quarta-feira, agosto 30, 2006
Garrote de coiro
Antunes Ferreira
Está estendido em cama de folhas podres, entre os trocos das árvores, o que lhe permite descansar um pouco, mas também o leva a pensar. O braço amputado pelo meio de cima, garrotado com cinto de cabedal nem é o mais importante. Os camaradas, por ordem dele, tinham-no deixado para trás, a fim de não atrapalhar a retirada, pois os tugas tinham reagido com muito poder de fogo, nunca vira tanto tiro ao mesmo tempo. Também tem um buracão na barriga da perna esquerda com penso grande por cima, e estilhaços por todo o corpo. Doem.
O que passa na cabeça dele, Adão Macombe, só ele sabe. Nem o tal deus que o missionário Luigi lhe tinha tentado meter na cachimónia, nem esse gajo. Só ele sabe. De resto, ele não há. O camarada Vicente Nandhula bem lhe explicou que esse gajo pregado numa cruz que dizia que era o filho de tal coisa era uma invenção dos brancos para escravizar os pretos.
Você já reparaste com certeza, que não tem patrício na Bíblia, e assim, e assim e assado. Vais no Moscovo e pode ver o camarada Lenine no seu urna de vidro que ‘té parece vivo. Onde fica o caixão do Cristo? Não tem porque ele ressuscitou, como lhe dizia o padre italiano, era a ressurreicione do Signori. Porém, o camarada comissário, que era do Ucua, parece é que tinha razão. Não tem Jesus, é tudo aldrabice.
No entanto, ali no meio da mata, está a pensar que é melhor recordar uma oração, se não toda, um bocado, para pedir no céu que as formiga marabunta não ande por ali, o cheiro do sangue as atrai e elas come tudo. Lhes viu, de longe, deixar uma palanca negra ferida no lombo por onça ou assim, só no esqueleto. Por onde passa as assassina devora carne morta, capim, casca de árvore, parede de bosta, até animal vivo. Filhas das putas.
Do coto escorre um fiozinho vermelho, nada de especial se não tem formigas por ali. Se bem que tem uns morros aos buraquinhos, será que é de salalé? Se são, está fodido. Isso é, sim, o mais importante. Um dia um homem tem de morrer, é a única coisa certa que existe, já começa a contar quando sai da coisa da mãe. Com tiro, com doença, de velho. Mas comido vivo por formiga, aiué, isso ele não quer.
Os companheiros lhe deixaram alguma comida, não muita. Umas mandiocas, um cacusso seco, três carambolas e um pacote de bolachas búlgaras. Ou serão soviéticas. Esses gajos escreve todos do mesmo maneira, letras esquisitas mesmo, tudo ao contrário, o Vicente lhe disse que para eles um P é um R e um N (de pernas para o ar) é um I e um C é um S. Estranha coisa essa dos alfabetos, cada um usa o seu, os cunhetes que vem da China têm uns gatafunhos carregados de risquinhos, cruzinhas e rabinhos que lhe disseram são também letras.
O sacristão portuga do cura Luigi, o Manteigas, era assim chamado por ser a sua terra, mas também porque era paneleiro assumido e no princípio tinha de usar um pedaço daquela gordura para facilitar os amantes – mas só no começo, galhofava, entre duas gargalhadinhas, depois é o que é, nem elefante me assusta. Pois o Manteigas também lhe ensinara que o latim tinha o mesmo abecedário do que aquele que se usava, ainda que por vezes os romanos trocassem o U pelo V.
Os filhos do padre
Estranhas coisas sabem os homens e até mesmo os maricas. Na sanzala dizia-se que o pároco dormia com a Manelinha, preta cafusa, bonita, ancas de sonho, pernas bem lançadas e mamas orgulhosamente tesas. Ele era menino – será que agora ainda o é? – e ouvia que o padreca, com os seus cinquenta e picos, já tinha um casalinho de mulatos da mulher que pouco passava dos 17. A vida é complicada. Um homem não é de pau.
A missão tinha a igreja com a sacristia, a escola e uma casa para gente. O padre vivia numa moradia com telheiro à volta. O Manteigas noutra, mais pequena, mas também com varanda corrida e coberta. Tinha, alem disso, uma enfermaria, limpa, até as camas levavam mosquiteiro. Tudo em adobe de cimento, seguro e estável, coberto a tela vermelha. Lá mais para trás estava o cemitério, com cruzes nas campas e algumas flores.
