quinta-feira, fevereiro 21, 2008




GANDA LATA


Da bebida e da vida

Antunes Ferreira

Há-os de todas as qualidades e feitios, raças e cor da pele, idades as mais diversas. O que os une é o álcool. Diz-se até que bêbados unidos jamais serão vencidos, mas trata-se de aproveitamento ignóbil de palavra de ordem para um outro fim e com dimensão diferente. No entanto, há que o dizer, os ébrios também fazem parte do Povo. É tal a amplitude dos grupos em que se subdividem, que parece que está a caminho uma central sindical que os representará; agrupamentos são muitos, o reconhecimento em Diário da República é que é o busilis.


Esta croniqueta tem origem em anedota curta que o autor recebeu. Daí a advertência primária: a história vem do meu cunhadíssimo excelso Raul Palhau, grande remetente de mensagens, todas engraçadas, algumas íssimas... O culpado, ou seja, o gajo que a assina, apenas a embrulhou em papel multicor para tornar o rebuçado mais comestível. Não podia deixar de aqui colocar o prolegómenos, de outra sorte, quem sabe, cairia o anátema do plágio. E seria muito bem feito. Por isso, e de acordo com regra consuetudinária, o escriba jura pelo que quer que seja, que é a verdade, só a verdade e aos costumes diz nada.

Cautelosamente, não é em vão que se regista que, na dúvida, quer o arguido quer as testemunhas devem ser sempre ajuramentadas. E até os simples declarantes não escapam à determinação.
Salvaguardada deste modo a correcção dos factos, siga a banda em andamento de procissão, com anjinhos e andores, o Senhor Bispo sob o pálio e os dignatários de opas vermelhas, como é uso e costume.

Dito (escrito) isto, volte-se aos embriagados. Uns quantos profissionais dos copos, os mais calinos, consideram que bebem para esquecer. É afirmação cabotina que, quando questionada, tem igualmente resposta consentânea: esquecer de quê? Não me lembro. O esquecimento é a mãe de muitas batalhas cerebrais. Não de todas, sublinhe-se. Por este caminho ínvio não se vai a nenhuma parte. É rua sem saída, com o T sinalético bem visível.

Uma anotação. É esta a altura para se exarar que, também neste particular, os homens e as mulheres têm os mesmos direitos e os mesmíssimos deveres. Se calhar, poderiam os hipotéticos leitores estar pensando que só os sujeitos masculinos se podiam embebedar. Pensamento espúrio, há que dizê-lo. Há notícias de grandes borrachas,
e até fotos das consequências que por vezes resultam. Agradáveis, algumas, diga-se em abono da verdade e sem sombra de machismo.

Os militantes da bebida não usam cartão identificador, nem clubístico, nem partidário, nem de organização mais ou menos secreta. É óbvio que são portadores de BI, de Cartão das Finanças com o Número Fiscal do Contribuinte, de documentos similares no que respeita à Segurança Social, às Eleições e por aí adiante. Um bebedor praticante que se preze não é um indocumentado. Longe disso. Chega a ter carta de condução. Apesar da recomendação que o alerta: se beber, não conduza; se conduzir, não beba. O tanas!

Os especialista consomem produtos os mais diversos e devidamente seleccionados. Desde a bagaceira devidamente engarrafada e fora do frigorífico, que a ASAE é vigilante atenta e cuidadosa, até ao Veuve Clicot, há uma infinidade de rótulos, de design de garrafas, de materiais continentes – vidro, plástico, tetra pak - de tipos de álcool, de rolhas de cortiça e, até, de plástico, de tampas de enroscar, sabe-se lá de mais o quê.

As regiões demarcadas são, igualmente, terrenos para os que se sabem (ou julgam que sabem) embriagar. Nestas coisas, o saber não ocupa lugar, diz o Povo, carregadinho de razão. Apanhar uma narça alentejana é bem diferente de apanhar uma cadela do Douro. Engorgitar JW rótulo vermelho é absolutamente distinto de engolir Four Roses. Ter maneiras, neste particular, é cartão de visita que identifica quem atesta o seu próprio depósito.

