quinta-feira, agosto 10, 2006



Poeira do Leste

Antunes Ferreira
Lábios carnudos e morenos como os da Laurinda, morena e carnuda, jura mesmo que não há. Seios empinados e arfantes como os da Laurinda, morena e carnuda, nem pensar. Ventre liso e duro como o da morena e carnuda Laurinda, nunca. E o umbigo, cinzelado, da Laurinda, morena e carnuda? Jamais outro igual. Perfeitinho, a parteira sabia da poda e devia ter mãos de fada e aveludadas, tal obra produzira.

Pernas longas, torneadas, artelhos de mimo e coxas de mármore moreno e carnudo, como as da Laurinda, carnuda e morena, deus me livre se há. E ninho do amor, enovelado a negro, carnudo e moreno, como o da Laurinda, morena e carnuda, nem pó. O pessoal pára na Mutamba só para olhar para ela. Muita gente deixa até passar o maximbombo sem levantar o braço. Mulata assim, nem no Brasil, e olha lá, o Jorge Amado diz que as morenas e carnudas da Baía não têm quem se lhes compare. Enganado anda ele. A Laurinda, carnuda e morena, basta que a veja.

De resto, esse brasileiro pai da Gabriela, do cravo e da canela, sabe de fêmeas. É ele quem escreve que gostaria de dormir com todas as mulheres do Mundo, sem escapar uma. É impossível, seu. Mas tento, mas tento, acrescenta com um riso danado por baixo do bigode. Dona Zélia nem se preocupa. Nunca teve pachorra para ter ciúmes. Nem tempo. E o São Salvador vela por ela, atento.

Nisto tudo pensa João Caxiné, preto cafuso, natural de Benguela, admirador do mulato Aires de Almeida Santos, poeta entre os poetas, preso uns anos em São Nicolau, solto depois, agora jornalista de «A Palavra» do Renato Ramos e do gordo, o Antunes Ferreira. Ele também é de Benguela, nela foi buscar toneladas de inspiração a fim de parir A mulemba secou ou o Meu amor da Rua Onze.

João, o Fosquinhas de alcunha, não soube nunca e não continua a saber porquê, descasca batatas para o rancho geral em Henrique de Carvalho, frente Leste, mortífera. Vai lançando-as cuidadosamente peladas – o sorja Monteiro é lixado no controlo e fiscalização dos comes – no caldeirão. São duas companhias de angolanos como ele e comem que nem elefantes. Nada de capim, porém. Batata, feijão, grão, arroz, toucinho, chouriço de lata, tudo salpicado por mais ou menos carne selvagem, de acordo com a fortuna na caça. Porco ou vaca, só de quando em vez.



A filha da mãe da poeira, finíssima, em suspensão por tudo o que é sítio, entra pela gola da camisola interior. Levanta-se do caixote que lhe serve de banco e a custo despe-a, de tal modo se lhe colou ao corpo, suor e pó misturados, pior do que Pattex. Puta que pariu a camisola. Colada a ele – só a Laurinda, morena e carnuda, uma merda, lá longe nos Combatentes, por cima do Punta del Pazo, vizinha da Marabunta, agora dona de vidraria, noutros tempos, outras vidas, outros amantes de nota na mão, escudos ou angolares tanto faz.

Não a pode esquecer. O que estará ela a fazer a esta hora. Três da tarde, ainda é cedo para preparar o jantar para o pai, os dois irmãos e ela. Vê-a deitada, um camiseiro largo por único vestido, de seda de Macau, comprado nas Ingombotas. Nada por baixo, nadinha, como ela gosta de andar e a ventoinha Sanyo, a mandar-lhe o ar que lhe beija as pernas nuas, por aí acima, até onde ele também a beija – e ela gosta. E ele.

Da Terra à Lua

Pronto. Já está outra vez de pau no ar, nem vê bem as batatas – tubérculos, aprendeu ele na Escola da Dona Mariquinhas ali ao Marçal – esta foi quase decepada pelo facalhão que ele maneja com destreza. Com o pensamento fora, ainda corta um dedo, ou mesmo dois, qual catana bem afiada. Entre a Laurinda, carnuda e morena, e as putas das batatas vai uma distância tão grande como da Terra à Lua, os gringos dizem que um destes dias chegam lá de foguetão, quem sabe, os américas são gajos para tudo.

