quinta-feira, agosto 17, 2006

Nem tiro nem mina

Antunes Ferreira
Cabo-verdiano, 43 anos de idade, casado, quatro filhos, Maximiliano Pires é o Administrador de Concelho de Buco-Zau, em Cabinda, terra de fiotes e de grandes florestas.


Precisamente aqui, no Maiombe, paraíso de madeireiros. Tem casa onde vive com a família, a mulher, Laurinda é de Trás-os-Montes e professora primária, os miúdos quase tão claros como a mãe, excepção feita à Manuela, a caçula, morena linda de morrer nos seus oito anos.

Agora com o petróleo, Cabinda é rica. Quer dizer, quem enriquece é principalmente a Cabinda Gulf Oil, que explora o ouro negro e quem nela trabalha. No entanto, Portugal também não se considera muito infeliz, pois parece que há massas para todos. Dizem os cabindas que menos para eles. E se calhar têm razão. Mas isto é outra conversamole para encher pneu, como diz o Faustino, caipira do Amazonas que ali se implantou há uns anos, muito antes da FLEC.

Maximiliano, Max, para os amigos - nome assim só em Cabo Verde ou em Goa – tem um primo, Gracindo, que se dedica ao café. Diz ele que sem grandes resultados, as culturas já deram o que tinham a dar, com um tal tamanho ensarilhado de árvores, pouco espaço há para a rubiácea. Também teve cacau, até veio um gajo de São Tomé cuidar da plantação, mas foi chão que deu não uvas mas cacaueiros. Coisas.


Um dia, em Luanda, ele e o primo tinham ido a casa de um compadre para beber uns grogues de nos’terra. O Leontino morava no décimo andar do prédio da Cuca, tiveram que tomar o elevador, apertadinhos. O ascensor estava recheado de pretos, qual deles mais castanho escuro do que os outros. A algaraviada, acompanhada de grandes risadas ajudava a encher o bicho.

Quando saíram no décimo e antes mesmo de tocar à porta, sai-se o Gracindo, ó pá, aqueles gajos bem podiam tomar banho de vez em quando. Era só catinga e da mal cheirosa. O primo tinha razão. E não era apenas o cheiro a suor ácido, por ali devia andar também mija no canto do aparelhómetro e sabe-se lá mais o quê.

Gisela abriu-lhes a porta com um sorriso esmaltado na face mestiça. Entrem, entrem, O Leo está na preparação e alem das bóbidas vocês ficam para jantar ou, mesmo cear. Que não, que tinham de voltar à pensão Rosa de Porcelana, arranjar as malas, no dia seguinte o avião da DTA era logo às oito horas, tinham de levantar-se às cinco, tomar banho e restantes arranjos e talvez matabichar, que no ar não davam.


E a cachupa muito rica?

Então não querem lá ver, a comadre não arredava pé, tenho uma cachupa rica que me levou toda a manhã, quase nem ia a Quinaxixe, para comprar mandioca e peixe fresco, agora têm lá uns filetes de tubarão que dizem ser uma delícia, é serviço do Instituto das Pescas, ali à Marginal. Mas tinha ido e também trouxera uma mão cheia de camarão grosso, que já estava cozido em água com sal e jindungo.

E por banho, vocês subiram no elevador, creio. Menina, nem pareces tu. Então havíamos de amarinhar dez andares à pana. Nem que fôramos alpinistas. Pois, deita-te de bocas, e o cheirinho a malta sem banho, muito menos desodorizante... Deste na muche, Gisela, deste no centro do alvo, és melhor do que o Guilherme Tell. Essa pretalhada bem podia ao menos duchar-se uma vez por semana. Mais não que pode gastar a pele.

O Leontino ainda vinha a cheirar a cachaça da rija, quase se podia adivinhar a qualidade da cana. Bóis, vamos à nossa farra, nós cá tem de tomar banho e lavar as mãos, é tudo limpeza. Sempre lhe causava admiração o cá que significava não. Mistérios. E entrou pelo palrar das ilhas, crioulo lhe chamam, no Senegal é créole, quem havia de dizer. Claro que ficavam e dormiam e ele levava-os ao aeroporto ainda que a ressaca fosse muita. Não resiste, porém, a um bom muzungué.

Esbodegaram-se pelos cadeirões de verga que estavam na varanda, três uísques à maneira com soda e muito gelo, antes do grogue e da cachupa, acentue-se, rica. Então como vão as coisas por lá? Muita guerra, muitos tiros, muitas minas? Ele preferia falar nas mulheres, as cabindas eram as mais bonitas, mais boazonas, as melhores na cama de todas as negras angolanas.

Guerras – o trivial

Quanto a guerras era o trivial. Por lá, o MPLA não tinha, se calhar ainda, grande força. O compadre, alapado em Luanda, primeiro oficial dos Correios, matava-se pelas estórias que qualificava de bélicas. Sabia de tropa mais do que os tropas profissionais ou milicianos, até os calibres das munições lhe eram familiares.

Pois então, ele, Max, também andava metido naquela saralho do carilho, não é? Sim ou sopas? Andava. Nem era preciso acrescentar que o fazia muito contrafeito e cheio de cagaço das balas, das bombas e do resto. Porra, que quando elas assobiam à nossa volta é melhor usar cuecas castanhas para disfarçar. Mas o alferes que estava em Buço-Zau era um bacano, destemido e galhofeiro. Dispensara-se de acrescentar e solteiro, o que lhe dava mais largueza e mais miúdas.

Se falasse na família era um arraial, medo pelos filhos que não estavam criados, longe disso, medo pela mulher, que faria a Madalena sozinha se ele se finasse com um balázio explosivo na tola? Foi, por isso, avançando nas emboscadas, nos golpes de mão, nas armadilhas, na mata ciclópica, nas Panhares que não conseguiam entrar naquele labirinto de verde e picos.

