HISTÓRIAS DA PJ
Aconteceu
na Primavera marcelista
(1ª parte)
José Augusto Garcia Marques
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Por vezes, nas “histórias da PJ” (de há quase 40 anos) que tenho vindo a contar, o mais importante pode não ser o esclarecimento do “mistério”, mas sim o conhecimento e a reflexão acerca de alguns episódios da história recente do País. Penso ser este o caso da narrativa que agora começo a apresentar.
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Era Maio de 1969 e estava-se em plena “primavera marcelista”, designação dada ao período de abertura política e de aparente tentativa de democratização do regime, iniciado com a tomada de posse de Marcelo Caetano como Presidente do Conselho de Ministros, em 27 de Setembro de 1968, e que se prolongou até algum tempo depois das eleições de Novembro de 1969. A promessa de eleições livres, era, de resto, um objectivo essencial do novo Presidente do Conselho, sendo um sinal de liberalização política revelador de uma “ideologia” de modernização, ao mesmo tempo que se pretendia que os seus resultados pudessem constituir uma fonte de acrescida legitimidade de um poder que havia sido “negociado e conquistado na chancelaria”.
A população estava expectante e, em muitos sectores, reinava a esperança. A própria oposição moderada entendeu que devia dar ao governante recém-investido, que foi recebido com entusiasmo inesperado na visita que fez às possessões de África, o benefício da dúvida.
O novo governo ensaiava reformas e adoptava medidas que pudessem proporcionar um novo dinamismo e descomprimir o regime, ainda que sem provocar com isso mudanças de fundo. Estas foram, em muitos casos, de carácter essencialmente cosmético. A Censura foi substituída pelo Exame Prévio;
a PIDE seria substituída pela DGS (Direcção-Geral de Segurança); a UN (União Nacional) pela ANP (Acção Nacional Popular). Algumas medidas inesperadas, mas de natureza fundamentalmente simbólica, foram adoptadas por Marcelo Caetano nos primeiros meses do seu consulado. Foi o caso dos actos pacificadores em que se traduziram as autorizações que permitiram que Mário Soares e o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, regressassem do exílio.
Com estes gestos, Marcelo Caetano, um notável jurisconsulto e Professor de Direito, pretendia dar um sinal de conciliação à oposição moderada que, na sua perspectiva, poderia dar um contributo importante para a liberalização. Além disso, tentava mostrar, no interior e no estrangeiro, a sinceridade do regime em avançar com reformas de abertura e democratização. Por fim, visava tranquilizar as “oposições” que se preparavam para as eleições de 1969. Como já se disse, era fundamental, na óptica do regime marcelista, que “as diferentes oposições” se apresentassem – como efectivamente se apresentaram – às eleições.
Compreende-se que os sectores mais preocupados com a evolução de abertura política então em curso, fossem os grupos e figuras de extrema direita, os “duros” do salazarismo, receosos de que Marcelo Caetano pudesse, no limite, pôr em causa a própria “integridade do Ultramar”. Entre os “falcões” contava-se a Legião Portuguesa, instituição criada em Setembro de 1936, que, até Abril de 1974, quando foi finalmente dissolvida, constituiu a milícia oficial do Estado Novo.
A intenção do Governo consistia na realização de eleições livres – e o acto eleitoral de Novembro de 1969 foi, por certo, o mais livre da história do Estado Novo. Todavia, os cadernos eleitorais estavam longe de traduzir a verdade do eleitorado nacional. Afinal, apenas 10% da população constava dos cadernos eleitorais e, destes, segundo os resultados oficiais, 38,5% não terão ido às urnas.
Além da União Nacional – o partido político único do Estado Novo, mais tarde substituída pela Acção Nacional Popular -, apresentaram-se também às eleições, em Lisboa, no Porto e em Braga, a CEUD e a CDE, ambas de oposição ao regime. A primeira era tida como mais próxima do que veio a ser o Partido Socialista, ao passo que a segunda era considerada como tendo uma feição frentista, com elementos do Partido Comunista em posições de relevo, além de outras figuras de esquerda independente. Tal como os resultados eleitorais vieram a revelar, a CDE tinha, na altura, uma implantação superior à da CEUD.
Apesar das boas palavras (e, admito, das boas intenções do Presidente do Conselho de Ministros), o certo é que, no período pré-eleitoral, incidentes vários de natureza violenta começaram a multiplicar-se. Tratou-se de episódios de cariz criminal, uns mais espectaculares, outros, porém, de maior gravidade penal.
O mais falado foi o que ficou conhecido como o “assalto à sede da CDE”, situada ao Campo Pequeno. Tratava-se de um pequeno edifício na esquina da Avenida da República com o Campo Pequeno, entretanto demolido, onde hoje está instalado o Banco do Fomento Nacional.
Numa noite, um grupo de indivíduos, apoiantes radicais do regime, arrombou a porta do edifício, vencendo a resistência oferecida a partir do interior. Invadiram as instalações, que vandalizaram; injuriaram e agrediram alguns dos militantes que se encontravam na sede, arrancaram cartazes das paredes, rasgaram suportes de propaganda; embeberam em cola uma brocha de colar cartazes e, com ela, humilharam alguns dos presentes, besuntando os seus rostos e vestuário. Ao mesmo tempo, um outro grupo escalou o edifício, tendo, para o efeito, lançado uma escada até à varanda do primeiro andar.
Em face da gravidade política dos factos, praticados num momento em que, como se disse, era intenção visível do Governo dar uma imagem de normalização a caminho de uma via democrática, foram dadas instruções à PJ para investigar rapidamente o ocorrido, identificando os autores do assalto, afim de serem julgados.
O processo foi-me distribuído pessoalmente.
Rapidamente se apurou que os meliantes e rufias que se introduziram na sede da CDE pertenciam à Legião Portuguesa, instituição de extrema-direita, de apoio aos “ultras “afectos ao regime.
Dentro do edifício estavam pessoas conhecidas no panorama intelectual e cultural do País, a par de militantes anónimos. Lembro-me, entre outros, do Advogado Vítor Wengorovius e dos Professores Luís Filipe Lindley Cintra e Francisco Pereira de Moura. Deixou-me particularmente bem impressionado o depoimento do Prof. Cintra, pela objectividade da descrição dos factos e pelo rigor da própria linguagem, muito mais sereno e ponderado do que os de outros, que, pela sua exaltação ou evidente exagero, não mereciam o mesmo crédito.
Quase ao mesmo tempo, ocorreu um outro facto de graves contornos criminais. Um médico, o Dr. Rui Oliveira, que estava encarregado de distribuir material de propaganda política da CDE, foi sequestrado e levado à força para o quartel da Legião Portuguesa, no Largo do Rato, e aí mantido em cárcere privado e barbaramente agredido por legionários ali presentes. A sua libertação, ao fim de algumas horas, terá ficado a dever-se a diligências desenvolvidas por familiares, um dos quais Professor de Medicina, que terão informado as autoridades que, dentro do carro do médico, detido, estavam soros, em risco de se deteriorarem.
Feita a queixa-crime, foi-me a mesma também distribuída, dadas as conexões com o assalto à sede da CDE.
(continua)
4 comentários:
Há bastante tempo que não tinha o prazer de o ler. Seja bem aparecido. Fico à espera da continuação. Muito obrigado.
Viva! De volta com mais investigações verídicas, vem de novo aguçar-nos os espíritos para a continuação. Não perco uma, como sempre.
Ainda bem que continua a presentear-nos com as suas crónicas muito bem escritas e alem disso verdadeiras.
Um pouco de historia no meio de estorias, fica bem.
Raul
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