O cabo Carlos, branco do Chinguar, avisa-o de que está a roubar nas batatas, com casca tão grossa deitada fora, elas nem se vêem cruas, quanto mais cozinhadas. Sacana de merda esse Carlos, sempre a dar-lhe cabo do juízo por tudo e por nada. Agora são os tubér.., os colhões do padre Inácio. Um dia destes, dá-lhe uma sarrafada que o gajo vai ver as estrelas todas do céu. Incluindo as Ursas, a Maior e a Menor, a Cassiopeia e outras de luz mais fraca. Ah Dona Mariquinhas, tanto lhe meteu no cristalino bestunto.

Tás a pensar na miúda, é o que é. Mau. A Laurinda, morena e carnuda, não é para aqui chamada e o Carlos Matos não tem que a meter ao barulho. Ó meu sacana, nada de brincadeiras com a minha noiva, senão fodo-te os cornos. O do Chinguar, pronto, não te chateies, era só uma piada, nada mais, mas se assim o queres não volto a falar na cachopa, não sei o que ela viu em ti para te eleger como conversado.

O panelão já tem mais do que a conta batatal. O China cozinheiro é quem está a seguir na bicha do refogado. Estrugido dizem os portuenses, que gajos mais estranhos, sarjeta é bueiro, vinte e oito é bintóito e dezoito é dezouito, bica é cimbalino. Há doze no agrupamento, uns mesmo do Porto, Cedofeita e Maia, dois da Póvoa, um de Leixões, outro de Espinho e não sabe mais quê. Malta despachada.



Vai devagarinho para o jotacê, assim chamam aos barracões das casernas. Estende-se no colchão, de barriga para o ar, mete as mãos debaixo da nuca, tem vontade de um cigarro, mas não a tem de o ir buscar ao bolso do camuflado. Está empapado e daí a bocado irá meter-se debaixo do chuveiro. O calor seco, o tempo abafado, as nuvens baixas e a cabrona da poeira peneirada são impossíveis. Mornaço muito pior do que em Luanda, sem falar nas praias da ilha.

Noites e noite, aquela

Uma noite pegara na Vespa e fora buscar a Laurinda, morena e carnuda, a casa, para darem uma volta pela ilha. O pai dela de acordo, a mãe, menina toma cuidado, os homens são todos iguais, tento na cabeça. Duas Nocais no bar do senhor Jeremias, mais duas bem geladinhas e olha o mar calmo e azul escuro, é noite, amor. Areia morna melhor que colchão molaflex, ninguém à vista, o boteco já fechou. As mãos ardendo, agarram os seios firmes morenos e carnudos e a boca esmaga os lábios carnudos e morenos.

Entre as pernas cresce-lhe o volume orgulhosamente em pé. Ela acaricia-o, mão já especialista nesse tronco, passa-lhe os dedos pelos encaracolados pelos e vai abrindo as gâmbias. Ele corresponde, avança com o dedo do meio no meio dela, gemem, ai João que me matas, estou desvairada, oh não, oh não, oh sim, oh siiiiiim. Por ali não ficam. Os beijos trocados, os mamilos morenos e carnudos aleitam–lhe o desejo.

E quando entra nela, e vai acelerando a cavalgada, os gemidos transformam-se em gritos estridentes, mais fundo, mais fundo, maaaaiiiiiis. Um mar leitoso envolve os dois, a lua cheia parece de prata, um cigarro de boca pra boca, os dentinhos dela, certinhos, bonitos, reluzem em explosão de esmalte, era bom ficar aqui para sempre contigo, sem mais fazer. Deixa-te estar. Daqui a pouco vais. Mas espero por ti. Aqui.

Três dias depois, o Leste. Aqui é uma porra. Só das lembranças da Laurinda, carnuda e morena, já tem o slip aleitado, gomoso e nem precisou de usar a mão. Ai amor, como eu te queria abraçar agora mesmo e afagar a tua barriguinha de sete meses, aquela noite na ilha pegou de estaca, vem chegando aí alguém, já dá pontapés no ventre materno, menino ou menina não se sabe, só quando sair para a rua. Futebolista será – se macho.

Notícias de Luanda

Começa a levantar-se, mole, para ir-se à chuveirada. O alferes Oliveira entra na caserna e dirige-se a ele. O que há, meu alferes? Senta-te que eu quero dar-te uma notícia. Sentar-me? Para quê? Que houve? Os sacanas atacaram a nossa malta e mataram algum camarada? Ou mais? Deve ter sido afastado, não se ouviram tiros, pelo menos eu cá não os ouvi. Mas ainda podemos lá ir, dar-lhes uma ajuda e ferrar umas porradas nesses filhos das putas.