... na Guiné com o PAIGC


Queres dizer, Max, pelas tuas bandas não há grande perigo? Olha se fosse na Guiné, o PAIGC já controla mais de metade do território, o Amílcar nosso patrício sabe da poda, não fosse ele engenheiro agrónomo. Claro, claro, por lá não se apagavam muitos. E muito menos um administrador de concelho. As gargalhadas tonitruantes deviam ouvir-se no Vilela.



Ainda a noite era uma criança e já estão eles no Dakota, já aterram, já desanda o Lande Rover da Administração para o Buco-Zau. Viagem tranquila, sobressaltos só na cabeça dele, o primo ressona que nem um hipópotamo – será que os hipopótamos ressonam? – a estrada nem é muito má e ele conhece-lhe os buracos todos.

É uma festa à chegada. De recordações, traz umas camisas de Macau para os rapazes, um fogareiro eléctrico para a Laurinda e uma boneca gigante e loira para a Leninha. Do Quintas & Irmão, loja de tudo, com tudo e para tudo e todos. E cadernos e lápis para os catraios da escola, que também merecem, não dão infernizam a cabeça da professora.

Ainda que manhã, leva-a para os lençóis já esticados, é sempre assim, os vales e as montanhas do corpo dela, a pele acetinada, o cheiro a floresta virgem, o que ela não é..., bem pelo contrário, adora ser comida por ele a qualquer hora e em qualquer sítio até na cozinha, esturra o saca-folha, mas que se lixe. Mãe de quatro filhos, mas rija e tesa, uma perdição.

O santo sacrifício da cama




Quando param entre suspiros e arquejos, ela avisa-o que tinham chegado os papéis das análises e que já os fora entregar ao doutor Fonseca que, mal lhes deitara os olhos dissera que queria falar com ele, quando chegasse, não era uma pressa nem morte de homem, estivesse descansada, mas queria mesmo. Depois se vê. Agora voltam ao santo sacrifício da cama, ela grita morrendo de prazer, ele ri-se, se cá estivessem os catraios, ainda bem que já foram para a escola.

Pela tardinha, doutor médico. Senta-te Max, temos que falar. Fonseca estás com um ar de cona malfodida que nem parece teu. Não há nada de grave, pois não? O galeno desvia os olhos, calado. Enclavinhadas as mãos no tampo da secretária do consultório, pergunta meio rouco, não há nada de grave, nada? Fonseca tira-me de cuidados, pareces um mudo encalacrado.

. Tem um cancro no pâncreas, mau sítio, não pode operar-se, uma ganda merda. O esculápio contorna a secretária, passa entre ela e a marquesa branca, joga-lhe um braço por cima dos ombros. É complicado, pá, é complicado. Mas tenho de to dizer assim, somos os dois homens de barba na cara, não adianta estar a mentir-te.

Nas comissuras dos lábios avoluma-se a espuma seca que lhe sobe da garganta. Isto é para quantos anos, Fonseca? Sei lá, ninguém sabe, a filha da puta desta doença é criminosa, e quando ataca no local em que se entranhou é uma gaita. Meses, Fonseca? Sei lá, repete o clínico, sabe-se lá, nem nos Estados Unidos se sabe. O caralho.

Saem os dois, o médico continua com o braço por cima dos ombros dele, vamos tomar uma bebida ao bar do Cinfães? Vão, não uma, mas muitas. Caiu a noite. Laurinda quando o vê naqueles preparos, homem de deus tu não costumas embebedar-te, que foi que te deu hoje? Conta lá enquanto te ajudo a tirar as botas e despir as calças. Conta lá. Foi alguma coisa da conversa com o Fonseca?

Não, Laurinda, não, não é nada, meti-me nos copos, cucas, nocais e uísque, até uns bagaços, uma mistura explosiva, não sei que me deu, tenho a língua enrolada, engasgo-me, mas não é nada. Vá, dorme, amanhã sabe-te a boca a papel de música mas passa-te. Eu velo por ti. Sempre.

De manhã, debaixo do chuveiro, sabes Laurindinha, não há tiro nem mina que me mate. Sossega. Garantiu-me o Fonseca.

5 comentários:

Anónimo disse...

Esta merece um bolo de arroz!

Anónimo disse...

Ó pá, tu estás cada vez melhor! O estilo - sublime. O sabor local - óptimo. O desenho das personagens - simples mas perfeito. Tens de pôr cá fora o livro, o mais depressa possível para ainda se vender no Natal. Juro-te que vai ser um best-seller. Um abraço muito apertado

Anónimo disse...

É por haver tipos como estes que o nosso Portugal está como está! O autor é um traidor, um safado, que dá uma no cravo outra na ferradura.

Os que o aplaudem são uns malandros como estes Raulzinho e JDL que não se sabe quem são.
O que era preciso era que os verdadeiros herois do nosso Ultramar os descobrissem e lhes dessem o correctivo merecido.

E ainda dizem mal do Doutor Salazar. Que saudades, que saudades, que saudades. Havia ordem, respeito, autoridade. Com ele nunca teriamos chegado aos despautérios que por aí são vomitados.

Pode ser que surja alguém capaz de voltar a regenerar Portugal. Assim o espero, assim o esperam muitos Portugueses de lei!

Anónimo disse...

Sr. Vicente

Vou fazer uma impressão do seu comentário e mostrá-lo aos meus filhos, quando não quiserem comer a sopa toda, claro! É que a foto do Dr. Oliveira Salazar já há muito que não funciona.
Obrigada

AS

Anónimo disse...

Sôr Vicente Santana,

aqui vai o meu pedido de desculpas
... não sabia que não gostava de bolos de arroz.