sexta-feira, agosto 04, 2006



A fragata Dom Fernando

Antunes Ferreira
L
á em baixo os soldados tugas saem das casernas, espreguiçando-se, a caminho das abluções matinais, a que se seguirá a formatura para o mata-bicho, litania que se cumpre em cada manhã. Mas, antes de comerem o tradicional pão com manteiga – aqui para nós é mais margarina – e café com leite, procedem ao içar da bandeira, com um apresentar armas rotineiro e os cornetas a soprar nas gaitas.

Cá em cima, estamos nós, acordámos mais cedo, tirámos as ramelas dos olhos e metemos no buxo umas frutas selvagens, apanhadas a esmo. Num pormenor somos iguais, eles e nós: no cigarrito. Só que os gajos fumam à vontade, talvez nem saibam que nós estamos aqui de arma em punho e dedo no gatilho. Já da nossa parte não se pode fazer lume alto, nem fósforo e fumo abafado com as mãos, a maior parte engolido pela goela abaixo. Um tição de fogueira afastada conservado cuidadosamente passa de mão em mão para acendermos o tabaco enrolado muitas vezes em papel de jornal.

Não haja dúvidas. Os de lá em baixo são uns privilegiados. Como sempre. Dizem que não, que sofrem de muitas maneiras, desde as saudades dos que deixaram no Puto até aos combates, passando pelas minas, pelas armadilhas, pelas cobras e pelas tse-tse e mosquitos. A diarreia fá-los desfalecer, o paludismo enfraquece-os, o medo abate-os. Comida diferente, água salobra, intestinos à rasca. Mesmo assim, e dando de barato que enfrentam muitas contrariedades, a poucos se ouve que esta guerra não é deles, que estão aqui por imposição, são paus mandados.

Se calhar até o sabem – mas têm medo de o pensar, quanto mais dizer. Os que protestam vem a PIDE e lixa-lhes a porca da vida. Nós sabemos. Quando os nossos instrutores nos ensinaram as bases do marxismo-leninismo transformadas em guerra de guerrilha logo nos avisaram para o perigo que era e é a polícia política. O camarada comissário Matombe Pinho (que até tem o livro vermelho, um tanto desbotado, do grande educador Mao) alerta-nos todos os dias para termos muita atenção e não nos deixarmos apanhar pelos flechas. Que até têm o direito a saque.

Branca, Pires e o Celso

Eu tenho estudos, não sou matumbo como os brancos dizem. Em miúdo fui para Lisboa, a senhora Dona Branca, esposa do administrador Arnaldo da Silva Pires, levou-me e tratou-me quase como se fosse filho dela. Aliás, não os tinha, só o patrão é que os fazia noutras, ela não podia. Triste sina a da mulher que não consegue conceber. Na nova igreja da Praça de Londres, de São João de Deus, a menina Laura, minha catequista, ensinava-nos a visitação à Virgem feita já não sei bem por que parenta.

O Pires, pelo contrário, era todo maus fígados, nunca gostara de mim, nem em Angola, muito menos na capital. Fez-me, porém, uma coisa boa. Uma única. Decidiu que eu teria de saber umas letras, ler corentemente, escrever ou, pelo menos, rabiscar o meu nome. Penso que foi para não me ver em casa. Podia contaminar o sobrinho e afilhado, o Celso. Que, nas previsões do padrinho, iria ser uma pessoa importante, entraria na Faculdade, tiraria o seu curso e chegaria eu sei lá onde. Inteligência não lhe falta. Para mim, o Celso era porreiro, como se fossemos irmãos. Gostava de mandar, estava habituado, o pai, irmão do Pires, tinha sido oficial do Exército, morrera com um cancro, que era preciso dizer baixinho, nunca percebi porquê. Um dia disse-me que queria ser comandante. De quê? Não me interessa. Comandante.





Mandou-me então estudar, o Arnaldo, e, por intermédio de uns compinchas da Marinha, meteram-me na fragata Dom Fernando. Quanto mais longe, melhor. Aproveitei tudo o que me ensinaram, gravei no cérebro, para isso o temos. Mas principalmente para pensar, raciocinar, amar. Ao fim dos anos de estudo, até passei com boas notas, eu próprio arranjei um emprego na Carris como cobrador dos eléctricos. O preto é esperto, diziam os meus superiores. E progredi na carreira. Aos 29 anos era fiscal de tráfego de terceira e escapara à tropa por ter pés chatos. Uma porra. Era preto e sabe-se lá do que seria capaz, fardado.