Adão gostava de ir no campo dos mortos, a que o padre Paolo, também italiano, chamava qualquer coisa como necrópole ou lá o que era. Ver as tumbas alinhadas, bem arranjadas por fora, o Justino coveiro tinha arte para bater a terra até que ela ficasse bem acamada e direitinha. Até dava gosto lhes ver, chão de pessoa crente, muito diferente do que era uso no povo da sanzala.
Espanta-se. As milhentas dores que o cravam transformaram-se numa só, lancinante, que se instilou por todo o corpo. Antes sentia o braço cortado, os estilhaços impostos na pele, o buraco na perna; agora não. Agora é uma verruma que lhe penetra cada vez mais no corpo, não sabe bem onde. E com a dor acentua-se a imagem dos túmulos da missão. Se calhar já começa a morrer, quem sabe já começou mesmo.
No dia em que se pirou da tutela missionária, e isso ele não esquece, nem pode, patrão, já tinha o cura Luigi há uns tempos a morder-lhe os calcanhares, furioso e ameaçador. Recorda. Uma noite em que o italiano fora dar a extrema-unção num outro povo mais distante, a Manelinha acenara-lhe com a mão para que ele se lhe chegasse ao pé. Só para conversar, patrício. E porque torna e porque deixa, o homem já não prestava na cama e na disposição por mor da impotência.
E ela cheia de vontade de fazer feliz alguém, leoa em cio, desejo a subir do vale selvagem e peludo à cabeça. Apertava os peitos com as mãos. Vê, mano, como eles estão duros, precisam de mimo de macho, de beijos e mordidelas. Mama não serve só para dar de beber aos minino, Adão. Eu está lhe vendo de longe, músculo, sem barriga, e o volume que você tens no sítio indicado não engana ninguém, muito menos a mim.
O começo do fim
E passou-lhe a mão suave mas possessiva entre as virilhas, e agarrou-lhe o primo de baixo que estava teso e grande como tronco de mafumeira. Não podia ser melhor. Entrados na casa, nem tempo tiveram para se despir. Foi já em cima do colchão de sumaúma que lhe rasgou saia lhe arrancou as cuequinhas, lhe pôs os seios ao léu e os começou a sugar, ávido, enquanto lhe buscava de dedo em riste os lábios molhados da gruta.
Fora só o começo. Mal o padre se descuidava, saía por isto ou por aquilo, eram cavalgadas sem esporas, eram beijos nos centímetros do corpo que começava a suar, em todinhos, era o sumo que lhe corria da coisa, era o delírio, era o deliquio. Ela insaciável, mulher duma cana, toda ela era cona. Ele sempre teso, na fúria permanente de lhe encher os buracos do corpo, de a regar de seiva pegajosa.
Tinha de dar o que deu. A Manelinha ficou prenha num ai. Nenhum deles queria fazer de outro modo para o evitar. Ela até tinha falado com a Josefa, mulher velha e sábia que mais curava a gente do que o enfermeiro Cazombe João. Parteira, espanta espíritos, sapiente de mezinhas, de ervas do mato e de raízes benfazejas, a velha lhe tinha dito que só desmancho, mas já no quarto mês não tinha seguro.
Matar o minino antes de nascer – não. Ponto assente entre os dois. Aquele inocente teria de vir ao Mundo, com Luigi ou sem. Só que a barriga começara a crescer, a empinar, e o padre começara de lhe seguir por toda a parte, a rosnar ameaças, seu sacana me puseste os cornos, mas eu fodo-te, basta que não estejam a ver e mato-te como um cão. A ti e a ela. Cornuto não fui, não sou nem nunca serei.
Só havia uma saída: a fuga. Tentou que ela viesse com ele, com as crianças mesmo, mas ela lhe disse que não, a vaca. Saíra por uma madrugada, o sol ainda não despontava, a mata cheirava a goiaba e tamarindo, lembrava a Manelinha nua lençóis no chão e ele a gatinhar por cima dela. Pensara até em voltar para trás. Se o fizesse tinha de matar o cura antes que este o fizesse nele, Adão, filho de Macombe Matias.