João, não é nada disso. Veio um rádio de Luanda para te avisarmos. Ó meu alferes, dê-me um abraço dos grandes, já vi tudo, sou pai, nasceu a criança, morro de alegria, é menino ou menina? Diga lá e já. Para mim é igual, desde que seja perfeitinho. Chico Oliveira põe-lhe as mãos nos ombros, mas não é abraço, é peso, é carrego, que merda é esta, que se passa meu alferes? A cor azeitonada tornou-se cinzenta e baça. O que é, meu alferes, o que é?

À porta do jotacê juntou-se um grupo, o Carlos do Chinguar com cara de pau faz parte dele, tudo calado. Ó meu alferes. João, o bebé perdeu-se. Uma complicação qualquer durante o parto, já saiu morto, uma ganda chatice. Foda-se! Puta de vida esta, pois não é, meu alferes? Mas nada de tristezas pela desgraça, quem fez um faz outro, fica para a outra, vamos tentar de novo, é fácil fazer uma criança, a minha Laurinda, morena e carnuda, até gostou desta vez e vai gostar ainda mais.

Não, João, não vai haver mais vez nenhuma, infelizmente. O quê? Estás a gozar comigo? Dou-te cabo da cornadura ó Oliveira, eu nem estou em mim, eu perco-me. Vais ter de aguentar, soldado. A Laurinda, carnuda e morena, também se foi, ainda chamaram o médico, não houve como valer-lhe, uma hemorragia lixada. Os funerais das duas – era uma menina – são daqui a três dias, para te dar tempo a lá chegares. Amanhã vem o helicóptero e tu vais nele, que achas?

Não acha nada, Os outros vão entrando, o Carlos chora, alguns também, grossas lágrimas rolam pelas faces de peles diferentes. Ele, porem, está seco. Morreu por dentro. Acabou também. A Laurinda morena e carnuda agora só se deitará com os vermes. Vira um homem desenterrado e não comera arroz uma porrada de tempo, os bagos brancos saíam aos milhões do corpo apodrecido, saracoteando-se.

Não vou, meu alferes. Muito obrigado, mas não vou a Luanda. Vou para a mata, voluntário e, se puder, fico por lá uns dias. Uma emboscada, um golpe de mão, até mesmo uma patrulha, mas que dê para uns dias. Sempre dá tempo para apanhar uma mina ou um fogacho na testa. Assim, volto a experimentar com a Laurinda, morena e carnuda.

3 comentários:

Anónimo disse...

Chefe

Enquanto me regalava com a proza, pensava: hoje merece um comentário de lápiz azul - e mais -, os bonecos devia ter a bolinha vermelha - e ainda - é favor incluir o "piiiii" e porque a "Travessa" é também das gajas -depois... no fim... o fim!
Protesto. Com finais destes imploro: volta futebolês, estás perdoado!

AS

Anónimo disse...

Você a escrever com erotismo é o máximo. Recordo aqui as suas crónicas na Elan (onde foi galardoado como o melhor cronista da revista) e na Bola, em que o sucesso faz admirar sobre o facto de o terem posto à margem.
Como vê sou seu leitor fiel desde há anos, a partir de Angola e da Palavra.
Mas neste tema que mete amores diversos sou um admirador devotado seu.
A pobre A. Salina ficou triste com o final do artigo. Não fique, minha menina (senhora?) porque ele está tão bem escrito e com tanta intensidade que só tinha de terminar assim.
Pelo que vejo é muito amiga do Antunes Ferreira. Continue a sê-lo que ele bem merece. Fico à espera do «tal» livro. Só que eu conheço-o e sei que talvez lá para as calendas gregas...
Um grande abraço, A.F.

Anónimo disse...

Meu Caro H A Ferreira:
Grato pelo seu naco de prosa, excelente, como não podia deixar de ser, tendo em conta a estrada que lhe fica atrás...
Estas coisas não se agradecem, mas bem-haja!
Também escrevi para o DN, como o mundo é pikeno!, e por isso devemos ter amigos comuns, tais como o Carlos Albino Guerreiro, sei lá!, a Lídia Jorge, aquela outra dos livros infantis, o Soares Rebelo, de Coimbra, parece que agora substituído pelo João Fonseca... et coetera
Já fui pôr o olho esbugalhado no seu blogue... Força na verga!... Parabéns e um forte abraço cá da beira. terra de Aquilino, terra onde ainda há homens de "antes quebrar que torcer"...