Preto. Havia quem dissesse negro. Qual deles o mais pejorativo não sei. Adiante. Um dia, na Mexicana, um galão e um bolo de arroz e surge-me pela frente o Marcolino. Esse mesmo, o Chinguano, Marcolino, como trazem as listas telefónicas. Não nos víamos desde a quarta classe. Nenhum dos dois queria acreditar que, ali, na esplanada lisboeta, nos reencontraríamos. Onde estás, o que fazes, como aqui chegaste, foram desbobinados quase em uníssono. Primeiro tu, adiantou o Champas, nunca soube porque tinha ele tal alcunha.

E se eles nos ouvissem?

Passou por alto pela minha vida na Carris, uma inglesice, e chegando-se mais à frente, com os cotovelos na mesa, sussurrou-me: eu – estou com a nossa gente. Nossa gente? Como é, mano? De repente vinham-me à língua e aos lábios expressões que julgava enterradas depois de pás de cal. O tipo explicou-me de mansinho que era do MPLA, que conhecia o camarada Agostinho Neto, o camarada Lúcio Lara, o camarada Viriato Cruz, os camaradas Andrades, o padre Joaquim e o irmão Mário, Pintos no meio, galos na luta pela independência. Olhei em volta, acagaçado. E se eles nos vissem, ou, sobretudo, ouvissem?...

Dali fomos até ao Cais do Sodré, um bar de putas, o Casanova, onde podíamos conversar mais à vontade. Pelas duas da manhã, depois de convenientemente escorraçados pelo patrão, com as cadeiras já em cima das mesas, os sacanas dos escarumbas no paleio a estas horas, devem estar a preparar alguma, ponham-se a fancos que isto aqui não é a vossa terra, vão para a puta que os pariu, andor, andor, ainda os corro à vassourada.

Seguimos. Sem protestos, sabe-se lá o que nos podia acontecer. Começava a sentir-me preto. Retinto. No quarto alugado na Pensão Marítima, ali ao Conde Barão, nem dormimos. E apesar de cochicharmos, um gajo do outro lado do tabique da parede, eram umas cinco da manhã, berrou-nos para nos calarmos, chiça, não fizeram mais nada a noite inteira, os cabrões dos negros, senão patuá, patuá, patuá. Vês Sebastião, vês como eles são, uma cambada, vão-se lixar, juro mesmo, vão ver como elas lhes mordem. Vão ser enrabados a sangue-frio.

Tínhamos passado em revista o que fora possível, do Salazar, um sonso meio padre e criminoso, até ao Seripipi de Benguela. Um Lara mas não Lúcio. A Liga Nacional Africana, a Casa dos Estudantes do Império, o Luandino, a prisão, o Tarrafal e São Nicolau ali à beira do deserto do Namibe. Estava decidido. De manhã fomos comprar passagens de segunda no Vera Cruz e ala que se faz tarde. Cacimbava quando chegámos a Luanda. Do Rangel até ao mato – um pulinho. Nada de difícil.

Morteirada das antigas

Agora, passando por cima de peripécias as mais variadas, estou aqui, por cima do aquartelamento luso – o termo leva-me a questionar-me: e a Dom Fernando e Glória? – num morro de onde os vejo, mesmo sem binóculos. Uma morteirada quando estivessem a içar a bandeira, era o combinado. Não camarada, ao arrear, já está mais escuro, os tugas nem sabem o que lhes acontece, nós não costumamos atacar a tais horas, é tudo vantagens, digo eu que os conheço de ginjeira. Você tens razão. Você tens esperto no cabeça. Aguentamos.



O astro rei – e a Dom Fernando? – vai começar a deitar-se. A mana Lua, a desavergonhada, é que sai à noite. Está no quarto, pois aonde devia estar? No minguante, que a vida não está para folestrias, nem para luas e similares. Vem chegando o momento. O Gunga apoia o morteiro de 91 no solo vermelho. É de fabrico checo, está tudo dito. Este camarada foi soldado no RIL, aprendeu a usar o tubo como se fosse mais um braço. Sítio onde ponha o olho é tiro e queda. Não sei como aponta, mas que dá lá mesmo, dá.