Claro que existem os generalistas e outrossim os básicos, entre eles os que ainda pedem nas tabernas que resistem denodadamente às directivas comunitárias o clássico copo de três, escorrido de torneira de barril, um tanto à socapa. Entre eles, avultam os que, questionados sobre se preferem tinto ou branco, sempre respondem convictamente – muito! Calino, mas verdadeiro, e ponto.

Por vezes, bastas vezes, são os titulares da carraspana global, quer dizer, álcool das mais diversas proveniências, melhores ou piores, mas sem pedigri, até sem rótulo, que se confessa ser o melhor.
É o modelo do tudo-ao-molho-e-fé-em-Baco. A grande mistura é quem mais ordena. Bagaço, verde, geropiga, brande, carrascão, medronho, ginjinha, agua-pé, uma infinidade de sabores, de cheiros e de cores, em coqueteis de ocasião – seguem garganta abaixo.

Seria quiçá agora o momento de alardear conhecimentos, falar de escanções, de pesa-sais, de taninos, de decantação, de pesa-espíritos, numa panóplia cuja amplitude é desmesurada. No entanto, não passaria de alarvidade fazê-lo. Arrotar postas de pescada – para quê? Para tanto existem os manuais vinícolas, as revistas especializadas, as provas de bochecho. Ala, que se faz tarde.

Serafim Carrapato era o que se pode chamar um bom copo. Ou, melhor, um não, muitos. Visitante voluntário e obrigatório de todas as capelinhas locais, estendia as incursões a outras latitudes, ainda que próximas. De uma visita transfronteiriça a Mérida, a Badajoz já fora por via dos caramelos, trouxera um azulejo a que achara muita piada e que tinha agora pendurado na sala de jantar. Os amigos das bóbidas compraziam-se em admirar o exemplar que ele dizia ser único. Mentia com quantos dentes tinha na boca.

Rezava assim o exemplar: ESCALA DE LA BORRACHERA – Facilidad de palabra; Exaltación de la amistad; Cantos regionales; Tuteo a la autoridad; Insultos al clero e, a finalizar, Delirium tremens. Carrapato, quando entornava púcaros em número industrial, parava sempre que se sentia avizinhar do tremens. Nos restantes estágios navegava à bolina, sem sobressaltos nem enjôos.

Não tinha mau vinho, bem pelo contrário. Afirmava com orgulho que era bêbado mas educado, bem comportado em procedimento. Virava-se para o lado, e ressonava como um justo, que, de resto, era. Brigas, palavrões, ameaças não eram com ele. Tinha um lema um tanto sebastiânico, mas seu: beber, sim; mas de vagar. Um bacano.

Já o Sol se pusera quando – convenientemente enfrascado – Serafim passou em frente de uma porta aberta em edifício claro. A curiosidade alcoólica levou-o a entrar. Havia gente em pé, outra sentada e muitos cochichavam numa surdina de poucos decibéis. Sentou-se, sem pedir autorização, aliás não saberia a quem, tudo e todos lhe eram estranhos.


N
isto, começou uma música. Levantou-se, cambaleando, e dirigiu-se a uma senhora de preto a quem pediu: «Hic... a Madama, dá-me o prazer desta, hic..., dança»? E ouviu a seguinte resposta: «Não, e por quatro motivos». «Homessa, hic..., poderá a Madama dizer-me por obstáculo, hic..., obséquio, quais são eles»? E a voz que lhe começara a responder prosseguiu: «Primeiro, o senhor está bêbado; Segundo, isto não é um baile, é um velório; Terceiro, mesmo que o fosse, não se dança o Pai Nosso. E quarto, porque 'Madame' é a puta que o pariu! Eu sou o padre»!!!

2 comentários:

Anónimo disse...

Cada vez melhor, cada vez com mais piada. Soube, por um Amigo comum. o Carlos Cunha, que vai publicar um livro. Óptimo. Deve publicitá-lo aqui no seu blog. Será em Lisboa. Conto estar lá.

Victor Nogueira disse...

Viva
A dose dupla já está de tavessa no Ao Sabor do Olhar
Abraço
VN