
HISTÓRIAS DA PJ
What happned to Mr. Hood?
(2ª Parte)
José Augusto Garcia Marques
“Eu é que sou o Hernâni”. O tom era tranquilo, a voz suave, o rosto não denunciava inquietação. Ficámos decepcionados com o perfil do sujeito. Ao contrário do que chegámos a admitir, não se vislumbravam nele sinais de um carácter violento ou agressivo. Era um jovem claramente efeminado, de estatura mediana e compleição frágil.

Trocámos impressões com a dona da casa, que mandou o empregado esperar no seu quarto. A Senhora disse-nos que fora o próprio Hernâni que se lhe dirigira, nessa manhã, dizendo que, “se calhar, o “Ernani” de que os jornais falavam era ele”. Mais lhe relatara que conhecia o Senhor Roy Hood, com quem se encontrava há já algum tempo. Em termos de personalidade, disse-nos tratar-se de um ser inofensivo, paciente e com bons modos, de um criado disciplinado e com vontade de aprender, embora algo limitado intelectualmente. Na sua opinião era um “pobre diabo” impotente, destinado a ser usado e abusado por marginais sem escrúpulos.
No entanto, reconhecia nele, nos últimos dias, uma ansiedade e uma angústia que não eram habituais. Apesar de saber que se chamava Hernâni, a dona da casa não o associara ao “Ernani” a que a comunicação social se referia, uma vez que nunca lhe passara pela cabeça que pudesse ter um envolvimento com um velho pederasta de “sociedade”, como era o caso do Roy Hood, o qual, na sua opinião, deveria andar metido com “companhias de outro quilate”.
Fomos falar em seguida com o Hernâni, o que fizemos no seu próprio quarto. A mesa de cabeceira tinha uma imagem vulgar de Nossa Senhora de Fátima e, na gaveta, havia recortes dos jornais que noticiavam o aparecimento do corpo na praia de Carcavelos. Logo nos deu a sua versão dos factos. Tinha, de facto, um encontro marcado com o Roy Hood, pelas 20 horas, perto de um cartaz publicitário, colocado em frente das arcadas do Estoril. Tratava-se do local de encontro habitualmente escolhido por ambos. Todavia, tendo esperado cerca de uma hora sem que o pintor aparecesse, e porque estivesse muito frio, o Hernâni ter-se-ia cansado e decidido voltar para casa. Pareceu-nos conveniente, no regresso a Lisboa, passar pelos locais por ele indicados.
Das arcadas ao Tamariz
Dirigimo-nos às arcadas, tendo estado junto do referido cartaz. O Hernâni deu-nos conta do seu ressentimento relativamente a Mr. Hood pelo facto de este não o deixar ir ter directamente a casa dele. Segundo ele, era um sinal de falta de confiança, revelador de que o estrangeiro não gostava de ser visto com ele. Pedimos-lhe depois que nos guiasse pelo percurso que costumava fazer com o Roy Hood desde aquele ponto de encontro até ao local de destino, a casa do pintor australiano. A tarde ia a meio, mas não havia tempo a perder, uma vez que, no Inverno, os dias são pequenos.