Como chefe do nosso grupo, alinho no chão, metodicamente, umas a seguir às outras, dez granadas de mão. Vão servir para ajudar à festa, enquanto os corneteiros não se calarem de vez. O resto da malta inspecciona os canhangulos, como os soldados lhes chamam. Canhangulos eram os da UPA, fabrico artesanal, rebentavam muito mais do que disparavam e quando tal acontecia era um tiro só à toa.

Lá vai disto. Os estrondos das explosões misturam-se com os berros lancinantes dos tropas. Lá em baixo é o inferno. Vejo uma cabeça no ar, qual bola de futebol, enchouriçada por bota desgovernada e sem qualidade. As granadas também já foram. Deram cabo dos tipos que se preparavam para o rancho da noite, voam marmitas à mistura com pedaços de corpos. Gunga presenteia-os com outra morteirada. Já não é preciso mais. Aquilo lá por baixo acabou. Acabaram.

Ninguém fala cá em cima. Silêncio, até ver em que param as modas. Aqui é o céu, em contraponto com o desastre total lá de baixo, nas profundezas do belzebu. Uns esparsos e ténues – e a Dom Fernando? – gemidos arrastam-se pela noite que vai descendo, à procura do horizonte também sangrento. Os nossos querem festejar. Não há perigo, nem de sentinelas precisamos, o massacre foi total, o êxito fulminante. Quando, amanhã, reportar ao camarada comissário Pinho, ele vai mandar um rádio para sei lá onde e talvez nos dê uns dias de descanso para irmos a Luanda, ao nimas e às meninas.

Levanto-me para estender as pernas – e elas não me aguentam. Caio. E sobre a minha cabeça está a bocarra da metralhadora que me ceifou. Os camaradas nem suspiram. Penso que sou o único sobrevivente. Não demos por estes flechas, pretos como nós, que se chegaram a nós de mansinho e pumba, já está. O comandante deles agacha-se ao meu lado. Fala filho da puta. Fala preto de merda. Fala Sebastião. Ressuscito? Ele sabe o meu nome. Conhece-me.

Por entre a névoa encarniçada que me invade os olhos, as lágrimas de sal e de raiva, o suor em bica, consigo vê-lo. É o Pires, o Celso, o sobrinho. O dilecto – onde vai a Dom Fernando? – o que me ensinava a matemática para a qual eu não tinha muito jeito. Fala turra. Abre a boca Sebastião. Eu fodo-te os cornos se não vomitas tudo cá para fora, maldito. Está escuro. Cada vez mais. Estouro-te a mioleira, grande cabrão. Deixo-me ir. Voando, pairando. E a fragat…

4 comentários:

Anónimo disse...

Como estudo psicológico - excelente. Como enredo - muito bom. Como prosa - magnífica. Como tema - ainda melhor.
Não sou o Prof. Marc(t)elo e por isso não dou notas. Mas este Antunes Ferreira tem que se lhe diga. Penso que é o mesmo que há uns anos escrevia na Bola e antes no Diário de Notícias e que fazia comentários e intervenções sobre política internacional na TSF e RTP, canais 1 e 2.
A ser assim, não admira que seja o escritor que é. Põe o pessoal a ler com muita atenção e sem poder parar. As crónicas da guerra colonial são fantásticas. As políticas, são correctas e muito felizes. Os meus parabens, Antunes Ferreira.
Agora, já compreendo, o aplauso da Maria Helena Cruz. Bem haja.

Anónimo disse...

Bem imaginado e bem escrito. Ainda que não utilize os termos (demasiadamente entusiásticos) do Sr. Rogério M. Mendes, compreendo que ele se sinta assim, pois este texto parece-me ser o melhor que o Sr. Antunes Ferreira tem escrito sobre a guerra em África.

Anónimo disse...

Lamento profundamente que o senhor Rogério M. Mendes e a senhora Manuela G. Brito tenham tal opinião a propósito deste escrito. Quanto ao português que o senhor Antunes Ferreira usa, há melhor, bastante melhor.
No que concerne aos temas, muitos são incríveis, como por exemplo este. O autor (?) parece estar ao lado dos terroristas que nos atacavam e matavam a nossa gente, incluindo pretos como eles. Eu fui da OPVDCA, estive na Maria Fernanda e Camioneta Vermelha, e não posso imaginar um português a bater-se com os turras.
Infelizmente há mais, como por exemplo o poeta (?) Manuel Alegre.
Deixo aqui o meu protesto e a minha indignação. Será isto a libedade e a dita democracia? Julgo que não.

Anónimo disse...

Compadre - és o maior!