A saga da liberdade
Na mata ficou, com amigos que já por lá viviam, que combatiam os tugas, em ânsias de independência ou de liberdade, ou algo assim. Pelo menos era o que o camarada Vicente ensinava-lhes, o direito a serem livres e conquistarem o que os brancos nunca lhes tinham dado, muito menos dariam. Não era difícil de entender, qualquer matumbo lá chegava.
Ele que nunca fora tropa afeiçoara-se à Kalashnikov e às granadas e às minas e à bazuca e ao morteiro. De tal modo que muito depressa lhe tinham promovido no comando de grupo de combate. A vontade de ganhar dos peles claras – nunca o tinha pensado, mas fá-lo agora – era um pouco o desejo de matar o cura Luigi, mas isso eram outras contas de outro rosário, como o cabrão dizia.
Da Manelinha, nada. Do filho dele, zero. Tinha a certeza de que era um rapaz, não podia ser outra coisa, mas não tinha informação, nem recado de carregador, nem tam-tam. Mas pensava que não lhe fazia mal, que tinha de andar para a frente, lutar pelo seu País, colónia há muito ano. Quando ganhasse a guerra, logo iria na procura de mãe e filho. Tinha tempo.
Mas agora – não tem. Já não é uma dor, já não sente o corpo, já o sangue estancou. Mas a vida se foi. Aos pedacinhos, passo aqui, passo acolá, sem eira nem beira. Por isso os camaradas lhe tinha deixado tão pouco de comer e menos de beber. Ele está ali para morrer, antes mesmo que as formiga lhe roam a carne e os ossos em vida. De entre os lábios ressequidos sai um cuspo amargo.
Quem sabe, é a altura da tal oração. Nunca fiando, não vá o cabrão do italiano ter razão, com cornos ou sem cornos, bem pode que aconteça que o diabo o leve para um inferno pior do que este que tem na terra. O hálito fede-lhe. Um frio como nunca sentiu entra-lhe pela pele, abraça-o por dentro, asfixia-o. E não está frio. O sol dardeja, mas não lhe aquece.
Olha em volta. Ainda não tem marabunta. Lhe deu só vontade grande de saber se tem filho, com certeza, ou filha, nunca se sabe. Uma certeza o agarra: nunca vai saber. A névoa que lhe trama os olhos é pesada. Mesmo assim, ainda consegue ver a mancha violenta e ruidosa das formiga. Suas putas, já não me mastiga vivo. E meteu o cano da espingarda na boca.
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1 comentário:
Meu padrinho tenente
Sou o Sebastião Jomba Carvalho, seu afilhado de casamento e furriel miliciano na CCS do QG. Quanto tempo já passou! A Irene e os quatro que tenho mandam muitos cumprimentos e beijinhos. Dos 4 o meu querido padrinho só conhece o primeiro, o Carlos. É de 72, e portanto completa 34 em Novembro. Tem um casalinho. Um miúdo chmaa-se... Henrique.
A Leonor tem 29 e ficou solteira. É engenheira e desenganou-se dos namorados. A Luisa, 24, trabalha num banco e o caga na escada, Ricardo, já quase é neto, pois tem metada da idade do mais velho, 17. Foi uma encomenda tardia... O Carlos é funcionário público, a Luisa está a acabar enfermagem e o puto quer ser artista dos Morangos com Açúcar. Diz que as miudas são bué de giras. Concordo.
Foi por intermédio do nosso capitão Vicente - hoje coronel reformado ao abrigo daquela lei que deu tanta maka - que souble do seu blogue. Vim visitá-lo e já não o deixo mais. Como não podia deixar de ser, desde A Palavra que eu digo que o meu padrinho é um génio da escrita, verdade.
Dos MVL recordei o que fizemos ao Zaire. Muita porrada, mas bons tempos. Às vezes encontro o eng. Siveira que era 2º tenente miliciano numa das lanchas. Vou ver se o enncontro, pois tenho o telefone dele e podemos juntar-nos para uma almoçarada. De acordo?
Bom, estou muito contente e muito feliz de o ter encontrado, padrinho. O senhor continua a ser o mesmo homem de sempre. Da oposiçãoe agora do PS, ao que sei.
Eu estou na Amadora e não estou mal. Mande-me o seu telefone e endereço. Tenho e-mail (imeile) como o padrinho diz) msn e móvel que é o 96 234 58 31. Telefone. Muitos beijos (ainda brinca com os queijos) e um grande abração. Caté
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