O encontro dos dois costumava ocorrer cerca das oito horas da noite. Atravessavam então a marginal, entravam na praia do Tamariz e dirigiam-se para a muralha que percorriam, lado a lado, junto à respectiva berma, até ao local adequado para cortarem em direcção à Rua onde estava situado o Palácio em cuja dependência Mr. Hood vivia. Segundo explicou, a muralha, a essa hora, era frequentada por diversos homossexuais, sendo frequente encontrarem caras conhecidas no “engate”. Com o Hernâni fizemos o percurso até ao portão exterior do edifício onde vivia o pintor, tendo seguido depois para a sede, na Gomes Freire.
O Hernâni era uma personalidade fraca, tendo uma natural tendência para ser agradável para aqueles com quem conversava, incluindo para quem o interrogava. Havia, assim, que ter o cuidado de evitar obter versões dos factos que não correspondessem à verdade, sendo importante tratá-lo sem agressividade ou sinal de violência. Para a Polícia, deve ser tão importante chegar aos responsáveis pela prática do crime, como concluir que um determinado suspeito está, na realidade, inocente. Mas, como diz o povo, quem vê caras, não vê corações ...
Interrogado na Brigada, foi mantendo a sua versão originária. No entanto, havia, no seu discurso, algumas contradições manifestas e ressumava das suas palavras um claro azedume para com o pintor australiano, que não era muito conforme com a sua maneira de ser suave e pacífica. Naquele tempo – já lá vão quase quarenta anos - a prisão sem culpa formada não obedecia aos requisitos – processuais e de prazo – a que obedece hoje a prisão preventiva.
Assim, a título de exemplo, não era obrigatoriamente ordenada por um juiz, podendo sê-lo pelos responsáveis hierárquicos da própria PJ – que, por acaso, eram, na generalidade, juízes de carreira, mas que, obviamente, não exerciam a magistratura judicial durante o tempo da comissão de serviço. Em face das suspeitas existentes, foi, assim, determinado que o Hernâni recolhesse aos calabouços da PJ.
O "culpado" confessa
No dia seguinte, de manhã, pediu para falar comigo. E foi a mim que confessou ter sido o “culpado” pela morte do Roy Hood. A sua versão foi, no essencial, a seguinte. Na verdade, estivera cerca de uma hora à espera de que o pintor australiano chegasse. E, quando já se propunha ir para casa, viu-o aparecer. Estava cheio de frio, impaciente, embora muito vaidoso com umas roupas novas que comprara com algum dinheiro que o Roy Hood lhe dera.

Era um canadiana azul escura, com capuz, boa para o frio, e uma camisola grossa, de lã escura com uns motivos claros, que também trazia vestida debaixo da canadiana. Esperara com ansiedade o momento de mostrar ao “velho” a boa aplicação que tinha dado ao dinheiro recebido, aguardando uma palavra de elogio pelo bom gosto revelado na escolha das roupas. A longa espera tinha-lhe tirado, porém, a alegria da expectativa, substituindo-a por um má vontade crescente contra o companheiro. O Roy Hood vinha também de má catadura.
Depois de algumas palavras frias e amargas, dirigiram-se para a muralha, como era costume, e uma vez que o pintor não fazia qualquer referência à roupa nova que ele trazia vestida, o jovem chamou-lhe a atenção para o facto. Ficou desiludido e magoado com a resposta: “Vocês gastam o dinheiro todo em trapos”.
A conversa azedou. Queixou-se do frio que tinha passado durante a longa espera, de mais a mais exposto ao olhar trocista de outros conhecidos que ali o viam especado, esperando por uma companhia que não havia meio de chegar, e lamentou o facto de o pintor não lhe dar a chave de casa e de não o deixar ir lá ter directamente. A isso, o Roy Hood teria respondido: “Eu não dou a chave da minha casa a quem anda ao “badejo”!
A gota de água
Teria sido essa a gota de água que fez transbordar o copo. O Hernâni já tinha referido que o Roy Hood, “certamente por uma questão de respeito”, lhe dava sempre a esquerda, pelo que era o estrangeiro que seguia na borda da muralha. Irritado com as observações do outro, o português, sem se aperceber da proximidade da extremidade da muralha, deu-lhe um empurrão com o ombro, fazendo-o desequilibrar.
Na sua versão, teria dado ainda um passo em frente, mas, alertado por uma exclamação surda, olhou para trás, tendo ainda visto Mr. Hood a fazer uma tentativa desesperada de equilíbrio na berma da muralha. Não se conseguindo equilibrar, caiu e terá batido com a cabeça nas pedras que se espalham à beira-mar. A maré estava a encher e o Hernâni, cheio de medo, desatou a correr no sentido de onde vinham, tendo parado só depois de atravessar novamente a marginal. Recuperado o fôlego, voltou a correr até à casa onde vivia.
Perguntei-lhe se alguém o tinha visto nessa correria e, depois de pensar, indicou um nome. Tratava-se de um “arrebenta” que “engatava” turistas, de preferência americanos, nas arcadas do Estoril. Que ainda lhe dirigiu uma pergunta, tendo o Hernâni dito qualquer coisa a despachar.
Concluída a confissão oral, no meu gabinete, passou depois à Brigada onde desenvolveu a seu relato dos factos, que foram reduzida a escrito.
Imagine-se a minha surpresa quando, no dia seguinte, encontrando-nos no gabinete do Chefe de Brigada, o Hernâni me dirigiu a seguinte pergunta: “O que é que o Senhor Dr. dizia se eu lhe dissesse que não matei o Roy Hood?”
(continua)