. Junto ao corpo do sacerdote, crivado e sangrento, está agachado o Maneiras, desconsolado, em pranto. Não grita, não berra, sussurra apenas mataram-no, mataram-no.

Um pincho e um brado

De súbito, um pincho e um brado de fera. A espuma corre-lhe pelos cantos da boca convulsa. Ah alentejano duma cana, que foi que tu viste para te pores assim? Jacinto e Tomaz, que se lixe o z, entreolham-se. O de Pias pifou. Endoideceu. Não aguenta mais. Agora, é evacua-lo para Luanda, interna-lo na psiquiatria, como é que se vai explicar à mulher que tinham conhecido, de barriga de seis meses, na Rocha Conde de Óbitos?

Vá lá, Maneiras, sossega. Já viste mais mortos. O nosso capitão Hipólito já sossegou, já ninguém lhe faz mais mal, está feito. Acalma rapaz, que a tua mulher e o teu filho precisam de ti bom e vivo, olha lá o que aconteceria aos dois se tu te fosses abaixo das canetas. Na nossa toca enfias umas bóbidas pelas goelas abaixo e pronto. Gente: vamos recolher os corpos e voltar ao aquartelamento.

O Maneiras resmoneia qualquer coisa, por entre os lábios cerrados sobre os dentes. Dois cordões de lágrimas abrem sulcos nas faces enegrecidas do pó, do suor, da raiva. Volta-se, lentamente para os oficiais e solta a boca num queixume. Caparam-no, os cabrões, caparam-no. E meteram-lhe a pica na boca, os filhos de uma carrada de putas. Caparam-no. O padre era um homem. Se calhar, fazia-lhe falta o aparelho. Caparam-no...

Ná, o Simões não fazia uma tal cagada. É outra loiça, apesar de... Jacinto abraça o Maneiras, Tomaz, de novo com z, abraça ambos. Graças com Deus... Caparam-no, amigos, caparam-no.

2 comentários:

Anónimo disse...

Poderia entrar por outros caminhos e tecer outros considerandos. Mas isso não teria nada a ver com o conteúdo das tuas crónicas, nem com a maneira como tu escreves. Antes pelo contrário, a tua maneira de escrever ao correr da pena e ao sabor das palavras, agrada-me.
Por duas ou três vezes pensei nos livros do Jorge Amado que eu sempre li (todos) com muito prazer. Em todos os seus romances ele utilizava esse género de prosa livre o que dava aos enredos uma atracção bem especial.
Abraços do sempre amigo

Anónimo disse...

Acabei de ler há pouco as tuas últimas crónicas da guerra colonial... A famosa "guerra colonial" que foi tão veementemente criticada pelas "grandes democracias " deste Mundo (ex: USA, GB, etc., etc.).
É extraordinário constatar como é que a memória das pessoas, das sociedades e dos países é tão boa mas tão curta...Efectivamente se compararmos as razoes, os resultados, a ferocidade e a envergadura dos meios utilizados, a ilegalidade e o não senso dessa guerra colonial com o que actualmente fazem os judeus no Líbano ( e não só), os "amaricanos" no Iraque, etc., etc., podemos afirmar, como dizem aqui os quebequenses, que a nossa guerra colonial
... c'était de la petite bière...

Mas isto não tem nada a ver com o conteúdo das tuas crónicas nem com a maneira como tu escreves. Antes pelo contrário, a tua maneira de escrever ao correr da pena e ao sabor das palavras, agrada-me.
Por duas ou três vezes pensei nos livros do Jorge Amado que eu sempre li (todos) com muito prazer.
Em todos os seus romances ele usava esse género de prosa livre o que dava aos enredos uma atracção bem especial.